sábado, 27 de abril de 2013

"Pode mastigar?"

Quando eu tinha uns 8 anos de idade, minha mãe decidiu que era hora de eu começar a frequentar o catecismo. Não sei porque cargas d'água tanta urgência, afinal ela podia esperar eu querer frequentar o catecismo quando começasse a pensar nessas coisas de Deus e de que religião seguir, mas o fato é que eu tinha de fazer logo a primeira comunhão. E, pra isso acontecer, tinha de ir pro catecismo.

Pra quem nunca foi, o catecismo é tipo uma escola que ensina coisas da bíblia e da Igreja Católica. Do gênesis à ressurreição de Cristo - não vai até o apocalipse porque dá medo e ninguém entende aquilo - nós escutávamos as historinhas, cantávamos músicas e brincávamos muito. A professora dizia que todos tínhamos de ir para o catecismo pois assim seríamos boas crianças para nossos pais.

Mas eu, ah, eu ia mesmo por causa de um pé de goiaba que tinha em frente à sala de aula. E por causa do mato. Lá era que eu brincava de aventura, pois não tinha árvore em casa. E quantas vezes saí de casa mais cedo só para comer goiaba na árvore da paróquia! Era uma delícia. Acho que é por isso que catecismo tem gosto de goiaba madura.

Além das goiabas, eu adorava a época da páscoa. Mais pelo suco de uva e pelo pãozinho que nos davam do que pelo simbolismo da história. Desculpem-me, mas sempre fui uma criança franca. Até hoje. Além disso, se o próprio Cristo está sabendo disso, por que eu iria querer esconder logo de vocês? Aproveito para confessar que ia à missa das crianças, às 10 horas da manhã dos domingos, para comer o pãozinho também - no lugar das hóstias tinha pãozinho.

E, por falar em confessar, lembro-me com que terror eu recebi a notícia de que teria de me confessar com o padre para poder comungar pela primeira vez. Na minha cabeça, o padre, sendo o representante de Deus na Terra, devia conversar com Ele sobre a punição que eu receberia e isso me enchia de medo. E se Deus não me perdoasse por ter mentido para a minha mãe ou batido no coleguinha, ou por frequentar o catecismo só por causa de um pé de goiaba? Mas ele me perdoou e minha punição foram só 10 aves marias, que eu rezei bem rapidinho, quase emendando uma na outra.

Assim, de tanto frequentar o catecismo, eis que chegou o dia da primeira comunhão. Igreja lotada. Eu e os demais coleguinhas vestindo branco. Pela primeira vez nós íamos comungar! Qual seria a sensação? Sentiríamos o sopro da graça divina em nossos corações? Ou só o gosto da hóstia? Peraí, hóstia tem gosto? E no meio desses pensamentos, minha hora de comungar foi chegando e antes de pegá-la das mãos do padre, a pergunta veio quase sem ser notada:
- Padre, pode mastigar?

Ele apenas riu e me entregou a hóstia, fazendo um gesto negativo com a cabeça. Entendi. Apenas deixei a hóstia derreter no céu da boca e fiz uma oração a Cristo, que me olhava lá de cima, no céu do mundo.

E aos que perguntam as coisas que aprendi no catecismo e na Igreja eu respondo: a primeira é que Deus é bom, muito bom; a segunda é que Jesus não gosta de ser mastigado.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Constatações de um bacharel - um guia para o calouro de Direito.

1. Você entra no curso de Direito acreditando que pode consertar o mundo. Depois é que você percebe que o curso não tem absolutamente nada a ver com aquele seriado norte-americano que você assistia.

2. Um dia, muito triste, você vai fazer a maior das descobertas que o curso de Direito te reserva: a de que Justiça e Direito não necessariamente andam juntos. A Justiça pode ser o seu objetivo pessoal e profissional, mas, por vezes, o Direito, longe de realizá-la, passa a ser só mais um instrumento de manutenção de toda a sorte de misérias que vemos por aí.

3. Igualmente abalado, você perceberá que há muitas formas legais de se fazer algo ilegal.

4. Mais cedo ou mais tarde, estudando processo legislativo ou analisando uma decisão de um tribunal, você vai saber que, muitas vezes, tudo dependerá exclusivamente da política e do jogo sujo de poder que não é "privilégio" só dos Poderes Executivo e Legislativo.

5. Você vai aprender que no Direito TODA regra tem exceção. Até as cláusulas pétreas (vide tópico anterior).

6.  Um dia, se você levar a sério o que você aprende em Direito Penal, deixará de assistir a programas jornalísticos sensacionalistas, tipo o do Datena, por saber que tantas vezes os criminosos que são mostrados ali não chegam aos pés dos grandes bandidos que patrocinam a TV brasileira e que se encontram sentados no Congresso Nacional.

7. Da indumentária ao palavreado, as profissões do Direito são as que mais favorecem a pessoa ser metida a besta.

8. Se você quiser prestar concurso público vai ver que, em vez de procurar por raposas, os concursos selecionam papagaios.

9. Se você quiser advogar, você vai ver que você pode ter talento e nenhum técnica; pode ter técnica e nenhum talento; mas se não tiver uma boa relação com o serventuário da justiça você não tem nada.

10. Apesar de tudo isso e da eventual vontade de largar o curso, um dia você vai vislumbrar o fato de que o Direito é uma das profissões nas quais você, sozinho, pode fazer uma grande diferença na vida de uma outra pessoa. E nada mais vai importar: a política, o jogo sujo e a injustiça ficarão para trás. "Uma única voz honesta é capaz de superar a de uma multidão". Acredite nisso.


sábado, 20 de abril de 2013

Das exigências.

Que em vez de me chamar para sair, me peça para ficar.
Que me estilhace em mil outras de mim, em vez de me completar.
Que em vez de abrir a porta do carro, abra a porta de sua vida inteira.
E que não me traga flores. A partir de hoje eu só aceito buquê de sonhos.
Sorrir é muito pouco. Quero quem me faça gargalhar, rir mesmo, rir muito, de mim, dos meus próprios erros e de todas as minhas futilidades.
Em vez de promessas ocas e inúteis, quem me traga um oceano de verdades, até as que eu nunca quis ouvir.
Que em vez de me dar sentido, me retire a sensatez, a lucidez, me arranhe a tez e me tente, me acalente, depois me oriente só pra eu perder meu prumo. Só pra eu mudar meu rumo.
Não quero fotografias,
Não quero provas para mostrar ao mundo.
Quero alguém que seja tão só o porta-retrato dos momentos que eu fotografo,
Que invento e que gravo só com a minha memória.
Tampouco quero ter uma história. Antes um conto, uma crônica, uma anedota, algo fácil de ler.
Algo que nos traduza com humor,
Com amor,
Algo que eu consiga escrever.
Não procuro o ideal insosso.
Procuro o surpreendente.
O que vive,
O que pulsa,
O que grite e me chame!
Que queira ser a gente em vez de meu só
Que não querendo mais, me fale sem dó
Mas que de qualquer parte de mim nunca se esqueça.
Não quero apenas que me ame.
Quero alguém que me conheça.

Do que parece ser o amor.


Quase nada importa o resto, quando se ama.
Até a vírgula
Mais atroz e soberana
Torna-se indispensável.
"Quero ser teu, amor." - você se apodera de mim.
"Quero ser teu amor." - você me amando sem fim.
Muda o sentido, e a vontade é a mesma.
Insaciável.

***

Mas talvez amar seja isso mesmo:
Ser capaz de fazer qualquer coisa
Na intenção do ser amado.
Saber fazer, até, com palavras,
Um sol surgir em plena trovoada,
Em plena chuva do mês de maio.
E, no meio do silêncio e do nada,
O amor se fazer ouvir
Ao som dos versos de um raio.



quinta-feira, 4 de abril de 2013

Faxina.

Um dia eu arrumei aquela gaveta velha.
E tirei de dentro dela
Aquela antiga caixa de recordações,
E dentro tinha mais coisa do que só poeira:
Um botão de calça colorido,
Mas já desbotado;
Um papel de bombom amassado;
A única pétala de uma rosa morta.
E no fundo da caixa,
Sorrindo pela alma,
Você numa foto.
Meio esquecido, mas ainda meu;
E mesmo depois de tudo,
Essa lembrança me doeu
Como doem as cicatrizes do que já foi curado.
E todos os dias eu passei a te encontrar:
Abria a caixa,
Olhava dentro dela
E entre tanta coisa antiga
Você continuava lá.
E cada vez era uma nova lembrança,
Cada dia uma nova esperança,
Um novo medo
E uma nova angústia pela sua falta.
Até que o tempo passou tão ligeiro
E em mim criou mudanças tão drásticas
Que esqueci-me da caixa,
Das recordações
E até de você.
Um dia resolvi arrumar este velho coração.
E no meio de tanta poeira
De tanta emoção passada
Eu nem podia imaginar:
Que debaixo de uma mágoa,
Entre o amor e a pura raiva
Você continuava lá.

(E é por isso que eu prefiro minha vida bagunçada.)