Este texto deveria estar impregnado de otimismo, cheirando a esperança e fé, e eu queria que ele tivesse o poder de penetrar os corações e de irradiar luz nas pupilas opacas dos que sofrem. Bastaria isso para que eu seguisse essa minha vida pretensamente feliz por entre os séculos, ainda que já não habitasse esse corpo.
Em "O Auto da Compadecida" o personagem Chicó costuma falar, mais de uma vez, que "Tudo que é vivo morre.". Ouso discordar do mestre Ariano Suassuna para dizer que só duas coisas essencialmente vivas jamais conseguem morrer: o amor e o sonho.
Mas tenho visto - com esses olhos que foram feitos para ver as belezas do mundo, e não sem assombro -, como a falta de amor tem levado a vida humana à mais horrível miserabilidade. Seguimos como um rebanho de condenados, ricos e pobres, a achar que vida é isso que nos é apresentado todos os dias.
Pobres de nós, na maioria das vezes mortos-vivos, a cumprir a rotina triste da falta de amor.
Recuso-me a acreditar - e achar normal - que pessoas foram feitas para serem desprezadas, machucadas, malcuidadas, humilhadas. De coração. E eu queria muito mesmo ter a coragem de agir, de fazer algo concreto, algo real para mudar a condição de vidas que se perdem todos os dias em virtude de nossas inércias cômodas.
Algumas pessoas acham que são melhores que outras em alguma coisa: na cor, no dinheiro que possuem no bolso (ou em contas bancárias no exterior), no nome, na profissão, no idioma, na religião. Coisas assim, frívolas.
Nos julgamos, na maior parte do tempo, detentores de todo o conhecimento, senhores das coisas da natureza e das ciências, poderosos em nossas poltronas e cadeiras de couro acomodadas sobre o carpete dos escritórios e gabinetes. Nos sentimos invencíveis e intocáveis. E fazemos tudo o que for preciso para manter essa vaidade do "ser melhor que alguém".
Como nunca percebemos que ser "melhor" só deveria possuir o sentido de ser uma pessoa essencialmente melhor? Ser melhor que alguém deveria significar ser mais caridoso, mais generoso, mais carinhoso e menos pedante, arrogante, intolerante...
Através desses milhares de anos de história humana conhecemos dois líderes bem distintos. Alcançaram multidões inestimáveis e reproduziram discursos que até hoje ecoam. A diferença entre eles era o fundamento de suas doutrinas: um pregava o amor ao próximo; o outro, pregava o ódio.
Para um, o amor era o cerne de toda a fé e de toda a salvação. Para outro, o amor era só essa palavra subversiva e boba repetida em dicionários judeus.
Por certo você, que está lendo isso, deve pensar que não existe comparação entre esses dois líderes e se questiona o porquê de ser apresentada uma balança tão desequilibrada. "Mas é claro que eu seguiria o primeiro", dirá. Então é chegada a hora de se perguntar por que só consegue reproduzir o segundo discurso, agindo conforme a falta de amor.
Não é necessário que você tenha religião, sequer que você acredite em Deus. Só é preciso que acredite no ser humano e não entenda essa "normalidade" das misérias cotidianas. Nos emocionamos tanto com filmes e documentários, sobretudo quando há crianças, e andamos pela rua ignorando esses olhinhos solitários que reclamam alimento. Somos incapazes, por vezes, de sorrir de volta, de ajudar quem precisa, de ser um pouco mais solidário do que somos conosco mesmos, com essa nossa imagem narcísica e suicida. E vamos morrendo sem amor, aos poucos. Às vezes aos montes, como no Oriente Médio.
Talvez por isso Cristo algum dia tenha dito que devemos amar o próximo como a nós mesmos. Nós nos perdoamos todos os dias, não importa quão ruins tenhamos sido. Nós cuidamos de nós mesmos. Expomos nossos sentimentos para nos sentirmos melhor. Temos calma com as besteiras que nós mesmos dizemos e pensamos. Nós jamais teríamos coragem de nos machucar ou nos fazer mal. E se alguma vez alguém já tentou não existir mais, não foi por falta de amor, mas foi por se amar demais a ponto de viver em estado de tamanho sofrimento.
Como é difícil tratar o próximo como tratamos a nós próprios. Mesmo as pessoas que mais amamos, ficam aquém de nossa malfadada soberba diária. Deus, como é difícil olhar para a rua e ver pessoas, quando estamos acostumados a olhar a rua e ver prazos, contas, números, deveres, vitrines, dinheiro, caixa eletrônico, carros, semáforos!
Talvez se amássemos mesmo desse jeito que alguém tentou ensinar, o mundo não seria assim e não estaria caminhando para pior. Parece uma conclusão óbvia, mas até tomar consciência dela dói um pouco enxergar. É como a pessoa que faz uma cirurgia no olho e tem de usar um tampão: a luz queima no início, até que as trevas se dissipem de todo.
Eu disse lá em cima que apenas duas coisas são vivas demais para conseguirem morrer: o amor e o sonho. Pois bem, eu sonho com o dia em que as pessoas se olhem com tanto amor que sorriam umas para as outras sem motivo algum. E que ao constatarem não ter motivo pra sorrir, que elas riam juntas pensando no quão são bobas se amando. E vão pro trabalho mais leves e definitivamente melhores. Eu sonho com o dia em que começaremos a nos preocupar de verdade com as pessoas que não tem ninguém por elas: as crianças, os idosos, aqueles mais frágeis, mais relegados a um segundo plano distante de nossos castelos de vidro, aqueles que, paradoxalmente, são menos miseráveis porque conseguem amar de verdade alguém. Sonho com o dia em que as diferenças entre homens e mulheres, ricos e pobres, pretos e brancos, patrões e operários sejam apenas as diferenças entre as impressões digitais.
Eu sonho com o dia em que o amor simples de umas pessoas pelas outras deixe de ser sonho.
Quem sabe começando agora já seja possível sentir a leve e perfumada brisa da esperança. Ela também não morre.
Que texto lindo!!! Nunca li nada igual. Parabéns por ser possuidora de tamanha sensibilidade! O mundo está carente disso. Gostei muito do seu blog, principalmente do texto sobre o Direito. Parabéns por ser uma exceção.
ResponderExcluirMalena Galvão.
Eu que agradeço, Malena! Fico muito feliz com o comentário!
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