sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Comam bolachas do chão.


-Não come a bolacha do chão, menino! Faz mal! - diziam as mães, os pais, as tias, as primas mais velhas, os primos, os irmãos e todos os adultos que conviviam com você na época da sua infância.

-O chão é sujo, tem micróbios, pode dar verme.

Sabe o que me encantava na bolacha que caía no chão? Sua persistência em não ser comida por mim. Era como se, na minha cabeça, o ato da bolacha fosse um ato de rebeldia contra esse sistema que impunha a mim comer e a ela ser comida, sem piedade. Quando uma me escapava das mãos, ou do pacote, e caía no chão, era seu último ato de defesa. Questão de honra comê-la.

Mas aí aparece esse adulto, que parece agir em conluio com a bolacha. Eu imaginava o alimento vitorioso, olhando para mim triunfante dentro da lata do lixo - “Prefiro ir pro lixo a ser comida por você”.

Às vezes a frustração era muito grande, principalmente quando eu punha geleia, patê ou mesmo manteiga e a bolacha – só de raiva – caía com o lado besuntado virado para o chão. Às vezes eu raspava um pouco a sujeirinha (“Eca!” - você pensou; mas já deve ter feito igual) e comia mesmo assim. Outras vezes a bolacha ganhava, ao cair em cima da terra do quintal. Era demais pra mim.

Aquela bolacha era um pedaço de vida e, como todo pedaço de vida e prazer, continha seus riscos.

Há momentos assim, em que as situações nos impulsionam a comer ou jogar a bolacha fora. Valerá a pena? Essa é a grande questão.

Aliás, por que crianças muito pequenas, com mais razão, não podem comer comida do chão? Porque ainda não adquiriram resistência. Quando a gente vai comendo coisa que pegou no chão, aqueles micróbios já fazem parte da gente, viram anticorpos. O nosso corpo e a nossa alma aprendem a lidar com eles.

É assim com as bolachas do chão, os acarajés cheios de coliformes fecais que comemos em Salvador, os açaís que podem ter “barbeiros” que transmitem doença de chagas, os caldos de cana que passam pelas peneiras sujas e pela máquina de prensar já encardida, os quitutes daquela feirante que tem unhas pretas - e tudo isso tem muito mais sabor, vamos admitir.

E é assim também com as inseguranças da vida adulta: os medos dos términos, dos recomeços, dos abandonos, de perder coisas que nos são caras, de mudar de trajetória.

A questão é que o pacote de bolacha da vida é um só e algumas bolachas já vem quebradas, então a gente já começa perdendo. Outras, já caem de nossas mãos direto na lama e não podemos recuperar. Mas e aquelas que caem no chão de casa?

Essas eu como mesmo (!) e você pode até me chamar de “porca”. Se já me causaram muito mal, hoje não mais. Além disso, no chão da minha casa só pisa gente conhecida, então já conheço as sujeiras de todos. Criei meus anticorpos e nunca mais tive verme.

Então, se eu puder dar um conselho a essas crianças cheias de assepsia e sabonete antibacteriano é esse: comam as bolachas do chão de casa quando nenhum adulto estiver vendo. Não perguntem se podem fazer isso. Apenas comam. Saboreiem a coragem, enquanto há tempo. Corram riscos: é disso que a vida é feita e um belo dia só vai te sobrar uma única bolacha no fundo do pacote. E essa, creiam, vocês não vão querer perder de jeito nenhum...