quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Drummond e o dia em que eu conheci a fome.

Conheci a fome por acaso, no último dia do ano de 2014. Era uma quinta-feira ensolarada e convidativa em Maceió e nós havíamos passado por engarrafamentos vários ao longo da cidade. As outras amigas nos esperavam na barraca de praia. A praia também nos esperava: estávamos atrasadas.

Passamos em casa para deixar o carro e buscar uma porção de outras coisas das quais não me recordo agora. Saímos andando sob o sol escaldante. Eu quase conseguia sentir a água salgada e quente do mar. Virando a esquina já poderia para vê-lo!

Foi aí que no meio do caminho me deparei com a fome. Inflexível. Seca. Se Drummond tivesse passado por ali, certamente desistiria de escrever sobre a natureza inanimada das pedras. Escreveria que havia fome no meio do caminho. Impiedosa. Eterna.

A fome parecia agonizar. A mão no peito tentava impedir um infarto, talvez, como uma súplica silenciosa para que o coração não parasse. Tremia. Parecia ter sofrido um derrame. Nem sei como é direito. Era apenas algo grave e irremediável, que não acontece todo dia, mas que em qualquer dia pode acontecer. Chorava e tentava, sem sucesso, balbuciar alguma palavra.

Uma mulher estava com o celular na mão. Ligava para o socorro. “Vão mandar uma ambulância” - me disse. Continuamos caminhando. Mas a fome já nos detinha. Sem nos dar conta estávamos mergulhadas naquela atmosfera até o pescoço. Era como areia movediça. Não conseguimos dar mais que 5 passos contados. Voltamos.

Depois de alguns minutos de especulação de alguns curiosos (derrame, AVC, infarto, doença mental, calor), a fome enfim conseguiu falar coisas inteligíveis. Fez um gesto com o braço para cima, pedindo que a levantássemos. Assim fizemos. Depois percebi que a calçada onde estivera deitada estava tão quente quanto o asfalto.

Por fim se apresentou sob o nome Edmilson. Idoso, sujo, usando roupas bastante gastas. Falava com uma voz muito aguda e fraca, que quase não se ouvia. Morava no interior de Alagoas, mais precisamente em Porto Real do Colégio, e viera para Maceió procurar emprego. Havia deixado mulher e 4 filhos. Chorava como uma criança. Estava na rua, sem ter onde ficar, tal qual as jangadas que ficam à deriva nesse mar azul.

Pôs fim às especulações: há exatamente 4 dias não se alimentava.

Inacreditável como algumas coisas podem ser tão simples e tão complicadas. Fome. Fome. Minha cabeça não parava de repetir essa insólita palavra de apenas quatro letras. Dei-me conta de que o ser humano e todos os demais animais a tem como a primeira sensação da vida. Conhece-se a fome antes de se conhecer o amor, o mundo e as dores. Ela urge para a sobrevivência.

Percebi que eu nunca soube o que era fome. Não assim pessoalmente. Não assim, me atingindo como uma onda furiosa. Também nunca soube o que é desespero, o que constatei após ouvir de Edmilson que pensou em se matar. Lembrei o que li certa vez sobre suicidas: eles não querem pôr fim à vida, querem pôr fim ao sofrimento. No caso dele, fazia jus à fome: sobrevivia, apenas, e provavelmente sua esposa, filhos, netos e bisnetos fariam o mesmo.

Ele chorou e senti suas lágrimas como se caíssem no meu próprio rosto. Quase chorei também, mas seriam lágrimas de impotência e vergonha do mundo. Como é possível alguém passar fome? Como é possível ninguém fazer nada? Como podemos não nos sentir responsáveis?

Compramos um lanche improvisado no posto de gasolina, enquanto outras pessoas pegavam quentinhas e comida em suas casas. Vi a fome se alimentar. Voraz. Quase se engasga. E não parou de chorar para comer: uma coisa não podia impedia a outra. Queria voltar para casa para tentar aplacar a fome dos seus, mas não tinha dinheiro na sacola de lona. A passagem custava 40 reais. Uma mulher tirou 50 reais do bolso e deu a ele. Outro homem deu 100. Chorou agradecido como se sua vida dependesse de 150 reais, exatamente o valor que paguei por duas festas aqui na capital das águas. Pegou o dinheiro, terminou de comer e foi ao ponto de ônibus.

O sol que antes queimava minha pele, agora eu já não mais sentia. Era como se eu estivesse sonhando, tamanha a surrealidade da situação. Fui à praia, ri, me diverti, ouvi uma porção de histórias, mas jamais parei de pensar no Edmilson, na fome, e nos 150 reais que talvez tenham salvado sua vida, pelo menos por algum tempo.

Se é certo que Drummond poderia desistir de escrever sobre as pedras, caso visse o Edmilson naquela situação, me parece certo que o poema não merecia ser modificado em sua inteireza. Aliás, poderia continuar essencialmente o mesmo.

"No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra.
Tinha uma pedra no meio do caminho.
No meio do caminho tinha uma pedra.”


A pedra era a fome.
Nada mais precisa ser dito.