domingo, 14 de dezembro de 2014

O maior medo de que se tem notícia.

Após uma série de eventos que aconteceram em minha vida durante os últimos tempos, e de estranhas reflexões sobre eles e como se processaram, descobri qual o meu maior medo - e provavelmente o maior medo das outras pessoas.

Tenho um série de medos que coleciono com certa simpatia, até. Acredito que não pode haver algo pior para uma pessoa do que o medo de ter medos e a angústia que isso traz. Não ter medo é a mesma coisa que não ser humano e tentar negar essa condição é um passo em direção ao sofrimento.

Não que eu goste de sentar em uma poltrona de avião e suar feito um cuscuz, numa demonstração clara de que não estou nem um pouco à vontade naquele objeto enorme e pesado, que até hoje não sei como consegue voar (e, a este ponto, prefiro nem saber).

Tampouco me sinto satisfeita em sair correndo e gritando, histérica, quando um inseto qualquer decide que sou a pista de pouso perfeita para suas manobras.

Não...tenho vergonha, até.

Por um longo tempo eu pensei que entre todos os meus medos, o pior deles fosse o medo da morte - o que explica o medo de avião, pois a queda é um meio infalível de cruzar a ponte entre a vida e o que houver após ela.

A morte, na verdade, me angustia porque é triste deixar tudo isso aqui e porque, se não houver nada além dela, a morte é o fim de todo amor. Por enquanto "o fim" é algo que não consigo conceber: com ressalva da vida, nada se vai para sempre e tudo acaba sendo transitório e possível de acontecer novamente.

Depois de muito refletir, percebi que a morte não é o maior medo que possuo. Nem de longe.

Cheguei à conclusão de que meu maior medo seria o medo do novo, o qual pude experimentar por diversas vezes após uma reviravolta que a vida me impôs - e pela qual agradeço sempre. A própria morte, o maior dos mistérios, é a coisa mais inédita que testemunharemos. Não há ideias, filosofia, provas ou depoimentos de como ela seja. Há apenas a fé.

Sentir esse medo das coisas que se apresentam a nossos sentidos pela primeira vez é algo saudável e necessário: o medo é o motivo de a espécie humana ter chegado até aqui, após enfrentar - pela fuga ou luta - toda a sorte de infortúnios através dos tempos. As pupilas se dilatam, para que possamos enxergar melhor, o coração acelera para bombear mais sangue, garantindo mais energia aos músculos e o corpo todo se prepara secretamente diante do perigo.

Provavelmente era assim que eu estava quando tive de mudar de cidade, de trabalho, deixar meus amigos e familiares em outro estado e voltar a morar sozinha. Tudo ao mesmo tempo e implacavelmente.

É certo que teve solidão e sensação de vazio. Às vezes me surpreendia com perguntas a respeito de como meus pais descobririam que teria acontecido algo comigo, se acontecesse. E assim por diante...

Só que eu tenho essa mania de ver correlação em tudo e o fim do ano me abriu os olhos para uma possibilidade bastante animadora: e se o medo não tiver que ser assim? E se as coisas novas sejam melhores e necessárias para minha jornada? E se eu encarasse o novo como uma possibilidade de driblar a minha morte?

Clarice Lispector já dizia que somente aquilo que está morto é que não muda.

Aliás, não preciso nem recorrer a Clarice.

E se a gente usasse para o medo da mudança a esperança luminosa que usamos para o Ano Novo?

Seria espetacular se observássemos as mudanças - todas elas - com os olhos no futuro e com a esperança de dias melhores, mais prósperos, com mais saúde e felicidade, oportunidades de crescimento e de ser sempre mais grato à vida.

Viver é mudar a cada dia e não dormir o sono profundo da mesmice e do apego a situações confortáveis e infelizes. 

Deixo aqui o testemunho de um amigo muito especial que já me confessou ter ultrapassado esse medo bobo de tudo o que é novo, não sem uma dose de esforço: "Mari, meu maior medo é olhar para trás e perceber que sou o mesmo Leo de 5 anos atrás, que não sou melhor nem aprendi mais nada e que penso exatamente da mesma maneira a respeito das coisas."

E foi assim que descobri o maior medo de que se tem notícia. Esqueçam os aviões, os insetos e até a própria morte: o maior medo é não mudar nunca.

Não vale a pena superá-lo.











sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Um fado para quem nunca viu.

No restaurante cheio de azulejos azuis e brancos, tipicamente portugueses, o cheiro da boa comida eleva os pensamentos ao paraíso. Em cada mesa uma vela, a emitir aquela luz fraca e confortável aos olhos, uma cesta de pães, azeite e uma taça de vinho branco.

Pedidos feitos, o espetáculo começa.

Uma senhora levanta-se da cadeira, junto com três músicos e seus violões. Ostenta um vestido longo e um xale bordado em preto e vermelho. Expressão tranquila no olhar. Ela não anda: parece flutuar sobre o chão. O velho vestido se arrastando nas brumas do ambiente. Lembra uma avó bondosa, que anda devagar e levemente para não acordar os netos que ainda dormem.

Dirige-se a um local situado no mesmo patamar do restaurante, mas que lembra um pequeno palco.

Neste mesmo momento, as luzes do restaurante começam a diminuir sua intensidade. O silêncio toma conta do espaço. Uma a uma as lâmpadas se apagam, até que reste apenas a luz das velas colocadas em cada mesa.

Todos se voltam aos músicas e à senhora, esperando o início do show.

Os violões iniciam os primeiros acordes e ela começa a cantar com seu sotaque português inconfundível. Canta de olhos fechados, mas não é por medo de encarar o público: precisa cantar dessa forma para que consiga reviver perfeitamente os amores, as dores e as felicidades contidas em cada nota.

Nada parece tão terno quanto a idosa que canta de olhos fechados num ambiente à luz de velas. O fado é triste, mas também a vida é triste em muitos momentos e é isso que dá graça à alegria. Permito-me acompanhá-la nessa viagem pelas estradas escuras dos olhos fechados e revivo todos os meus amores de uma só vez, perdoando a mim mesma.

Ela muda de tema e começa a cantar sobre sua mãe. A mesma tristeza da saudade aparece em sua voz. Eu penso na minha mãe e choro, desejando que ela estivesse vendo aquele espetáculo ao meu lado, vencendo magicamente os quilômetros que nos separavam naquele momento. Uma lágrima sorrateira ousa romper a  barreira da pálpebra. Volto a fechar os olhos.

O final das cantigas marca o retorno das luzes artificiais e das conversas nas mesas. Depois de alguns minutos mais uma rodada de música e rendição, pela qual espero sempre, ansiosa por me entregar.


quarta-feira, 23 de julho de 2014

Não basta a saudade.

Eu sou uma grande entusiasta da saudade. Acho um sentimento lindo em toda a sua dubiedade, em toda a sua agonia e dor. Quem tem saudade, sente a ausência de alguém querido. Certa vez tive a oportunidade de dizer para um certo rapaz - que talvez hoje não me leia - que a saudade é diferente de apenas sentir falta.

E realmente é: sentimos falta do guarda-chuva esquecido no trabalho ou da escova de dentes que supúnhamos se encontrar na mala de viagem. Mas ninguém tem saudade de um objeto, a não ser que o objeto represente alguém. Saudade só se tem de quem se gosta. Ninguém tem saudade de quem lhe fez mal ou de quem não lhe traz sentimentos e sensações gostosas.

Mas esses dias eu descobri que saudade não basta. Sentir a ausência não basta.

É preciso sentir a presença, coisa com a qual não estamos acostumados. Sobretudo a presença fácil, cotidiana, de todos os dias: como é difícil senti-la em nós mesmos! Como é difícil, tantas vezes, permitir que alguém faça parte de nós mesmos com sua presença constante, firme.

Isso tudo me vem à tona porque acabo de perceber o quanto tenho deixado de sentir as presenças.

Minha mãe passa dias aqui comigo em Salvador - embora ela more em Campo Formoso/BA. Quando ela se vai, sinto uma saudade grande, como se não tivesse tido sua presença por aqui. E a verdade é que tive, mas não senti.

Enquanto ela fazia meu almoço de todos os dias e parávamos para conversar por alguns minutos, eu, muitas vezes, estava alheia a tudo. À noite, quando chegava do trabalho, jantava conversando com ela e logo ia para o quarto (estudar, assistir aula, ler ou realizar qualquer outra atividade). E às vezes, mesmo quando sentada ao lado dela para assistir TV meu celular disputava toda a atenção.

Minha avó tem 78 anos, mas nem parece. Faz de tudo em casa e se vacilar nós é que temos de tomar cuidado para ela não fazer nenhuma estripulia. Graças a Deus tem uma ótima saúde e não precisa de maiores cuidados.
Ela esteve lá em casa esses dias e eu não senti sua presença. Até costurou uma saia minha, conversou bastante, mas voltou para a casa de minha tia e foi como se eu nem a tivesse visto.

A gente, com o tempo, vai ficando com uma insensibilidade para as coisas...

A notícia boa é que sempre há tempo de consertar, aproveitar ao máximo alguém querido. Não significa que o medo da despedida eterna deva nortear todas as ações. Não. O medo da morte só pode servir para melhorar a vida.

Nesse caso, sentir a presença de alguém em todo o seu esplendor é apenas um abrandamento da saudade que virá sem anúncio, sem alarde. Sentir a presença é rechear a ausência de coisas boas a serem lembradas, é poder fechar os olhos e lembrar de cada um desses momentos como se estivessem acontecendo.

Não basta sentir a ausência. É preciso sentir a presença: inebriar-se de outra alma, degustar um toque de carinho que ultrapassa a pele, saber que música bailam as palavras dançantes que saem da boca querida...Depois, só saudade.

terça-feira, 8 de julho de 2014

A Copa das Copas e o País dos Países - uma mão à palmatória.


Fui do time "contra a Copa". Admito. Não (apenas) pela política ou pela falta de investimentos vultosos em serviço público e abundância de corrupção (quando devia haver o contrário). Fui contra a Copa sediada pelo Brasil porque acho ridículo que um país de respeito ouse tratar estrangeiros e turistas de uma maneira melhor do que os cidadãos que fazem a nação crescer.

Ainda que acreditemos que as obras, os investimentos e demais gastos não tenham sido pagos com nosso dinheiro, o que mais me causou tristeza foi ver que a vontade política não se dirige a quem precisa. Dirige-se, sempre, aos interesses que a motivam. Uma Copa do Mundo num país que não possuía a mínima estrutura para o dia a dia do povo desafia a mínima ideia que se tem de respeito.

E, no entanto, teve Copa.

Posições antagônicas e combativas - revoltadas contra e a favor da Copa - promoviam os mais calorosos debates nas redes sociais. Mas, por mais que alguns tenham destilado um ódio anormal do evento esportivo e das exigências de uma entidade desacreditada como a FIFA, ambos compreensíveis até certo ponto, o fato é que ninguém conseguiu estar alheio completamente à Copa. Um jogo aqui, outro lá e pronto: todos os assuntos se voltavam para a Copa e mesmo quem continuava criticando a ocorrência do evento esportivo acabou por assistir aos jogos - ainda que torcesse contra a seleção canarinha.

Apesar de pensamentos nesse sentido, restou comprovado que é possível assistir à Copa do Mundo e continuar criticando as políticas públicas (e a falta delas). É possível sentir compaixão de um jogador que teve uma saída prematura de jogos da Copa do Mundo, ainda que ele seja milionário e possua um patrimônio que a maioria de nós - salvo a sorte extrema das loterias - jamais possuirá. É possível aprender um pouco com o Mundial- principalmente com a derrota escandalosa da seleção.

Dou a mão à palmatória. Acreditei que os aeroportos seriam a definição de caos e que o transporte público seria o mais próximo do inferno a que chegaríamos nesse grandioso evento. Acreditei que a violência ditaria as regras do jogo e que seria um Mundial para ficar marcado pela vergonha de todos nós (alguns, nesse ponto, ainda acham que acertei pois a violência foi um traço marcante nos gramados e a atuação da seleção nesta última partida foi vergonhosa).
Mas errei.
Por incrível que pareça, tudo funcionou bem. Tão bem como nunca vimos igual. O evento esportivo ficou conhecido como A Copa das Copas, tamanha a satisfação das pessoas, estrangeiros e cidadãos brasileiros. Apesar dos pesares, das manifestações e da frustração geral com os problemas das capitais sedes dos jogos, quem veio encontrou um povo receptivo, uma economia pronta a receber o dinheiro estrangeiro e alegria, todos incomparáveis.

Não que tudo tenha sido maravilhoso. A tragédia do viaduto em Belo Horizonte, que já havia sido anunciada meses antes, é a parte contrastante e triste da Copa das Copas. A dor, todos sentimos. O desespero e a desesperança, todavia, atingiram o peito dos que viram um ente querido falecer sob o peso do concreto.

Ainda assim, creio que esta não foi a Copa da decepção. Para mim, ela foi a Copa do aprendizado.

Sim, nós brasileiros pudemos aprender muito. Aprendemos que dá pra fazer o que é prometido. As mudanças de infra-estrutura que foram realizadas para o evento esportivo podem sim ser realizadas para nós daqui para a frente. Neste ponto, por que não assumir o papel da FIFA e cobrar, dia a dia, que os responsáveis a façam? Por que não conferir de perto aquilo que os governantes estão fazendo ou deixando de fazer?

Na derrota de hoje, Felipão assumiu a responsabilidade pela derrota (vulgo goleada), quando disse ter arriscado uma estratégia fracassada, ao insistir numa escalação que, evidentemente, não estava dando certo.
Podemos aprender com isso: o representante de uma nação inteira e líder de uma seleção (seja ela formada por cidadãos ou jogadores) tem de ouvir mais as críticas e se manter sempre aberto ao diálogo com o povo. Mais que isso: em caso de fracasso, esse líder, tal qual o técnico de uma seleção, deve assumir a responsabilidade. Explicar o que não deu certo. Pedir desculpas.
Já pensou se nós colocarmos nossos governantes contra a parede, como fizemos com o Filipão após o jogo? Já pensou se exigirmos que prestem contas de uma derrota, seja ela de que natureza for?

Por fim, aprendemos com a possível Campeã Mundial, a Alemanha, que os frutos não nascem diretamente das sementes. É preciso investimento, tempo, dedicação para mudar as coisas. Todas as conquistas e glórias somente são possíveis depois de muito esforço e muita atenção com as deficiências.
E se nós, a partir de agora, cobrássemos tais investimentos de longo prazo? E se começássemos a dar valor, não à nova praça que enfeita a cidade, mas ao ensino de qualidade que será destinado a nossos filhos e netos? E se treinarmos a cidadania todos os dias?

Um próximo evento da mesma magnitude da Copa do Mundo, para nós, se aproxima em outubro. Aproveite a oportunidade de escolher um técnico. Preste atenção na escalação do seu time. Cobre respeito. Torça. Critique. Incentive. Faça com que ele mude o time. Participe da estratégia. Estude os adversários. E, sobretudo, acredite na sua própria força de comandar a mudança.

Fui contra a Copa. Admito. Mas aprendi com ela. Uma Copa das Copas pode ter como legado apenas o futebol e meia dúzia de novos ídolos. Esta pode significar um início - ainda que mínimo - do País dos Países. Basta ouvir a voz de uma torcida inteira que diz: #votapramim.

Mostra tua força, Brasil!






quinta-feira, 5 de junho de 2014

Sobre ser AliMentADO.

Aqueles que me conhecem pelo menos um pouco sabem que tenho especial predileção por comida.

No mundo há pessoas que gostam muito de correr, nadar, ir ao cinema, ler um livro, passear no parque. Pois bem. Eu gosto muito de comer. E sim, lamento que isso não seja um esporte, ao menos não um esporte reconhecido.

Na verdade eu gosto de comer muito e realmente não tenho padrões alimentícios normais para uma singela moça de seus 23 anos. Dizem que mulher não come muito, mas quem diz isso não me conhece.

Eu sou daquele tipo que ouve com frequência as frases "Nossa, você é magra de ruim, hein?", "Mas você ainda aguenta comer mais?", "Desse jeito é mais fácil sustentar jegue a pão de ló..." e - a minha preferida - "Menina, você não tem uma solitária não. Tem é uma família inteira aí nessa barriga.".

Quando eu tinha 16 anos comia a mesma quantidade que o meu primo, o qual tinha 20 anos. De tanto comer assim em casa, certa feita meu tio me deu uma dica valiosa: "Mari, quando você estiver paquerando alguém e for sair pra jantar, coma uma feijãozinho antes em casa pra não assustar o rapaz.".

Pois é.

O que poucos sabem é que essa minha paixão por comida - a ponto de me fazer comer não menos que 400g de almoço por dia - tem um fundamento nobre.

É que o alimento foi a primeira forma de amor que conheci. Quando eu nem sabia de mim, já entendia o que era o amor de minha mãe todas as vezes que ela me amamentava.

Foi na cozinha de casa - e não na sala, no quarto ou no quintal - que eu passei os melhores momentos ao lado dela, que ia me contando todas as histórias de sua vida (e as minhas, de pequena) enquanto eu petiscava um ou outro pedaço de tomate e pimentão que ela havia cortado antes.

Aquele amor chegava até minhas mãos em forma de latas semi-vazias de leite condensado - as quais ela não raspava até o fim justamente para me dar esse tipo de prazer -, tigela com massa de bolo crua, espátulas lambuzadas de merengue e panelas de brigadeiro cujo excesso do doce deveria ser tirado antes de irem à pia. A sopa que eu comia na época do frio não era só uma sopa. Era conforto líquido e carinho embaixo das cobertas quentinhas.

Até hoje nunca consegui reproduzir com exatidão os pratos que minha mãe fazia. Jamais conseguirei.

Depois que mudei de cidade, a saudade de casa era aliviada pelas caixas de comida com coisa do interior que minha avó mandava. Tamarindo, beijú de feira, feijão verde, carne do sol. Cada mordida era um abraço de regresso. O cheiro de cada coisa era teletransporte imediato. E assim o é, até hoje.

Perdoem-me os que se alimentam apenas para satisfazer as necessidades do corpo. Antes eu também achava que sentia tanta fome assim porque tenho um metabolismo rápido e penso muito. Hoje, contudo, estou convencida de que me alimento, por vezes, não por capricho do estômago, mas para delírio do coração.

Por isso mesmo, quem não quiser ser amado por mim que não me alimente. Do contrário, qualquer chocolate será uma prova irrefutável e irretratável de carinho. Um jantar poderá ser lembrado para todo o sempre. Uma sobremesa pode ser a peça que faltava nesse mosaico profuso de sentimento, que é o meu peito.

Buquê de flores? Nada disso... Prefiro que me sirva a melhor porção do prato, aquela que se deixa pro final. Oferecer ao outro aquilo que de melhor você possui: isso é que é prova de afeto!

Advirto, todavia, que minha fome nem sempre aparece da mesma forma.

Um dia ouvi de um sujeito determinado, que provavelmente me lê, a seguinte frustração: "Poxa, você disse que come muito mas veio jantar comigo e não tá comendo quase nada.". Sorri de leve e falei qualquer coisa para disfarçar. Mas a verdade é que também me alimento de olhares e sorrisos, tanto que me esqueço do prato cheio, à minha frente, na mesa.

Penso que deve ser por isso que a gente perde a fome quando se apaixona: vai se alimentando da presença do outro um pouquinho a cada dia e muito de uma vez só. Sobra pouco espaço pro almoço e pra janta, pois se o estômago parece vazio e acostumado a menos alimento, já não se pode falar o mesmo do coração. Este, de tão cheio, numa analogia patética, nos obriga a quase desabotoar um pouco a camisa tal como fazemos com as calças jeans após sairmos de um rodízio.

Para combater a fome, ame. Se for alimentado, comemore. Se não for, nem tente. Quem não alimenta com comida não pode alimentar com carinho. São sinônimos.

P.S. Agora me deu fome. De tudo.


























quinta-feira, 15 de maio de 2014

Ser tão.

Sou o próprio Nordeste
No sangue e na pele
No brilho do olhar

Fui feita pra dança
E minha Asa Branca
Me leva a voar.

Sou água de chuva
Que a vida saúda
No solo rachado.

Mulato aguerrido
Que manda os bramidos
Pra tanger o gado

Sou neta de vaqueiro
Sombra de juazeiro
Sou o cheiro da arruda

Eu sou benzedeira
Mas já fui parteira
Na hora da ajuda

Sou sol escaldante
Sou seu comandante
Lampião do cangaço

Sou fraco e franzino
Mas o meu destino
Eu mesmo é que traço

Sou toda lua cheia
Que o Sertão encandeia
Que ilumina a estrada

Sou seu candeeiro
Forró no terreiro
Sou Luiz Gonzaga.

E se um dia disserem
Que ser do Nordeste
É má condição

Respondo sem risco:
Só é tudo isso
Quem sabe ser tão.




quinta-feira, 8 de maio de 2014

Para aprender a ser filho.

A tarefa de escrever para as mães¹, no Dia das Mães, é das mais difíceis. Como diria o clichê musical desse dia, nós temos muito para lhes falar, mas com palavras não sabemos dizer! Mesmo a palavra "amor", a mais grandiosa de todo o dicionário, parece pequenininha perto do abraço da mãe da gente, né? E como colocar junto a esse abraço toda a gratidão e a admiração que sentimos? E como expressar, em Newtons (unidade de medida que lembro do Ensino Médio), a força que se transmite das mãos delas para as nossas nos momentos de desespero na cadeira do dentista? Ou depois de um pesadelo? Impossível.

Por isso acreditei que dessa vez era melhor escrever para os filhos. Sim, me refiro a vocês, que em algum momento da infância já quiseram fugir de casa. Que já xingaram suas mães, mas ao mesmo tempo desemborcaram a sandália para ela não morrer (adoro superstição). Vocês, que já desejaram, ainda que por 30 segundos, não ter mãe (quando ter uma mãe significava ter regras a cumprir). Alguns, em sua vileza, já quiseram a morte dos pais - incluída aqui a mãe. Vocês, filhos, que desenharam coisas em franca assunção do estilo cubista surrealista dadaísta moderno e foram elogiados como verdadeiros artistas. Vocês, que tantas vezes deixaram, contrariados, as melhores brincadeiras por causa do sereno.

A vocês, filhos, vou contar apenas duas histórias que, gostaria muito, fossem lidas com atenção.

A primeira história tem relação com um dom que somente as mães possuem: o dom de renunciarem. Já pararam para perceber que desde a concepção de um bebê até o último dia de suas vidas as mães abandonam o que querem em prol dos filhos? Começa com a gestação: não pode beber, não pode fumar, não pode comer isso e aquilo, em alguns casos não podem se esforçar em determinadas atividades físicas, e por aí vai.

Depois que o bebê nasce aí é que vem privações de todo o gênero: primeiro, as de ordem financeira, que apesar de serem menos piores não deixam de ser sentidas (Ir ao salão ou comprar fralda? Trocar o carro ou equipar o quarto do bebê?); depois, as relacionadas à liberdade e à desoladora certeza de que não se pode sair por um minuto, viajar, passar um fim de semana em um lugar legal, ir ao shopping sem hora pra voltar...

Se fosse só isso tudo bem! Mas quando crescemos são outras renúncias: as mães abdicam do sono, das noites de amor eventualmente atrapalhadas por um pesadelo, e da própria paz.

Depois, se você um dia conseguir perceber, chega uma hora em que as mães renunciam até de si mesmas.

Explico. E aqui começo a primeira história.

Conheci uma mulher que possui duas filhas. Meninas bonitas e inteligentes. Acredito que a mais velha deve contar com 8 anos agora, e a mais nova com 5. Mas isso não vem ao caso. O fato é que a mãe descobriu um câncer no seio.

Depois de muito susto e correria, enfim agendou-se uma cirurgia para retirada do tumor.Durante dias, a mãe permaneceu, perante as filhas, do mesmo modo como sempre se comportou: ria, brincava, tinha seus momentos de conversa com as meninas, fazia almoço. Tudo igual.

As meninas, até então, não sabiam de nada.

Um dia vi as filhas brincando na varanda de casa com vários lápis de todas as cores. Era um festival de alegria! Desenhos e papeis esvoaçavam naquela cena, linda de se retratar.
Mas ao lado das meninas, uma mãe possuía olhos cor de cinza e um sorriso amarelo. Eu sabia o porquê: a certeza de se amputar não um seio, mas a sua própria feminilidade, o seu próprio eu.

O contraste existente naquele momento era belo e aterrador.

Mas uma mãe de verdade renuncia ao direito de sentir dor na frente das filhas. A mãe renuncia ao direito  mais íntimo que possui, que é o direito de sentir tristeza. As mães, por incrível que pareça, também não possuem o direito de morrer. Morrem a contragosto e se afligem mais por deixar os filhos do que por deixar o mundo.

Isso se vê também na segunda historinha.

A mãe da minha melhor amiga², certa feita, foi acometida de um tumor na cabeça. Os riscos da cirurgia eram altos. Mas minha amiga só soube a verdade depois que a operação já havia sido um sucesso. Essa mãe também teve de renunciar ao direito de sentir medo. Imagino, hoje, o quanto ela deve ter sofrido sozinha, em sua angústia, a cada consulta, a cada exame. E tudo com um sorriso no rosto e a aparente tranquilidade de sempre.

Deve ser verdade o que minha mãe sempre diz: "Depois que você é mãe nunca mais consegue dormir direito.". Faço um adendo para dizer que, muito provavelmente, depois que se é mãe você nunca mais consegue ser você plenamente.

E isso é de uma lindeza impossível de traduzir!

Por fim, apesar de saber que os filhos, que nem aguentam esperar o jantar, talvez não tenham nem chegado ao final do texto, quero contar só um conto bem curtinho sobre o que eu espero nesse Dia das Mães.

Meu tio Cosme, esposo de tia Linda, teve uma mãe nada convencional, com quem morou até bem pouco tempo. É que a mãe dele, nossa querida Morena, apresentou um quadro de Alzheimer, que em determinada altura da vida era apenas controlado, mas que jamais poderia regredir. 
Em determinados momentos ela mal conseguia distinguir o filho. Algumas vezes o chamava como se ele fosse o marido, outras vezes como se fosse outro filho. Em alguns momentos tinha raiva de todos, em outros - na maioria deles - era divertidíssima.
O fato é que Cosme sempre cuidou dela com a mesma serenidade e paciência por todos os dias em que conviveram. Mesmo nos momentos críticos, era ele que cuidava dela como uma mãe cuida do filho. E quando foi o aniversário de Morena, no dia 12 de janeiro (como ela costumava dizer a todos) e comemoraram junto com ela em um tipo de reunião da família, diante da menor insinuação de que ela nem sabia do que se tratava por conta da doença, era como se Cosme, com sua atitude, falasse: "Mas eu sei que é aniversário dela".
E foi assim por todos os dias, até que Deus a levasse para junto de si³.

Por isso hoje, filhos, junto com o presente comprado para "uma data comercial" - como dizem os chatos - tentem oferecer às mães de vocês um pouco mais.  Se ofereçam a elas, abandonando os egoísmos que existem mesmo nas mínimas coisas (na comida do almoço, no programa de domingo, no filme da televisão). Isso, com certeza vale mais que qualquer palavra.

Talvez não seja suficiente, mas ainda assim será muito.

É que no dizer de mainha*, e esta é uma verdade, "nós só aprendemos a ser filhos, depois que somos pais.". Para aprender a ser filho, é necessário aprender a arte da renúncia. E as mães merecem toda tentativa.





¹ Apesar de falar sempre em "mãe", obviamente também me refiro aos pais que são mães.
² Soraia, vulgo Maria Soraide, me deve uma lasanha de camarão até hoje! Bel, vou cobrar!
³ Morena nos deixou fisicamente em 26 de abril deste ano. Mas só fisicamente. A memória não morre.

*Mãe, te amo muito! Sei que não é suficiente nada do que eu já fiz ou venha a fazer, perto do que você já fez e faz por mim. Só queria que você soubesse que eu tenho muito orgulho de ser sua filha e de ter aprendido tudo o que aprendi com você! Estaremos sempre juntas!












domingo, 9 de março de 2014

O Dia da Mulher e a barriga.

Não tinha escrito nada sobre o Dia da Mulher. Depois do carnaval, todavia, tive vontade de escrever sobre um determinado assunto e vi que dá pra relacionar ambos. O assunto é "Barrigas".

Durante o carnaval, Ivete Sangalo foi perguntada - mais vezes do que o recomendável - se estava grávida, devido a uma saliência localizada em seu tronco, também conhecida como "barriga". Durante sua passagem pelo circuito do carnaval, apresentadores de televisão encheram a cantora de perguntas sobre uma possível gravidez. E a resposta da artista surpreendeu muita gente: "É uma barriga de mulher que tem barriga mesmo.".

Difícil encontrar uma mulher que esteja satisfeita com essa parte da anatomia. Eu, particularmente, há um certo tempo, empreendi uma dieta de um dia com o objetivo de perder a pretensa barriga. Quase todas nós nos olhamos no espelho das academias, dos provadores de loja e, frustradas, vemos a barriguinha aparecendo. Ou "pneuzinhos". A gente come fruta, bebe mais água, usa faixas apertadíssimas e tenta fazer abdominais para tentar diminuir a barriga de todo jeito.

Por vezes não tem qualquer relação com a saúde. Quem pensa em ficar sem barriga apenas porque é saudável? Aliás, quem disse que o saudável é não ter barriga nenhuma, apenas uma pele que recobre os músculos do abdômen?

A relação entre barriga - ou a falta dela - e e beleza é tão forte que os publicitários já perceberam o quanto tem de apelar para a vaidade feminina. Ir ao banheiro com regularidade é bom para a saúde, certo? Mas você só vai tomar Activia até dizer chega se o inchaço causado pela prisão de ventre te deixar com uma barriga incômoda. O raciocínio é exatamente este.

Vivemos num mundo em que nossos ídolos, nossas atrizes favoritas ou cantoras possuem a barriga mínima. Experimente uma passeada por sites fúteis (que eu aprecio, devo admitir) e observe quantas mulheres possuem uma barriga minimamente saliente. Nenhuma delas. Até as que são mais gordinhas providenciam uma lipo, porque dá pra ter o braço, a coxa ou a perna grandes, mas barriga, jamais! E esse universo de pessoas sem barriga nos faz pensar de maneira absolutamente errada que o normal é não ter barriga. Até as manchetes ajudam nisso: em meio a dezenas e dezenas de notícias do tipo "Gracyanne Barbosa mostra barriga sarada na Sapucaí" surge um escândalo mais ou menos assim "Ivete Sangalo é vista com barriga saliente em Salvador".

Meu Deus! Ivete Sangalo tem barriga? Não, não pode ser! Ela só pode estar grávida! - a imprensa estúpida e subalterna de idiotices pensa e proclama por aí.

Talvez por isso a resposta dela tenha deixado os apresentadores tão desconfortáveis, ainda mais pelo jeito debochado da cantora, que num tom de brincadeira, mas visivelmente "retada", perguntou a Casemiro Neto se foi ele que "a comeu".

Apesar de a obesidade crescer assustadoramente no país, a preocupação com a "barriguinha" beira o absurdo. A busca pela saúde - e por uma alimentação saudável, atividades físicas regulares e mente descansada - deveria ser a causa que está por trás de toda barriga "sequinha", "chapada", "sarada" ou "negativa". A pretensa barriga musculosa deveria ser apenas a consequência de uma vida saudável e não o principal motivo de cirurgias plásticas e procedimentos tão invasivos quanto.

Enquanto pensamos que tudo não passa de vaidade, apenas, e utilizamos o pretexto da saúde, adolescentes vomitam o almoço porque tem o assustador medo de engordarem e não serem mais aceitas em seus círculos de amigos. Tudo porque acreditam que serão tratadas como as famosas: "Olha, Fulana tem barriga! Meu Deus! Que catástrofe!".

No Dia da Mulher as pessoas deveriam refletir sobre isso. Deveriam deixar que as mulheres tenham sua própria barriga e possam dizer que tem barriga mesmo, como Ivete fez. As mulheres deveriam ter o direito de exibirem suas "barrigas positivas" por aí, ainda que a positividade delas não seja causada por um bebê.

É por isso que eu mudei meu padrão de beleza. Em vez de Gracyanne Barbosa, Panicats e Top Models, eu agora vou me espelhar em Vênus de Milo, de Botticelli. Se você reparar bem, ela tem uma certa salienciazinha ali. Mas ela é uma deusa, assim como toda mulher.




quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Dos que não conseguem morrer: o amor e o sonho.

Este texto deveria estar impregnado de otimismo, cheirando a esperança e fé, e eu queria que ele tivesse o poder de penetrar os corações e de irradiar luz nas pupilas opacas dos que sofrem. Bastaria isso para que eu seguisse essa minha vida pretensamente feliz por entre os séculos, ainda que já não habitasse esse corpo.

Em "O Auto da Compadecida" o personagem Chicó costuma falar, mais de uma vez, que "Tudo que é vivo morre.". Ouso discordar do mestre Ariano Suassuna para dizer que só duas coisas essencialmente vivas jamais conseguem morrer: o amor e o sonho.

Mas tenho visto - com esses olhos que foram feitos para ver as belezas do mundo, e não sem assombro -, como a falta de amor tem levado a vida humana à mais horrível miserabilidade. Seguimos como um rebanho de condenados, ricos e pobres, a achar que vida é isso que nos é apresentado todos os dias.

Pobres de nós, na maioria das vezes mortos-vivos, a cumprir a rotina triste da falta de amor.

Recuso-me a acreditar - e achar normal - que pessoas foram feitas para serem desprezadas, machucadas, malcuidadas, humilhadas. De coração. E eu queria muito mesmo ter a coragem de agir, de fazer algo concreto, algo real para mudar a condição de vidas que se perdem todos os dias em virtude de nossas inércias cômodas.

Algumas pessoas acham que são melhores que outras em alguma coisa: na cor, no dinheiro que possuem no bolso (ou em contas bancárias no exterior), no nome, na profissão, no idioma, na religião. Coisas assim, frívolas.

Nos julgamos, na maior parte do tempo, detentores de todo o conhecimento, senhores das coisas da natureza e das ciências, poderosos em nossas poltronas e cadeiras de couro acomodadas sobre o carpete dos escritórios e gabinetes. Nos sentimos invencíveis e intocáveis. E fazemos tudo o que for preciso para manter essa vaidade do "ser melhor que alguém".

Como nunca percebemos que ser "melhor" só deveria possuir o sentido de ser uma pessoa essencialmente melhor? Ser melhor que alguém deveria significar ser mais caridoso, mais generoso, mais carinhoso e menos pedante, arrogante, intolerante...

Através desses milhares de anos de história humana conhecemos dois líderes bem distintos. Alcançaram multidões inestimáveis e reproduziram discursos que até hoje ecoam. A diferença entre eles era o fundamento de suas doutrinas: um pregava o amor ao próximo; o outro, pregava o ódio.

Para um, o amor era o cerne de toda a fé e de toda a salvação. Para outro, o amor era só essa palavra subversiva e boba repetida em dicionários judeus.

Por certo você, que está lendo isso, deve pensar que não existe comparação entre esses dois líderes e se questiona o porquê de ser apresentada uma balança tão desequilibrada. "Mas é claro que eu seguiria o primeiro", dirá. Então é chegada a hora de se perguntar por que só consegue reproduzir o segundo discurso, agindo conforme a falta de amor.

Não é necessário que você tenha religião, sequer que você acredite em Deus. Só é preciso que acredite no ser humano e não entenda essa "normalidade" das misérias cotidianas. Nos emocionamos tanto com filmes e documentários, sobretudo quando há crianças, e andamos pela rua ignorando esses olhinhos solitários que reclamam alimento. Somos incapazes, por vezes, de sorrir de volta, de ajudar quem precisa, de ser um pouco mais solidário do que somos conosco mesmos, com essa nossa imagem narcísica e suicida. E vamos morrendo sem amor, aos poucos. Às vezes aos montes, como no Oriente Médio.

Talvez por isso Cristo algum dia tenha dito que devemos amar o próximo como a nós mesmos. Nós nos perdoamos todos os dias, não importa quão ruins tenhamos sido. Nós cuidamos de nós mesmos. Expomos nossos sentimentos para nos sentirmos melhor. Temos calma com as besteiras que nós mesmos dizemos e pensamos. Nós jamais teríamos coragem de nos machucar ou nos fazer mal. E se alguma vez alguém já tentou não existir mais, não foi por falta de amor, mas foi por se amar demais a ponto de viver em estado de tamanho sofrimento.

Como é difícil tratar o próximo como tratamos a nós próprios. Mesmo as pessoas que mais amamos, ficam aquém de nossa malfadada soberba diária. Deus, como é difícil olhar para a rua e ver pessoas, quando estamos acostumados a olhar a rua e ver prazos, contas, números, deveres, vitrines, dinheiro, caixa eletrônico, carros, semáforos!

Talvez se amássemos mesmo desse jeito que alguém tentou ensinar, o mundo não seria assim e não estaria caminhando para pior. Parece uma conclusão óbvia, mas até tomar consciência dela dói um pouco enxergar. É como a pessoa que faz uma cirurgia no olho e tem de usar um tampão: a luz queima no início, até que as trevas se dissipem de todo.

Eu disse lá em cima que apenas duas coisas são vivas demais para conseguirem morrer: o amor e o sonho. Pois bem, eu sonho com o dia em que as pessoas se olhem com tanto amor que sorriam umas para as outras sem motivo algum. E que ao constatarem não ter motivo pra sorrir, que elas riam juntas pensando no quão são bobas se amando. E vão pro trabalho mais leves e definitivamente melhores. Eu sonho com o dia em que começaremos a nos preocupar de verdade com as pessoas que não tem ninguém por elas: as crianças, os idosos, aqueles mais frágeis, mais relegados a um segundo plano distante de nossos castelos de vidro, aqueles que, paradoxalmente, são menos miseráveis porque conseguem amar de verdade alguém. Sonho com o dia em que as diferenças entre homens e mulheres, ricos e pobres, pretos e brancos, patrões e operários sejam apenas as diferenças entre as impressões digitais.

Eu sonho com o dia em que o amor simples de umas pessoas pelas outras deixe de ser sonho.

Quem sabe começando agora já seja possível sentir a leve e perfumada brisa da esperança. Ela também não morre.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Mulher "pra frente".

Se tem uma coisa que eu tô pra escrever tem tempo é sobre a expressão "pra frente", dirigida a mulheres que pensam exatamente da maneira que eu penso.

Confesso que não gostava dessa expressão. Detestava quando alguém me conhecia e de cara fazia a clássica pergunta - não sem um tom de malícia na voz-: "Você é bem pra frente, né?". Na mesma hora eu virava a cara, enquanto pensava na quantidade de imbecis que o mundo ainda pode produzir.

Mas amadureci e comecei a perceber que, em vez de abandonar por completo uma realidade que não gosto, por vezes é mais divertido transformar essa mesma realidade. Por isso hoje ninguém precisa me atribuir essa característica de "pra frente". Eu mesma digo.

E percebi uma coisa ainda mais impressionante: alguns homens desperdiçam o poder da expressão "pra frente" fazendo crer - erroneamente - que pra frente é a mulher que se diverte: bebe, dança, seduz , beija e ama como uma louca. Os homens pensam que a mulher pra frente é aquele tipo de mulher que fala de sexo sem vergonha alguma, que fica com quantos quer ficar, que chama a atenção por falar alto. Alguns considerariam vulgar.


O que muitos não consideram é que há uma sensível diferença entre ser vulgar e ser feliz. Entre ser espontânea e agir especificamente para chamar a atenção de homens cujo cérebro não excede as dimensões de uma noz.

Por isso não sou pra frente apenas por me divertir numa festa e - creiam-me - já ouvi perguntas do tipo "Você tá se divertindo bastante né? Super pra frente você.". Imagina se eu começasse a ir em festas pra não me divertir? Ou se eu me preocupasse mais em manter a maquiagem no rosto do que o ritmo da dança? Coisas que não entram na minha cabeça.

Eu sou pra frente mesmo porque meus passos nunca foram do tamanho das minhas pernas.

Porque entre minhas piadas de duplo sentido e as gargalhadas de amigos queridos estão meus melhores momentos de alegria.

Sou pra frente porque não tenho vergonha das coisas que penso nem das coisas que faço, justamente porque meus desejos apenas se limitam pela minha consciência e não pela dos outros. E se as pessoas em geral não tem vergonha de se tratarem mal, não deviam se envergonhar de nada que as faz humanas.

Minhas vontades, enquanto não prejudicarem ninguém, são apenas minhas. São queridas. São o que fazem de mim uma pessoa verdadeiramente viva nesse mundo.

Talvez eu seja pra frente porque eu viva pra mim mesma.

Ou porque eu amo conversar com gente. Conhecer pessoas. Ouvir e falar muito. Brincar.

Entendo que não é fácil conhecer uma mulher verdadeiramente pra frente (e tenho a sorte de conhecer muitas delas, todas irresistíveis), por isso muita gente confunde as coisas. Algumas continuam vivendo dois mundos: um, lindo e colorido, cheio de possibilidades e coisas que gostaria de fazer; outro preto e branco e sem graça, no qual admite sobreviver às custas do que os outros acham legal e certo.

Ser pra frente não tem absolutamente nada a ver com ser inconsequente ou irresponsável. É apenas uma questão de se respeitar e de fazer aquilo que te dá mais vida, aquilo que faz o olho brilhar, aquilo que dá a absoluta certeza de que não se vem ao mundo apenas para enfeitar uma vitrine vazia.

Não é nada parecido com beijar mais de um cara numa festa nem fazer sexo na primeira noite - e é uma vergonha que ainda continuamos discutindo coisas assim em relação às mulheres, em pleno ano de 2014.

A mulher pra frente é aquela que faz sua própria vontade, ainda que isso custe um péssimo corte de cabelo ou um coração tão quebradiço quanto unhas grandes.

Mulher pra frente não tem tempo de se mostrar mais ou menos "adequada" - essa palavra me dá gastura - simplesmente porque está ocupada demais distribuindo simpatia sem medo de parecer oferecida ou amando corajosamente alguém. Inclusive, por fazerem apenas o que tem vontade, essas mulheres amam mais do que quaisquer outras que eventualmente apenas se preocupam com fotos bonitinhas no Instagram.


Sei que a companhia de uma mulher pra frente deve encher os homens de receios e inseguranças bobas. Mas pra quem gosta de alegria e verdade é fácil encontrar uma:

Lá na frente mesmo - ali onde as nuvens e a luz do sol criam arco-íris - lá é que estará a mulher pra frente correndo atrás de seus sonhos e te deixando pra trás. Aliás, se eu puder dar um conselho a meia dúzia de homens mais ou menos esclarecidos eu diria que jamais exija que uma mulher pra frente regrida até você. Seja um homem suficientemente pra frente para acompanhá-la.

Admito que no início fiquei até preocupada com o fato de parecer que estou "justificando" alguma coisa com esse texto. Depois eu vi que apenas queria escrevê-lo e, mulher pra frente que sou, não posso perder a oportunidade de fazer aquilo que me dá vontade.

Assim, antes de chamarem alguém de "pra frente", rapazes, certifiquem-se de que não estão desperdiçando  um elogio. Poucas mulheres, nesse mundo ridiculamente machista, conseguem ser espontaneamente irresistíveis. Valorizem. Ou prefiram as adequadas.

P.S. Outro dia uma colega de escola publicou no facebook "Vulgar sem ser sexy". Muito "pra frente" ela. Ou admirável. Dá no mesmo.