-Não
come a bolacha do chão, menino! Faz mal! - diziam as mães, os pais,
as tias, as primas mais velhas, os primos, os irmãos e todos os
adultos que conviviam com você na época da sua infância.
-O
chão é sujo, tem micróbios, pode dar verme.
Sabe
o que me encantava na bolacha que caía no chão? Sua persistência
em não ser comida por mim. Era como se, na minha cabeça, o ato da
bolacha fosse um ato de rebeldia contra esse sistema que impunha a
mim comer e a ela ser comida, sem piedade. Quando uma me escapava das
mãos, ou do pacote, e caía no chão, era seu último ato de defesa.
Questão de honra comê-la.
Mas
aí aparece esse adulto, que parece agir em conluio com a bolacha. Eu
imaginava o alimento vitorioso, olhando para mim triunfante dentro da
lata do lixo - “Prefiro ir pro lixo a ser comida por você”.
Às
vezes a frustração era muito grande, principalmente quando eu punha
geleia, patê ou mesmo manteiga e a bolacha – só de raiva – caía
com o lado besuntado virado para o chão. Às vezes eu raspava um
pouco a sujeirinha (“Eca!” - você pensou; mas já deve ter feito
igual) e comia mesmo assim. Outras vezes a bolacha ganhava, ao cair
em cima da terra do quintal. Era demais pra mim.
Aquela
bolacha era um pedaço de vida e, como todo pedaço de vida e prazer,
continha seus riscos.
Há
momentos assim, em que as situações nos impulsionam a comer ou
jogar a bolacha fora. Valerá a pena? Essa é a grande questão.
Aliás,
por que crianças muito pequenas, com mais razão, não podem comer
comida do chão? Porque ainda não adquiriram resistência. Quando a
gente vai comendo coisa que pegou no chão, aqueles micróbios já
fazem parte da gente, viram anticorpos. O nosso corpo e a nossa alma
aprendem a lidar com eles.
É
assim com as bolachas do chão, os acarajés cheios de coliformes fecais que comemos em
Salvador, os açaís que podem ter “barbeiros” que transmitem
doença de chagas, os caldos de cana que passam pelas peneiras sujas
e pela máquina de prensar já encardida, os quitutes daquela
feirante que tem unhas pretas - e tudo isso tem muito mais sabor, vamos admitir.
E
é assim também com as inseguranças da vida adulta: os medos dos términos,
dos recomeços, dos abandonos, de perder coisas que nos são caras,
de mudar de trajetória.
A
questão é que o pacote de bolacha da vida é um só e algumas
bolachas já vem quebradas, então a gente já começa perdendo.
Outras, já caem de nossas mãos direto na lama e não podemos
recuperar. Mas e aquelas que caem no chão de casa?
Essas
eu como mesmo (!) e você pode até me chamar de “porca”. Se já
me causaram muito mal, hoje não mais. Além disso, no chão da minha
casa só pisa gente conhecida, então já conheço as sujeiras de
todos. Criei meus anticorpos e nunca mais tive verme.
Então,
se eu puder dar um conselho a essas crianças cheias de assepsia e
sabonete antibacteriano é esse: comam as bolachas do chão de
casa quando nenhum adulto estiver vendo. Não perguntem se podem
fazer isso. Apenas comam. Saboreiem a coragem, enquanto há tempo. Corram riscos: é
disso que a vida é feita e um belo dia só vai te sobrar uma única
bolacha no fundo do pacote. E essa, creiam, vocês não vão querer perder de jeito nenhum...