Começa com as bonecas estilo Bebê. Essas lindas bonecas rosadas, rechonchudas, fofinhas, com apenas uma mecha de cabelo loiro na cabeça. É com elas que aprendemos, aos 3, 4 ou 5 anos de idade, qual o nosso lugar no mundo.
Nada contra as bonecas. Eu, particularmente, é que achava muito sem graça brincar com elas e acabava, quase sempre, saindo pra brincar na rua. Mas a questão é que elas mostram muita coisa. Não só elas, mas as panelinhas, o ferro de passar de brinquedo, o forninho...
Que menina nunca ninou um Bebê desses? Que menina nunca pegou essa boneca e encostou contra o peito, como que amamentando? O interessante é que os pais de hoje em dia condenam de maneira drástica as músicas e programas de TV que tornam a criança um pequeno adulto, mas acham super normal e saudável que uma criança amamente um bebê de mentira...
Lembro-me que nas poucas vezes em que brinquei de boneca e casinha, a figura do homem não existia na brincadeira. Não só porque os meninos não queriam brincar conosco, mas porque a própria figura do pai do bebê era dispensável: ele só "aparecia" bem mais tarde, após fazer a comidinha...
Parece familiar?
Aí vocês me dizem que estou sendo exagerada e que as crianças somente fazem o que vêem os pais fazerem. O problema é que a criança não apenas reproduz, mas aprende que aquilo é o caminho natural de todas as mulheres na vida.
Depois piora. Vem as tarefas domesticas, que nós temos de saber executar com maestria, pois temos uma "vocação natural".
Vem a descoberta da sexualidade e a imposição de um senso quase religioso de pudor, ao passo que nossos irmãos, primos, e parentes homens gozam (melhor verbo não há) de suas vidas mundanas promíscuas sem que qualquer pessoa os condene ou julgue. Afinal de contas, a "chave que foi feita pra abrir muitas fechaduras é chamada chave mestra, mas a fechadura que se abre com qualquer chave é inútil", como diriam os filósofos acéfalos do Facebook.
Vem as propagandas de cerveja, os carnavais com seus beijos forçados, as formas nojentas como os homens se dirigem a nós na rua e a forma mais repugnante ainda como se justificam - " Mas também ela tava com roupa de academia, indo pra academia. Queria o quê?".
E quando falamos sobre isso, nos perguntam se não gostamos de "elogios". A quem não sabe o que isso significa, elogio quer dizer o enaltecimento da qualidade de alguém ou o louvor a alguma virtude. Gostamos de ser elogiadas como inteligentes, gentis, simpáticas e mesmo bonitas, mas sinceramente "Delícia" e "Te pegava toda" (para usar termos bem leves) não são elogios. Então não finjam que não sabem o quanto isso nos ofende.
Vem o medo de ser estuprada, que é diferente do medo de ser assaltada ou mesmo de morrer. É o medo de que nos tirem a porção mais intima que conhecemos de nós mesmas e não se trata de um órgão genital: a porção mais íntima de nos é o nosso próprio querer. Há quem queira tirar isso.
Vem o trabalho, os salários ainda mais baixos, a censura em relação a amizades com colegas homens, os olhares desrespeitosos desses próprios colegas nos corredores. Vocês pensam que não percebemos. Só que percebemos e fingimos que não.
Vem as propagandas de carro - nas quais quase nunca ocupamos a posição atrás do volante e estamos, na maior parte do tempo, com roupas atraentes mostrando o exterior do veículo, de cerveja - dispensa comentários, de produtos de limpeza em geral e inseticidas - porque tudo o que sabemos e devemos fazer é cuidar das nossas famílias.
Vem as violências psicológicas e físicas - sobre as quais não podemos dizer nada a ninguém, preconceitos ridículos alimentados por gerações, reclamações várias sobre a quantidade de sal na comida ou a pouca quantidade de comida na mesa, até nos sentirmos tão inferiores quanto a menor das espécies.
Por fim, como se não bastasse, vem os argumentos utilizados por quem acha isso de "machismo" algo que não existe mais e super ultrapassado.
"Elas agora querem se igualar aos homens.".
"Machismo só é bom quando aproveita a elas, como na hora de pagar conta.".
"Queria ver se fosse pra tratar igual a homem.".
"Falam que querem ser iguais mas não querem carregar mala.".
"A culpa de as crianças serem assim com certeza é das mães, pois não estão mais em casa educando-as."
"Se não fosse elogiada na rua ia achar ruim"..
E a melhor de todas:
" Daqui a pouco vamos viver o feminazismo."
Se você concorda com uma dessas frases que citei logo acima, siga meu conselho: crie sua filha, dê a ela um Bebê de brinquedo, ensine-a sobre suas "vocações naturais", faça com ela seja a fechadura de uma chave só. Mas também "seja homem" para vê-la sofrer, apanhar, ser humilhada na rua após sair de casa com um short mais curto, receber um salário risível para executar a mesma atividade que um colega executa, abortar em clínica clandestina eventualmente,...e assim vai.
Mas não é sempre esse o caminho. Claro que nos deparamos com outras opções que nos permitam viver de maneira mais digna. E então? Queimar todos os Bebês de brinquedo ou ensinar um pouco de respeito? Qual é mais difícil?