domingo, 24 de novembro de 2013

Rascunho definitivo.

Escrever deveria ser sempre esse caminhar no escuro da alma. Essa coisa assustadora que de repente se ilumina em alguma vereda do coração.
Escrever deveria aliviar a dor como um pensamento alegre. E não deveria haver pessimismo em escrever.
Se escreve, sobretudo, aquilo que se quer e, a não ser que o que se escreva seja uma carta suicida, nada pode ser escrito com tudo que há de ruim.
Nessas horas em que sem inspiração me desespero, em que penso sobre todas as coisas já escritas e busco um novo velho significado. Nessas horas é que deixo as palavras lançarem-se em tempestade sobre o papel branco, me propondo um rascunho que não pode ser consertado. Nessas horas é que deixo as palavras cumprirem sua sinas. Mostrarem-me porque vieram.
Talvez para acalmar as ânsias desse coração que tem sede. Talvez para afugentar todos os medos e me transformarem de dentro pra fora toda e de uma só vez. Talvez porque liberdade seja isso e as palavras precisam enfrentar a mesma desordem que meus cabelos sentem ao cair sobre o papel, formando uma senda através da qual vejo todo o resto.
Agora é que, engraçado, me vejo como um objeto pelo qual as palavras passam sem embaraço; algumas se rindo de mim, outras me provocando.
Percebo que acabo de escrever uma palavra em letra cursiva muito feia e que já nem sei o que era nem o que eu mesma queria dizer.
Não me importa: basta apenas seguir o fluxo do branco no papel, onde já se formam sombras do que foi escrito no verso.
Importante esta missão de poder escrever sem pensar, tão diferente do dia a dia em que sequer nos permitimos amar sem pensar - logo amar, que apaga qualquer vestígio de raciocínio.
Pois continuo escrevendo em assombrosa velocidade, deixando que gritem as palavras a liberdade que não encontraram em mim. Elas, que até então estavam enclausuradas nesse peito. Voem! Cantem! Assustem!
Nenhuma delas é minha, em verdade sinto como se tivesse acabado de psicografá-las: uma luz misteriosa sobre minha cabeça ilumina o que se escondia na alma. A cabeça pende e o corpo dança, estático apenas por fora. Talvez o corpo é que não esteja tão acostumado a deixar fluir e por isso o estranhamento. Mas o coração está.

Foi ele que escreveu agora.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Os deuses do Olimpo e a maior de todas as virtudes.

"Dizem que os deuses, tendo se reunido no Olimpo para tratar dos assuntos celestiais, começaram a se perguntar sobre as virtudes mais cultuadas entre os humanos. Cada um dos deuses falou das virtudes que tinham seus protegidos, ressaltando suas qualidades e o quanto eram cheios de fé. E começaram a discordar uns dos outros, afirmando que a melhor das virtudes encontrava-se neste ou naquele homem. Instalou-se uma pequena confusão e Júpiter fora chamado a resolver o impasse.

Júpiter encontrava-se em uma posição difícil. Como decidir qual das virtudes era melhor, se cada humano possuía em si inúmeras qualidades e cada deus elegia seu protegido como o mais virtuoso?

Certo de que a solução imediata poderia desagradar aos demais, ordenou Júpiter que se realizasse um torneio. Aquele que lhe apresentasse a maior das virtudes ganharia a imortalidade. No entanto, os que fracassassem estariam condenados ao reino dos mortos. Com esta medida, esperava Júpiter que os deuses desistissem de expor a perigo seus humanos mais queridos, abandonando a disputa e restabelecendo a harmonia agora abalada no Olimpo.

Não foi o que aconteceu, todavia. Confiantes no julgamento justo que presenciariam e nas virtudes dos homens, os deuses mantiveram a ideia de se realizar o grande concurso.

No dia do torneio os ventos eram todos favoráveis. Netuno amainou as águas, a fim de que nada perturbasse a tranquilidade dos deuses e dos humanos postos a prova. E eram muitos. De toda a Grécia vinham jovens e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres, certos de possuírem a maior de todas as virtudes.

Uma jovem muito bela apresentou-se. De fato a beleza ressaltava aos olhos e parecia que em toda a terra, e mesmo no céu, ofuscava aos demais. Os deuses ficaram maravilhados e Afrodite, com ar triunfante, pensou ter vencido o torneio sua protegida. Mas Júpiter atalhou dizendo que não se convencia de que a maior das virtudes fosse algo tão efêmero. Ordenou que mais pessoas viessem.

Um deles apresentou-lhe a virtude da sabedoria. Outro, da paciência. Outro, da bondade. E assim sucessivamente. Coragem, inteligência, alegria foram despejados aos pés dos deuses. Mas Júpiter ainda não tinha sua escolha. Restavam agora uns poucos humanos. E nenhum fez o deus dos deuses aceder a seu favor.

Certo de que seria impossível escolher uma só, entre todas aquelas virtudes, Júpiter já se preparava para admitir o final de um torneio em que não haveria vencedor.

Até que um último candidato surgiu por entre a folhagem. Carregava nos braços o corpo inanimado de uma mulher. Nos olhos, lágrimas muito numerosas brotavam, deixando um rastro úmido pelo caminho percorrido. Tinha um aspecto sofrido, mas firme. Parecia irresignado e corajoso ao mesmo tempo. O próprio Júpiter indagou:

- Que virtude me apresenta, humano?

- Sou o único filho desta mulher, que agora pertence ao reino dos mortos. Não venho em meu nome buscar qualquer glória ou reconhecimento por algo que tenha feito. Não me acho digno. Jamais me sobressaí entre os outros pela existência de qualquer virtude em mim. Não sou belo. Não me considero o mais inteligente e corajoso dos homens, tampouco possuo a meu favor a alegria perene. Sou apenas um filho e nesta condição é que me dirijo a vós.
O nome desta mulher é Agape e creio que se já não encontrou a maior das virtudes, que tanto procura, ó Júpiter, entrego-lhe a única criatura em que se reúnem todas. Desde que vim ao mundo esta mulher fez de tudo para que eu pudesse viver bem, abdicando, por vezes, da sua própria vida. Quando os ventos do norte anunciavam o inverno e toda a terra se encontrava gelada e hostil, esta mulher tirou as próprias vestes para que eu pudesse ficar aquecido. Quando sobreveio a peste, ela não tardou em fugir comigo e passar por mil perigos nas estradas, até que nos estabelecêssemos em um lugar seguro. Trabalhou com afinco por toda a vida para prover meu sustento e se alguma vez o alimento faltou somente ela experimentou a fome, vez que me ofertava tudo aquilo que conseguia para si.
Hoje, após tanto tempo de sacrifício, Plutão levou-a para o reino dos mortos e já me vejo sem a coragem que via todos os dias em seus olhos. Apesar de homem feito, sei que dependo de seus ensinamentos e sua sabedoria e por isso mesmo venho pleitear para ela a imortalidade, pois em lugar algum do mundo acharão pessoa mais virtuosa. Peço, para ela, a imortalidade, justamente pelo fato de que fui eu que lhe tirei a vida aos poucos.

Por um instante todos os sons do céu e da terra cessaram. Todos os homens e todos os deuses olhavam assustados uns para os outros e para dentro de si mesmos. Depois, uma a uma, as faces voltaram-se a Júpiter, em busca de respostas para o pedido que de maneira  tão especial lhe fora feito.

Júpiter não conseguiu dizer mais nada exceto:

- Rapaz, você veio até nós sem o desejo do reconhecimento e sem o ego que é peculiar a todos os humanos. Trouxe, em seus ombros, mais que o peso de um corpo: trouxe o peso da morte, a desalentar-lhe o coração e abater-lhe a face. Neste dia presenciamos virtudes magníficas serem despejadas diante de nossos olhos, cada uma parecendo melhor que a outra. Contudo, nenhuma das virtudes se afigurou tão boa que nos fizesse esquecer das outras. A beleza, a generosidade, a paciência, a paz, a coragem...Cada uma delas parecia soberana, por si só. Todavia, o motivo que o traz ao Olimpo hoje nos faz crer na existência da virtude suprema, aquela que a tudo suplanta, tudo suporta, e que dignifica todas as demais. Essa virtude é o amor. Somente o amor permite a abnegação da própria vida e por isso mesmo somente ele pode vencer a morte.

Dito isto, Júpiter ordenou à Plutão que trouxesse Ágape de volta à vida para conceder-lhe a imortalidade na forma de uma estrela, que do alto dos céus poderia continuar seguindo os passos de seu filho e guiando-lhe quando este se visse perdido."


E desde então, atravessando os séculos, a palavra "ágape" é utilizada para simbolizar a existência do amor incondicional, quase divino, capaz de grandes feitos e dos maiores sacrifícios. Imortal.