terça-feira, 17 de setembro de 2013

O velho e o horizonte.


O velho sentou-se à frente do mar, observando as ondas. Umas batiam nas rochas e por ali ficavam, gerando uma espuma branca que secava e depois surgia novamente. Outras, livres, apenas quebravam na areia, fazendo a água chegar até o dedão do pé do velho. Água gélida, apesar do tempo quente.

Ficou assim observando as ondas, com aquele tipo de olhar nostálgico e resignado que a maioria dos velhos possui. Depois, fitou o horizonte e pôs-se a pensar no que havia além daquela linha. "Mais água", respondeu à pergunta implícita. Contudo, não queria saber exatamente o que havia naquele horizonte; queria saber mesmo é o que haveria além do seu horizonte, além da linha de sua vida.


Quando pequeno, a ideia de morrer e ir embora deste mundo parecia aterradora. A morte significava o mais pleno exercício da solidão. Sem sua família, seus amigos, seu cachorro de estimação e suas bolinhas de gude nenhum lugar lhe apetecia. Além disso, estaria à disposição de um Deus católico furioso, implacável e de memória tão boa que jamais deixaria passar impune aquela tarde, antes da missa, em que conseguira beber todo o vinho da taça da eucaristia. Sofreria castigos eternos por ter usado o sangue de Cristo como substância entorpecente - e por ter gostado da sensação - e por isso vislumbrava a imagem de um inferno muito quente e de muito sofrimento, do qual Deus e o Diabo eram sócios. Aquele, o juiz. Este, apenas um executor de sentenças.

Num ato inconsciente, enche a mão de terra e deixa que a areia fina caia entre seus dedos, como uma ampulheta a medir o tempo. Misterioso esse prazer estranho da areia fina caindo. Enche a mão com mais areia. Aperta um pouco. E mais uma vez quase todos os minúsculos grãos de areia conseguem retornar sem embaraços ao todo de onde saíram.

Seria sua vida igual àquilo tudo. Seriam sua vida, todos os seus prazeres, seus aprendizados, seus amores, seus afetos e suas construções reduzidos à uma areia fina que agora percebe escapulir entre seus dedos, enquanto empreende uma força tamanha na tentativa de não deixá-los?

A maré começa a encher e a água, agora, toca as pernas do velho.

No lugar em que a água chegou ele pega um punhado de areia e fecha, com força, a mão. Observa, sem qualquer espanto, que a areia misturada com água vira um pequeno bolinho compacto, que não mais se esvai, rolando na palma da mão até que o sol seque a areia novamente.

Conclui que mais triste do que partir para o mistério do horizonte é ver a vida partir de si antes do advento da morte. Percebe, com igual obviedade, que há uma parcela de coisas que não se pode deixar escorrer pelas mãos e que, por isso mesmo, devem ser regadas sempre, todos os dias: nossos amores, nossas famílias, todas as formas de afeto, os sorrisos (para se tornarem perpétuos), os aprendizados de todo dia, as lições que deixamos aos outros, a saudade (que deve ser sempre alimentada antes que se alimente da gente).

Pensando e assim, e olhando os horizontes que aparecem nas lentes gastas dos óculos, parece nada temer. Ao contrário: sente que é próxima a hora de descobrir o mistério, de saber o que se passa do lado de lá (se é que o tal "lado de lá" existe). Não estaria mais só, pois tantas pessoas queridas já cruzaram o aquele horizonte. Quando jovem sempre imaginou qual sentimento moveu os primeiros habitantes desta terra ao verem caravelas se aproximando e ficando maiores no mar. Haveria monstros no seu horizonte? Ou a possibilidade de algo surpreendente? Tudo que se construiu aqui fica, ou só aquilo que foi verdadeiramente semeado? Há um abismo no horizonte? Ou somente há uma ponte?

Era as perguntas que agora fazia a si mesmo, mas nem tentou responder. Voltou a olhar as ondas. Ainda viver para vê-las era algo que também não precisava de resposta. Entre as duas coisas, preferiu a segunda. As ondas sempre continuam: pra elas não há horizonte algum.