terça-feira, 4 de junho de 2013

A natureza jurídica do brilho dos olhos.

O início do curso de graduação em Direito é permeado pela contínua produção de esperança. De um certo modo todos que adentramos o mundo mágico das leis e das instituições jurídicas temos esse ideal de utilizar o Direito como instrumento de mudança e em algum momento também acreditamos que poderíamos fazer a diferença nesse mundo.

Passado pouco tempo, não sei porquê, esta esperança simples vai se esvaindo, tal qual um pano colorido que desbota ao sabor do tempo. Começamos a substituir a ideia de justiça, pela de lei; a utilidade, pela formalidade; a simplicidade pelo mais absoluto dom de complicar qualquer coisa com textos ininteligíveis a qualquer pessoa do povo.

Não se pode dizer que nas demais áreas do conhecimento não exista o uso de uma linguagem própria, de uma forma especial de falar e entender as coisas. Mas no caso do Direito, me parece que a mais simples das construções pode se tornar algo complicado, como se a qualidade do nosso trabalho pudesse ser medida pelo número de expressões em latim ou conectivos que não se usam mais desde 1800.

Falar coisas simples, como "casa", "criança", "amor" não parece fazer a diferença. Para conseguir aprovação, falamos de "residência", "infante" e "estima", aumentando a dificuldade e diminuindo a beleza de tudo.
Em apenas um momento eu vi uma sentença num caso de divórcio que falava expressamente "duas pessoas que não se gostam mais não podem ser obrigadas a conviver". Foi proferida por um ex-professor meu, que é juiz.

O que eu quero dizer é que nos acostumamos muito cedo às vaidades, até chegarmos a um ponto em que nos achamos dignos de todas as honrarias e detentores de todo o conhecimento. Pobres de nós. Em grande parte das vezes mal sabemos  o que estamos fazendo com esses processos volumosos que nos chegam às mãos. Mas admitir "Não sei", é o pior dos pesadelos para quem quer saber de tudo.

Nos gabamos da complicação de algumas coisas, da dificuldade de se elaborar uma peça ou parecer. Mas digo a vocês: a inicial de uma ADIN, um recurso extraordinário ou mesmo o parecer sobre um processo com mais de 50 apensos são bastante simples.

Difícil é saber lidar com a responsabilidade de termos a vida e o bem-estar de uma pessoa em nossas mãos.

Quando eu era do quarto semestre e estava numa experiência de prática jurídica da faculdade, o SAJU - Serviço de Apoio Jurídico da UFBa, fiz uma inicial de uma Ação de Retificação de Registro Civil, que nunca tinha feito na vida. A assistida era uma moça que odiava o próprio nome e, por conta disso, acho que não gostava tanto da ideia que tinha de si mesma.

Pesquisei na internet, peguei um modelo de alguém, ajuizei a ação e pronto. O impulso oficial faria transcorrer o processo. Depois de um tempo, quando já não estagiava mais no SAJU eu recebi uma ligação de um número desconhecido. Era ela, chorando ao telefone, me agradecendo por tudo e dizendo que estava indo buscar seu novo documento de identidade.

Muito provavelmente eu escrevi na petição inicial que "houve um equívoco no registro de nascimento da Autora", "que a Autora não se sente satisfeita por ostentar um nome com o qual não simpatiza" ou que " não se afigura razoável que a Autora venha a amargar um sofrimento por algo que não escolheu". Eu podia simplesmente ter dito que ela não era feliz.

Por isso gosto de quem utiliza o Direito como ele deve ser: apenas um instrumento de nossas sensibilidades. Gosto de quem não vê essa área como o centro do universo. Gosto de quem mescla as obrigatórias chatices da vida jurídica pelas histórias descomplicadas, pela conversa fiada, pelas gírias que usamos todos os dias, e pelo riso, que parece tão fora de moda nos corredores do Fórum e das repartições públicas.

E de uma certa maneira, no fim do curso é que temos o resgate dessa magia que acontecia antes todos os dias quando éramos calouros. É só quando saímos da faculdade que nos damos conta de nossas limitações, de que não estamos prontos, de que não sabemos 80% das coisas que fingimos saber, de que em tudo colocamos uma complicação inútil.

No final do curso é que desejamos com toda a nossa força, com todo o nosso querer, manter acesa a centelha de esperança que ardia antes em nossos corações, hoje um tanto calejados das injustiças que vemos todos os dias. O final do curso é o momento de resgate da esperança.
Tanto que na minha colação de grau, um dos arautos desse modo simples de ver o Direito, o paraninfo da turma , desafiou a todos os bacharéis, perguntando:
- Qual a natureza jurídica do brilho dos olhos?

Não sabemos.

É fácil ser jurista, difícil é ser humano.
É fácil impressionar um cliente, difícil é se orgulhar de si mesmo.
É fácil elaborar uma ação vitoriosa. Difícil é escrever uma emoção.

4 comentários:

  1. Mariana, qualquer que seja a "natureza jurídica"...hoje, vc foi o meu "brilho dos olhos"...
    Beijo da tia.

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  2. Joserita, 05 de junho de 20135 de junho de 2013 às 13:58

    Mari, nos orgulhamos muito de vc. Vc é sim, muito especial.
    Consegue nos emocionar sempre.
    Beijo

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  3. Muito bom seu texto Mariana. É bom ver que a letra fria da Lei com sua legalidade e taxatividade não consegue endurecer todos os corações que se deparam com sua exegese. Seu texto me fez constatar que nem todos que passam por esta metamorfose se transformam em um mesmo tipo borboleta. Nem todos perdem a sensibilidade diante de tanta formalidade.

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