Conheci a fome por
acaso, no último dia do ano de 2014. Era uma quinta-feira ensolarada
e convidativa em Maceió e nós havíamos passado por engarrafamentos
vários ao longo da cidade. As outras amigas nos esperavam na barraca
de praia. A praia também nos esperava: estávamos atrasadas.
Passamos em casa para
deixar o carro e buscar uma porção de outras coisas das quais não
me recordo agora. Saímos andando sob o sol escaldante. Eu quase
conseguia sentir a água salgada e quente do mar. Virando a esquina
já poderia para vê-lo!
Foi aí que no meio do
caminho me deparei com a fome. Inflexível. Seca. Se Drummond tivesse
passado por ali, certamente desistiria de escrever sobre a natureza
inanimada das pedras. Escreveria que havia fome no meio do caminho.
Impiedosa. Eterna.
A fome parecia
agonizar. A mão no peito tentava impedir um infarto, talvez, como
uma súplica silenciosa para que o coração não parasse. Tremia.
Parecia ter sofrido um derrame. Nem sei como é direito. Era apenas
algo grave e irremediável, que não acontece todo dia, mas que em
qualquer dia pode acontecer. Chorava e tentava, sem sucesso,
balbuciar alguma palavra.
Uma mulher estava com o
celular na mão. Ligava para o socorro. “Vão mandar uma
ambulância” - me disse. Continuamos caminhando. Mas a fome já nos
detinha. Sem nos dar conta estávamos mergulhadas naquela atmosfera
até o pescoço. Era como areia movediça. Não conseguimos dar mais
que 5 passos contados. Voltamos.
Depois de alguns
minutos de especulação de alguns curiosos (derrame, AVC, infarto,
doença mental, calor), a fome enfim conseguiu falar coisas
inteligíveis. Fez um gesto com o braço para cima, pedindo que a
levantássemos. Assim fizemos. Depois percebi que a calçada onde
estivera deitada estava tão quente quanto o asfalto.
Por fim se apresentou
sob o nome Edmilson. Idoso, sujo, usando roupas bastante gastas.
Falava com uma voz muito aguda e fraca, que quase não se ouvia.
Morava no interior de Alagoas, mais precisamente em Porto Real do
Colégio, e viera para Maceió procurar emprego. Havia deixado mulher
e 4 filhos. Chorava como uma criança. Estava na rua, sem
ter onde ficar, tal qual as jangadas que ficam à deriva nesse mar azul.
Pôs fim às
especulações: há exatamente 4 dias não se alimentava.
Inacreditável como
algumas coisas podem ser tão simples e tão complicadas. Fome. Fome.
Minha cabeça não parava de repetir essa insólita palavra de apenas
quatro letras. Dei-me conta de que o ser humano e todos os demais
animais a tem como a primeira sensação da vida. Conhece-se a fome
antes de se conhecer o amor, o mundo e as dores. Ela urge para a
sobrevivência.
Percebi que eu nunca
soube o que era fome. Não assim pessoalmente. Não assim, me
atingindo como uma onda furiosa. Também nunca soube o que é
desespero, o que constatei após ouvir de Edmilson que pensou em se
matar. Lembrei o que li certa vez sobre suicidas: eles não querem
pôr fim à vida, querem pôr fim ao sofrimento. No caso dele, fazia
jus à fome: sobrevivia, apenas, e provavelmente sua esposa, filhos,
netos e bisnetos fariam o mesmo.
Ele chorou e senti suas
lágrimas como se caíssem no meu próprio rosto. Quase chorei
também, mas seriam lágrimas de impotência e vergonha do mundo.
Como é possível alguém passar fome? Como é possível ninguém
fazer nada? Como podemos não nos sentir responsáveis?
Compramos um lanche
improvisado no posto de gasolina, enquanto outras pessoas pegavam
quentinhas e comida em suas casas. Vi a fome se alimentar. Voraz.
Quase se engasga. E não parou de chorar para comer: uma coisa não
podia impedia a outra. Queria voltar para casa para tentar aplacar a
fome dos seus, mas não tinha dinheiro na sacola de lona. A passagem
custava 40 reais. Uma mulher tirou 50 reais do bolso e deu a ele.
Outro homem deu 100. Chorou agradecido como se sua vida dependesse de
150 reais, exatamente o valor que paguei por duas festas aqui na
capital das águas. Pegou o dinheiro, terminou de comer e foi ao
ponto de ônibus.
O sol que antes
queimava minha pele, agora eu já não mais sentia. Era como se eu
estivesse sonhando, tamanha a surrealidade da situação. Fui à
praia, ri, me diverti, ouvi uma porção de histórias, mas jamais
parei de pensar no Edmilson, na fome, e nos 150 reais que talvez
tenham salvado sua vida, pelo menos por algum tempo.
Se é certo que
Drummond poderia desistir de escrever sobre as pedras, caso visse o
Edmilson naquela situação, me parece certo que o poema não merecia
ser modificado em sua inteireza. Aliás, poderia continuar
essencialmente o mesmo.
"No meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio
do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho
tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei
desse acontecimento
na vida de minhas
retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que
no meio do caminho tinha uma pedra.
Tinha uma pedra no meio
do caminho.
No meio do caminho
tinha uma pedra.”
A pedra era a fome.
Nada mais precisa ser dito.