quarta-feira, 26 de junho de 2013

Pátria amada.




Sempre tive adoração pelo Hino Nacional. A melodia é linda e a letra, se não é das mais fáceis de serem entendidas, com suas construções invertidas e metáforas complexas, também não se torna um obstáculo à produção de um sentimento bom toda vez que a ouvimos.

Talvez porque o nosso hino nacional tem algo de peculiar em relação a diversos hinos ao redor do mundo. É que diferentemente dos demais, que fazem menção a guerras, batalhas, revoluções, o nosso faz expressa menção a nada mais nada menos que o amor.

Parem para prestar atenção.

O que pode ser mais bonito e significativo do que dizer, mais de uma vez, que a nossa pátria é amada?

O Brasil, para nós, assume essa condição de ser amado, o que supera qualquer chance, qualquer possibilidade de coisificação de sua natureza. Amamos nosso país como amamos às pessoas: não por sentimento de posse mas pela mais completa sensação de bem-estar que o outro nos proporciona. Mário Quintana já disse que "amor é quando a gente mora um no outro". Moramos no Brasil e ele em nós, onde quer que nossos pés estejam fincados.

Está certo que às vezes nos decepcionamos e passamos a acreditar que talvez seja melhor deixar esta terra, este espaço, e galgar caminhos diversos que nos levem a uma vida um tanto mais confortável, com menos violência, menos corrupção, menos miséria.

Mas, pensando bem, talvez a nossa pátria é que queira ir embora da gente e em maior ou menor grau nós é que devemos desculpas a ela. Desculpas por ter deixado tanta coisa acontecer sob nossos olhares acomodados; por ver com resignação uns poucos bandidos se apossarem do que é de todos nós por direito; por ter desaprendido a brigar por ela como um amante apaixonado luta bravamente e corre todos os perigos para proteção do ser amado.

Só que o amor é paciente e bondoso e nunca é tarde para pedir perdão.

Nessas últimas semanas este país pôde experimentar a força desse sentimento. E nesses dias, o Congresso Nacional, à semelhança das margens do Ipiranga, também ouviu os brados, os gritos de desculpa, de um povo verdadeiramente heroico.

Não foram vinte centavos, a PEC 37 ou o clamor pela reforma política que nos uniu e nos levou a marchar de maneira impávida - corajosa - pelas mais variadas ruas de tantos estados do Brasil. Não foi por essa "merreca", como disse um jornalista que aqui não merece ser citado, mas foi pelo mais puro amor que nós levantamos de nosso conforto, nossas camas e sofás para defender nossa amada.

Provamos que não somos filhos ingratos e que estamos prontos a cuidar dessa terra maravilhosa e do que pode nos fazer melhores. Provamos que podemos tomar "partido" sem precisar de partido político e vimos que, vergonhosamente, embora muitos não precisem de R$ 0,20, ainda há uma parcela da população que conta moedas para passar o mês.

Não é preciso um motivo individual nem que sejamos diretamente afetados pelo aumento das passagens do transporte público: é preciso tão somente amar cada pessoa que faz parte desse universo de brasileiros e reconhecer em cada olhar necessitado o pedido de ajuda que nos dirige a nação. Afinal de contas, um filho dessa pátria idolatrada não pode fugir à luta.

E lutamos por ela. Mesmo com medo ou desestimulados. Mesmo com a presença de alguns policiais despreparados e ignorantes. Mesmo com a opinião desfavorável dos que se dizem intelectuais e democráticos. Mesmo com o risco à segurança própria. É porque o hino já nos disse que quem adora a pátria não teme nem mesmo a própria morte.

Provamos que somos maiores que o poder de quem sempre achou que detém o poder. Maiores que os muros de medo que nos separavam de nossa esperança e de nossa força de vontade. Maiores que a indiferença com as quais nos tratam. Ao mesmo tempo somos partes muito pequenas de um país de proporções continentais, mas jamais seremos insignificantes. Nós formamos um gigante chamado Brasil, que não assume esta condição apenas por força das circunstâncias, mas sim por sua própria natureza.

Nossos gritos ecoaram em todos os extremos desse país e foram ouvidos por todos, da Presidente à Câmara dos Deputados: os políticos viram que são eles que devem nos temer e não o oposto. A pátria, apesar de ser uma mãe gentil, não é condescendente com o comportamento dos que tentam, com todas as forças, subvertê-la e destruí-la.

Nós é que somos a força desse país! Mostramos que Brasília é nossa casa e que não somos apenas sombras projetadas nas cúpulas do Congresso Nacional, como se viu durante as manifestações. Somos corpos, somos braços fortes, somos peito e grito. Somos vozes.

E após ouvir nossa voz, uma Presidente nos fala em cadeia nacional que não deveríamos depredar o patrimônio público, mesmo quando a maior degradação de nosso patrimônio ocorre em Brasília, em salas com carpete e café de boa qualidade. Disse que deveríamos tratar com respeito e CARINHO - a palavra foi essa - os estrangeiros que vem a nosso país assistir aos eventos esportivos, mesmo quando a mão do Estado vem para nós, filhos desse país, em forma de um tapa, desferido sem dó naqueles que nada tem.

Ouvimos este pronunciamento não como quem tinha a esperança de tudo mudar, mas como quem tinha consciência de que pode mudar e de que, em alguma sala de reuniões apinhada de políticos covardes, o comentário era o de que o povo brasileiro não aceitaria mais a corrupção como parte do seu DNA.

Isso tudo ficou ainda mais claro na votação da PEC 37 realizado ontem, no plenário da Câmara dos Deputados. Uma proposta que contou, inicialmente, com 207 votos favoráveis para seu prosseguimento e com aprovação na Comissão de Constituição e Justiça, foi fulminada por 403 votos a 9. Políticos fazendo o papel ridículo de deixar claro que não apoiaram a PEC porque sabiam que este Brasil de agora não é o mesmo de antes. É um país que assiste à TV Câmara e que compartilha nas redes sociais o nome dos deputados que votaram nesse ou naquele sentido.

No fim das contas nós, que fomos apelidados de geração alienada,  que nos acostumamos a ouvir de nossos pais que na época deles por muito menos a população ia às ruas, que fomos chamados de baderneiros e vândalos, é que resgatamos toda a esperança e fé. Nós é que levantamos o país. Nós é que lutamos pelo que amamos de verdade.

O gigante não acordou porque nunca dormiu. Ele apenas tomou consciência de seu tamanho.


terça-feira, 4 de junho de 2013

A natureza jurídica do brilho dos olhos.

O início do curso de graduação em Direito é permeado pela contínua produção de esperança. De um certo modo todos que adentramos o mundo mágico das leis e das instituições jurídicas temos esse ideal de utilizar o Direito como instrumento de mudança e em algum momento também acreditamos que poderíamos fazer a diferença nesse mundo.

Passado pouco tempo, não sei porquê, esta esperança simples vai se esvaindo, tal qual um pano colorido que desbota ao sabor do tempo. Começamos a substituir a ideia de justiça, pela de lei; a utilidade, pela formalidade; a simplicidade pelo mais absoluto dom de complicar qualquer coisa com textos ininteligíveis a qualquer pessoa do povo.

Não se pode dizer que nas demais áreas do conhecimento não exista o uso de uma linguagem própria, de uma forma especial de falar e entender as coisas. Mas no caso do Direito, me parece que a mais simples das construções pode se tornar algo complicado, como se a qualidade do nosso trabalho pudesse ser medida pelo número de expressões em latim ou conectivos que não se usam mais desde 1800.

Falar coisas simples, como "casa", "criança", "amor" não parece fazer a diferença. Para conseguir aprovação, falamos de "residência", "infante" e "estima", aumentando a dificuldade e diminuindo a beleza de tudo.
Em apenas um momento eu vi uma sentença num caso de divórcio que falava expressamente "duas pessoas que não se gostam mais não podem ser obrigadas a conviver". Foi proferida por um ex-professor meu, que é juiz.

O que eu quero dizer é que nos acostumamos muito cedo às vaidades, até chegarmos a um ponto em que nos achamos dignos de todas as honrarias e detentores de todo o conhecimento. Pobres de nós. Em grande parte das vezes mal sabemos  o que estamos fazendo com esses processos volumosos que nos chegam às mãos. Mas admitir "Não sei", é o pior dos pesadelos para quem quer saber de tudo.

Nos gabamos da complicação de algumas coisas, da dificuldade de se elaborar uma peça ou parecer. Mas digo a vocês: a inicial de uma ADIN, um recurso extraordinário ou mesmo o parecer sobre um processo com mais de 50 apensos são bastante simples.

Difícil é saber lidar com a responsabilidade de termos a vida e o bem-estar de uma pessoa em nossas mãos.

Quando eu era do quarto semestre e estava numa experiência de prática jurídica da faculdade, o SAJU - Serviço de Apoio Jurídico da UFBa, fiz uma inicial de uma Ação de Retificação de Registro Civil, que nunca tinha feito na vida. A assistida era uma moça que odiava o próprio nome e, por conta disso, acho que não gostava tanto da ideia que tinha de si mesma.

Pesquisei na internet, peguei um modelo de alguém, ajuizei a ação e pronto. O impulso oficial faria transcorrer o processo. Depois de um tempo, quando já não estagiava mais no SAJU eu recebi uma ligação de um número desconhecido. Era ela, chorando ao telefone, me agradecendo por tudo e dizendo que estava indo buscar seu novo documento de identidade.

Muito provavelmente eu escrevi na petição inicial que "houve um equívoco no registro de nascimento da Autora", "que a Autora não se sente satisfeita por ostentar um nome com o qual não simpatiza" ou que " não se afigura razoável que a Autora venha a amargar um sofrimento por algo que não escolheu". Eu podia simplesmente ter dito que ela não era feliz.

Por isso gosto de quem utiliza o Direito como ele deve ser: apenas um instrumento de nossas sensibilidades. Gosto de quem não vê essa área como o centro do universo. Gosto de quem mescla as obrigatórias chatices da vida jurídica pelas histórias descomplicadas, pela conversa fiada, pelas gírias que usamos todos os dias, e pelo riso, que parece tão fora de moda nos corredores do Fórum e das repartições públicas.

E de uma certa maneira, no fim do curso é que temos o resgate dessa magia que acontecia antes todos os dias quando éramos calouros. É só quando saímos da faculdade que nos damos conta de nossas limitações, de que não estamos prontos, de que não sabemos 80% das coisas que fingimos saber, de que em tudo colocamos uma complicação inútil.

No final do curso é que desejamos com toda a nossa força, com todo o nosso querer, manter acesa a centelha de esperança que ardia antes em nossos corações, hoje um tanto calejados das injustiças que vemos todos os dias. O final do curso é o momento de resgate da esperança.
Tanto que na minha colação de grau, um dos arautos desse modo simples de ver o Direito, o paraninfo da turma , desafiou a todos os bacharéis, perguntando:
- Qual a natureza jurídica do brilho dos olhos?

Não sabemos.

É fácil ser jurista, difícil é ser humano.
É fácil impressionar um cliente, difícil é se orgulhar de si mesmo.
É fácil elaborar uma ação vitoriosa. Difícil é escrever uma emoção.