sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Comam bolachas do chão.


-Não come a bolacha do chão, menino! Faz mal! - diziam as mães, os pais, as tias, as primas mais velhas, os primos, os irmãos e todos os adultos que conviviam com você na época da sua infância.

-O chão é sujo, tem micróbios, pode dar verme.

Sabe o que me encantava na bolacha que caía no chão? Sua persistência em não ser comida por mim. Era como se, na minha cabeça, o ato da bolacha fosse um ato de rebeldia contra esse sistema que impunha a mim comer e a ela ser comida, sem piedade. Quando uma me escapava das mãos, ou do pacote, e caía no chão, era seu último ato de defesa. Questão de honra comê-la.

Mas aí aparece esse adulto, que parece agir em conluio com a bolacha. Eu imaginava o alimento vitorioso, olhando para mim triunfante dentro da lata do lixo - “Prefiro ir pro lixo a ser comida por você”.

Às vezes a frustração era muito grande, principalmente quando eu punha geleia, patê ou mesmo manteiga e a bolacha – só de raiva – caía com o lado besuntado virado para o chão. Às vezes eu raspava um pouco a sujeirinha (“Eca!” - você pensou; mas já deve ter feito igual) e comia mesmo assim. Outras vezes a bolacha ganhava, ao cair em cima da terra do quintal. Era demais pra mim.

Aquela bolacha era um pedaço de vida e, como todo pedaço de vida e prazer, continha seus riscos.

Há momentos assim, em que as situações nos impulsionam a comer ou jogar a bolacha fora. Valerá a pena? Essa é a grande questão.

Aliás, por que crianças muito pequenas, com mais razão, não podem comer comida do chão? Porque ainda não adquiriram resistência. Quando a gente vai comendo coisa que pegou no chão, aqueles micróbios já fazem parte da gente, viram anticorpos. O nosso corpo e a nossa alma aprendem a lidar com eles.

É assim com as bolachas do chão, os acarajés cheios de coliformes fecais que comemos em Salvador, os açaís que podem ter “barbeiros” que transmitem doença de chagas, os caldos de cana que passam pelas peneiras sujas e pela máquina de prensar já encardida, os quitutes daquela feirante que tem unhas pretas - e tudo isso tem muito mais sabor, vamos admitir.

E é assim também com as inseguranças da vida adulta: os medos dos términos, dos recomeços, dos abandonos, de perder coisas que nos são caras, de mudar de trajetória.

A questão é que o pacote de bolacha da vida é um só e algumas bolachas já vem quebradas, então a gente já começa perdendo. Outras, já caem de nossas mãos direto na lama e não podemos recuperar. Mas e aquelas que caem no chão de casa?

Essas eu como mesmo (!) e você pode até me chamar de “porca”. Se já me causaram muito mal, hoje não mais. Além disso, no chão da minha casa só pisa gente conhecida, então já conheço as sujeiras de todos. Criei meus anticorpos e nunca mais tive verme.

Então, se eu puder dar um conselho a essas crianças cheias de assepsia e sabonete antibacteriano é esse: comam as bolachas do chão de casa quando nenhum adulto estiver vendo. Não perguntem se podem fazer isso. Apenas comam. Saboreiem a coragem, enquanto há tempo. Corram riscos: é disso que a vida é feita e um belo dia só vai te sobrar uma única bolacha no fundo do pacote. E essa, creiam, vocês não vão querer perder de jeito nenhum...

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Quando a gente não cabe mais.

Minha mãe guarda até hoje o vestido que usei no meu batizado, quando tinha apenas alguns meses de idade. Na minha última visita à cidade natal, lá estava ele no armário: alvo e delicado, como eu imagino que sejam as roupas dos pequenos anjos. Ele sempre esteve lá, desde meu batizado até agora. Mudaram-se os armários, as gavetas e até o alvejante, mas o vestidinho continua pendurado no cabide.

É difícil imaginar que em algum momento eu coube dentro daquele pequeno pedaço de tecido branco. Contudo, o fato de estar guardado até hoje me faz concluir pelo seu duplo significado: para minha mãe, o vestido sou eu, que resolvi sair de um passado querido para lhe fazer uma visita e lembrá-la de quanto amor e cuidado nos cercam; para mim, é a representação de toda a minha infância, a época em que eu cabia não apenas no vestido, mas na vida que se apresentava a meus olhos.

Realmente, até os 15 anos, a minha vida no interior se assemelhava a uma roupa feita sob encomenda, vez que devidamente ajustada a mim e, por isso mesmo, perfeita. Era ali, dentro daquela vida e da casinha onde cresci, apesar de qualquer dificuldade, que eu me sentia mais amada, mais protegida e mais importante do que em qualquer outro lugar do mundo.

Depois, eu começo a perceber que a vida ali já não parece tão perfeita, tão ajustada e que nem o menor dos meus sonhos e esperanças para o futuro poderia caber dentro daquela roupinha pendurada no cabide. É a hora de partir.

Assim como acontece com as roupas, nossa relação com a vida pode se mostrar cheia de percalços. Por vezes, estamos magros de vontade e a vida fica folgada: nos falta entusiasmo, coragem, disposição e até alegria para preencher os espaços vazios que impedem o ajuste perfeito. Em outras situações acontece exatamente o contrário: queremos mais do que a vida pode nos oferecer no momento e tentamos de tudo para caber na vida, desde prender a respiração até forçar o tecido a ponto de quase romper sua estrutura.

Difícil conseguir a tão sonhada medida certa.

O que penso é que talvez jamais consigamos a vida milimetricamente ajustada. Com a idade adulta vem os sonhos, mas também suas ilusões; vem as expectativas e também as frustrações e vem e vão tantas coisas, nunca na mesma proporção. O desequilíbrio passa a ser a essência da vida que levamos.

Isso nos obriga a fazer pequenos reparos, um aqui, outro ali, uma bainha, um corte de retalhos desnecessários, uma pinça no cós das ideias, outras vezes promover uma certa folga nas linhas que insistem em apertar o peito. E assim por diante. O resultado de uma vida apertada é o mesmo das roupas compradas sob efeito da vaidade: marcas. O resultado de uma vida muito folgada: ela nos escapole, como a calça de um tio que sempre esquece de usar cinto.

Ficamos assim, nesse eterno "efeito sanfona", pesadelo das pessoas que tentam emagrecer e depois acabam se descuidando.

Só que sem esse efeito, a sanfona jamais produziria música. Assim também a vida, sem esses ajustes, sem esses momentos de desproporção, jamais seria arte. É verdade que o equilíbrio pode conduzir à perfeição, mas quem disse que não podemos esticar um pouco mais aqui e ali ou deixar uma pequena folguinha nas obrigações para depois?

Não caber mais em determinadas situações nem sempre traz tristeza. No meu caso, sei que jamais voltarei a caber naquele vestido que minha mãe vai guardar para sempre, e provavelmente jamais caberei na mesma vida que tive antes, mas a felicidade reside justamente em saber que já coube e que de lá para cá tudo tem sido perfeito mesmo nos desequilíbrios, mesmo perdendo-se um botão ou remendando-se um pedaço da vida.

Quando alguém está muito contente, falamos que "Não cabe em si de tanta alegria".  Pode ser que a felicidade seja isso mesmo. Não caber.



domingo, 10 de maio de 2015

Post-it pra ganhar tempo.


Foi assim que eu resolvi entregar o presente de Dia das Mães da minha mãe: totalmente coberto com esses papeizinhos de recado. Digam o que quiserem: que é uma data comercial, que os shoppings é que comemoram o dia de hoje, que nós deveríamos celebrar este dia todos os dias.


Com esta última parte eu até concordo, mas também acho que elas merecem um dia especial, voltado para elas e não todos os dias de esquecimento e falta de carinho que lhes proporcionamos sempre.

Se a rotina é o mal dos relacionamentos amorosos modernos, é também ela que nos deixa pouco a pouco acostumados com a presença fácil e o cuidado constante. E isso é tão perigoso quanto cômodo.

Pensando nisso é que eu sempre faço questão de tornar o presente em si, ou o próprio dia, algo especial e diferente. "Perco" tempo escolhendo presente, pensando em como vou entregá-lo, no que vou escrever para ela e se tudo reflete a grandeza do ser que é minha mãe. Quando eu penso que já fiz tudo de diferente, o amor toma conta da minha imaginação e eu sempre acabo inventando algo novo. E com isso quem ganha, invariavelmente, sou eu.

Desta vez, como ia dizendo, fiz um presente assim. Cheio de recados. Em cada papel, um ensinamento de minha mãe, importantíssimo ou banal, mas que me fazem pensar nela como sinônimo das coisas que escrevi.

E foram essas, entre tantas outras, as coisas que aprendi nesses 24 anos:

Sorrir.
Me defender.
Não me importar com o que os outros pensam de mim.
Jogar buraco.
Honestidade.
Paciência.
Dedicação.
Ser caprichosa.
Gostar de ler.
Descascar tomate sem desperdiçar a polpa.
Alegria.
Ajudar a quem precisa.
Otimismo.
Fé.
Fazer o meu melhor sempre.
Dar valor à família, independentemente de qualquer coisa.
Ter calma.
Ser carinhosa.
Enfrentar os medos.
Ser simpática à vida.
Como plantar uma horta.
Distribuir ternura.
Acreditar no bem.
Falar a verdade sempre.
Buscar a felicidade.

Em resumo: amor.

Depois de lidos e de descoberto o presente - uma joia - dois pares de lágrima de pura emoção apareceram ao mesmo tempo em que uma voz linda e embargada dizia: "isso é o mais bonito do presente". Ganhei tempo: dei um objeto e colhi uma emoção.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A chave para a fechadura e um desabafo de quem não quer mais elogios.

Começa com as bonecas estilo Bebê. Essas lindas bonecas rosadas, rechonchudas, fofinhas, com apenas uma mecha de cabelo loiro na cabeça. É com elas que aprendemos, aos 3, 4 ou 5 anos de idade, qual o nosso lugar no mundo.

Nada contra as bonecas. Eu, particularmente, é que achava muito sem graça brincar com elas e acabava, quase sempre, saindo pra brincar na rua. Mas a questão é que elas mostram muita coisa. Não só elas, mas as panelinhas, o ferro de passar de brinquedo, o forninho...

Que menina nunca ninou um Bebê desses? Que menina nunca pegou essa boneca e encostou contra o peito, como que amamentando? O interessante é que os pais de hoje em dia condenam de maneira drástica as músicas e programas de TV que tornam a criança um pequeno adulto, mas acham super normal e saudável que uma criança amamente um bebê de mentira...

Lembro-me que nas poucas vezes em que brinquei de boneca e casinha, a figura do homem não existia na brincadeira. Não só porque os meninos não queriam brincar conosco, mas porque a própria figura do pai do bebê era dispensável: ele só "aparecia" bem mais tarde, após fazer a comidinha...
Parece familiar?

Aí vocês me dizem que estou sendo exagerada e que as crianças somente fazem o que vêem os pais fazerem. O problema é que a criança não apenas reproduz, mas aprende que aquilo é o caminho natural de todas as mulheres na vida.

Depois piora. Vem as tarefas domesticas, que nós temos de saber executar com maestria, pois temos uma "vocação natural".

Vem a descoberta da sexualidade e a imposição de um senso quase religioso de pudor, ao passo que nossos irmãos, primos, e parentes homens gozam (melhor verbo não há) de suas vidas mundanas promíscuas sem que qualquer pessoa os condene ou julgue. Afinal de contas, a "chave que foi feita pra abrir muitas fechaduras é chamada chave mestra, mas a fechadura que se abre com qualquer chave é inútil", como diriam os filósofos acéfalos do Facebook.

Vem as propagandas de cerveja, os carnavais com seus beijos forçados, as formas nojentas como os homens se dirigem a nós na rua e a forma mais repugnante ainda como se justificam - " Mas também ela tava com roupa de academia, indo pra academia. Queria o quê?".

E quando falamos sobre isso, nos perguntam se não gostamos de "elogios". A quem não sabe o que isso significa, elogio quer dizer o enaltecimento da qualidade de alguém ou o louvor a alguma virtude. Gostamos de ser elogiadas como inteligentes, gentis, simpáticas e mesmo bonitas, mas sinceramente "Delícia" e "Te pegava toda" (para usar termos bem leves) não são elogios. Então não finjam que não sabem o quanto isso nos ofende.

Vem o medo de ser estuprada, que é diferente do medo de ser assaltada ou mesmo de morrer. É o medo de que nos tirem a porção mais intima que conhecemos de nós mesmas e não se trata de um órgão genital: a porção mais íntima de nos é o nosso próprio querer. Há quem queira tirar isso.

Vem o trabalho, os salários ainda mais baixos, a censura em relação a amizades com colegas homens, os olhares desrespeitosos desses próprios colegas nos corredores. Vocês pensam que não percebemos. Só que percebemos e fingimos que não.

Vem as propagandas de carro - nas quais quase nunca ocupamos a posição atrás do volante e estamos, na maior parte do tempo, com roupas atraentes mostrando o exterior do veículo, de cerveja - dispensa comentários, de produtos de limpeza em geral e inseticidas - porque tudo o que sabemos  e devemos fazer é cuidar das nossas famílias.

Vem as violências psicológicas e físicas - sobre as quais não podemos dizer nada a ninguém, preconceitos ridículos alimentados por gerações, reclamações várias sobre a quantidade de sal na comida ou a pouca quantidade de comida na mesa, até nos sentirmos tão inferiores quanto a menor das espécies.

Por fim, como se não bastasse, vem os argumentos utilizados por quem acha isso de "machismo" algo que não existe mais e super ultrapassado.

"Elas agora querem se igualar aos homens.".
"Machismo só é bom quando aproveita a elas, como na hora de pagar conta.".
"Queria ver se fosse pra tratar igual a homem.".
"Falam que querem ser iguais mas não querem carregar mala.".
"A culpa de as crianças serem assim com certeza é das mães, pois não estão mais em casa educando-as."
"Se não fosse elogiada na rua ia achar ruim"..

 E a melhor de todas:

" Daqui a pouco vamos viver o feminazismo."

Se você concorda com uma dessas frases que citei logo acima, siga meu conselho: crie sua filha, dê a ela um Bebê de brinquedo, ensine-a sobre suas "vocações naturais", faça com ela seja a fechadura de uma chave só. Mas também "seja homem" para vê-la sofrer, apanhar, ser humilhada na rua após sair de casa com um short mais curto, receber um salário risível para executar a mesma atividade que um colega executa, abortar em clínica clandestina eventualmente,...e assim vai.

Mas não é sempre esse o caminho. Claro que nos deparamos com outras opções que nos permitam viver de maneira mais digna. E então? Queimar todos os Bebês de brinquedo ou ensinar um pouco de respeito? Qual é mais difícil?


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Drummond e o dia em que eu conheci a fome.

Conheci a fome por acaso, no último dia do ano de 2014. Era uma quinta-feira ensolarada e convidativa em Maceió e nós havíamos passado por engarrafamentos vários ao longo da cidade. As outras amigas nos esperavam na barraca de praia. A praia também nos esperava: estávamos atrasadas.

Passamos em casa para deixar o carro e buscar uma porção de outras coisas das quais não me recordo agora. Saímos andando sob o sol escaldante. Eu quase conseguia sentir a água salgada e quente do mar. Virando a esquina já poderia para vê-lo!

Foi aí que no meio do caminho me deparei com a fome. Inflexível. Seca. Se Drummond tivesse passado por ali, certamente desistiria de escrever sobre a natureza inanimada das pedras. Escreveria que havia fome no meio do caminho. Impiedosa. Eterna.

A fome parecia agonizar. A mão no peito tentava impedir um infarto, talvez, como uma súplica silenciosa para que o coração não parasse. Tremia. Parecia ter sofrido um derrame. Nem sei como é direito. Era apenas algo grave e irremediável, que não acontece todo dia, mas que em qualquer dia pode acontecer. Chorava e tentava, sem sucesso, balbuciar alguma palavra.

Uma mulher estava com o celular na mão. Ligava para o socorro. “Vão mandar uma ambulância” - me disse. Continuamos caminhando. Mas a fome já nos detinha. Sem nos dar conta estávamos mergulhadas naquela atmosfera até o pescoço. Era como areia movediça. Não conseguimos dar mais que 5 passos contados. Voltamos.

Depois de alguns minutos de especulação de alguns curiosos (derrame, AVC, infarto, doença mental, calor), a fome enfim conseguiu falar coisas inteligíveis. Fez um gesto com o braço para cima, pedindo que a levantássemos. Assim fizemos. Depois percebi que a calçada onde estivera deitada estava tão quente quanto o asfalto.

Por fim se apresentou sob o nome Edmilson. Idoso, sujo, usando roupas bastante gastas. Falava com uma voz muito aguda e fraca, que quase não se ouvia. Morava no interior de Alagoas, mais precisamente em Porto Real do Colégio, e viera para Maceió procurar emprego. Havia deixado mulher e 4 filhos. Chorava como uma criança. Estava na rua, sem ter onde ficar, tal qual as jangadas que ficam à deriva nesse mar azul.

Pôs fim às especulações: há exatamente 4 dias não se alimentava.

Inacreditável como algumas coisas podem ser tão simples e tão complicadas. Fome. Fome. Minha cabeça não parava de repetir essa insólita palavra de apenas quatro letras. Dei-me conta de que o ser humano e todos os demais animais a tem como a primeira sensação da vida. Conhece-se a fome antes de se conhecer o amor, o mundo e as dores. Ela urge para a sobrevivência.

Percebi que eu nunca soube o que era fome. Não assim pessoalmente. Não assim, me atingindo como uma onda furiosa. Também nunca soube o que é desespero, o que constatei após ouvir de Edmilson que pensou em se matar. Lembrei o que li certa vez sobre suicidas: eles não querem pôr fim à vida, querem pôr fim ao sofrimento. No caso dele, fazia jus à fome: sobrevivia, apenas, e provavelmente sua esposa, filhos, netos e bisnetos fariam o mesmo.

Ele chorou e senti suas lágrimas como se caíssem no meu próprio rosto. Quase chorei também, mas seriam lágrimas de impotência e vergonha do mundo. Como é possível alguém passar fome? Como é possível ninguém fazer nada? Como podemos não nos sentir responsáveis?

Compramos um lanche improvisado no posto de gasolina, enquanto outras pessoas pegavam quentinhas e comida em suas casas. Vi a fome se alimentar. Voraz. Quase se engasga. E não parou de chorar para comer: uma coisa não podia impedia a outra. Queria voltar para casa para tentar aplacar a fome dos seus, mas não tinha dinheiro na sacola de lona. A passagem custava 40 reais. Uma mulher tirou 50 reais do bolso e deu a ele. Outro homem deu 100. Chorou agradecido como se sua vida dependesse de 150 reais, exatamente o valor que paguei por duas festas aqui na capital das águas. Pegou o dinheiro, terminou de comer e foi ao ponto de ônibus.

O sol que antes queimava minha pele, agora eu já não mais sentia. Era como se eu estivesse sonhando, tamanha a surrealidade da situação. Fui à praia, ri, me diverti, ouvi uma porção de histórias, mas jamais parei de pensar no Edmilson, na fome, e nos 150 reais que talvez tenham salvado sua vida, pelo menos por algum tempo.

Se é certo que Drummond poderia desistir de escrever sobre as pedras, caso visse o Edmilson naquela situação, me parece certo que o poema não merecia ser modificado em sua inteireza. Aliás, poderia continuar essencialmente o mesmo.

"No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra.
Tinha uma pedra no meio do caminho.
No meio do caminho tinha uma pedra.”


A pedra era a fome.
Nada mais precisa ser dito.

domingo, 14 de dezembro de 2014

O maior medo de que se tem notícia.

Após uma série de eventos que aconteceram em minha vida durante os últimos tempos, e de estranhas reflexões sobre eles e como se processaram, descobri qual o meu maior medo - e provavelmente o maior medo das outras pessoas.

Tenho um série de medos que coleciono com certa simpatia, até. Acredito que não pode haver algo pior para uma pessoa do que o medo de ter medos e a angústia que isso traz. Não ter medo é a mesma coisa que não ser humano e tentar negar essa condição é um passo em direção ao sofrimento.

Não que eu goste de sentar em uma poltrona de avião e suar feito um cuscuz, numa demonstração clara de que não estou nem um pouco à vontade naquele objeto enorme e pesado, que até hoje não sei como consegue voar (e, a este ponto, prefiro nem saber).

Tampouco me sinto satisfeita em sair correndo e gritando, histérica, quando um inseto qualquer decide que sou a pista de pouso perfeita para suas manobras.

Não...tenho vergonha, até.

Por um longo tempo eu pensei que entre todos os meus medos, o pior deles fosse o medo da morte - o que explica o medo de avião, pois a queda é um meio infalível de cruzar a ponte entre a vida e o que houver após ela.

A morte, na verdade, me angustia porque é triste deixar tudo isso aqui e porque, se não houver nada além dela, a morte é o fim de todo amor. Por enquanto "o fim" é algo que não consigo conceber: com ressalva da vida, nada se vai para sempre e tudo acaba sendo transitório e possível de acontecer novamente.

Depois de muito refletir, percebi que a morte não é o maior medo que possuo. Nem de longe.

Cheguei à conclusão de que meu maior medo seria o medo do novo, o qual pude experimentar por diversas vezes após uma reviravolta que a vida me impôs - e pela qual agradeço sempre. A própria morte, o maior dos mistérios, é a coisa mais inédita que testemunharemos. Não há ideias, filosofia, provas ou depoimentos de como ela seja. Há apenas a fé.

Sentir esse medo das coisas que se apresentam a nossos sentidos pela primeira vez é algo saudável e necessário: o medo é o motivo de a espécie humana ter chegado até aqui, após enfrentar - pela fuga ou luta - toda a sorte de infortúnios através dos tempos. As pupilas se dilatam, para que possamos enxergar melhor, o coração acelera para bombear mais sangue, garantindo mais energia aos músculos e o corpo todo se prepara secretamente diante do perigo.

Provavelmente era assim que eu estava quando tive de mudar de cidade, de trabalho, deixar meus amigos e familiares em outro estado e voltar a morar sozinha. Tudo ao mesmo tempo e implacavelmente.

É certo que teve solidão e sensação de vazio. Às vezes me surpreendia com perguntas a respeito de como meus pais descobririam que teria acontecido algo comigo, se acontecesse. E assim por diante...

Só que eu tenho essa mania de ver correlação em tudo e o fim do ano me abriu os olhos para uma possibilidade bastante animadora: e se o medo não tiver que ser assim? E se as coisas novas sejam melhores e necessárias para minha jornada? E se eu encarasse o novo como uma possibilidade de driblar a minha morte?

Clarice Lispector já dizia que somente aquilo que está morto é que não muda.

Aliás, não preciso nem recorrer a Clarice.

E se a gente usasse para o medo da mudança a esperança luminosa que usamos para o Ano Novo?

Seria espetacular se observássemos as mudanças - todas elas - com os olhos no futuro e com a esperança de dias melhores, mais prósperos, com mais saúde e felicidade, oportunidades de crescimento e de ser sempre mais grato à vida.

Viver é mudar a cada dia e não dormir o sono profundo da mesmice e do apego a situações confortáveis e infelizes. 

Deixo aqui o testemunho de um amigo muito especial que já me confessou ter ultrapassado esse medo bobo de tudo o que é novo, não sem uma dose de esforço: "Mari, meu maior medo é olhar para trás e perceber que sou o mesmo Leo de 5 anos atrás, que não sou melhor nem aprendi mais nada e que penso exatamente da mesma maneira a respeito das coisas."

E foi assim que descobri o maior medo de que se tem notícia. Esqueçam os aviões, os insetos e até a própria morte: o maior medo é não mudar nunca.

Não vale a pena superá-lo.











sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Um fado para quem nunca viu.

No restaurante cheio de azulejos azuis e brancos, tipicamente portugueses, o cheiro da boa comida eleva os pensamentos ao paraíso. Em cada mesa uma vela, a emitir aquela luz fraca e confortável aos olhos, uma cesta de pães, azeite e uma taça de vinho branco.

Pedidos feitos, o espetáculo começa.

Uma senhora levanta-se da cadeira, junto com três músicos e seus violões. Ostenta um vestido longo e um xale bordado em preto e vermelho. Expressão tranquila no olhar. Ela não anda: parece flutuar sobre o chão. O velho vestido se arrastando nas brumas do ambiente. Lembra uma avó bondosa, que anda devagar e levemente para não acordar os netos que ainda dormem.

Dirige-se a um local situado no mesmo patamar do restaurante, mas que lembra um pequeno palco.

Neste mesmo momento, as luzes do restaurante começam a diminuir sua intensidade. O silêncio toma conta do espaço. Uma a uma as lâmpadas se apagam, até que reste apenas a luz das velas colocadas em cada mesa.

Todos se voltam aos músicas e à senhora, esperando o início do show.

Os violões iniciam os primeiros acordes e ela começa a cantar com seu sotaque português inconfundível. Canta de olhos fechados, mas não é por medo de encarar o público: precisa cantar dessa forma para que consiga reviver perfeitamente os amores, as dores e as felicidades contidas em cada nota.

Nada parece tão terno quanto a idosa que canta de olhos fechados num ambiente à luz de velas. O fado é triste, mas também a vida é triste em muitos momentos e é isso que dá graça à alegria. Permito-me acompanhá-la nessa viagem pelas estradas escuras dos olhos fechados e revivo todos os meus amores de uma só vez, perdoando a mim mesma.

Ela muda de tema e começa a cantar sobre sua mãe. A mesma tristeza da saudade aparece em sua voz. Eu penso na minha mãe e choro, desejando que ela estivesse vendo aquele espetáculo ao meu lado, vencendo magicamente os quilômetros que nos separavam naquele momento. Uma lágrima sorrateira ousa romper a  barreira da pálpebra. Volto a fechar os olhos.

O final das cantigas marca o retorno das luzes artificiais e das conversas nas mesas. Depois de alguns minutos mais uma rodada de música e rendição, pela qual espero sempre, ansiosa por me entregar.