quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Eventos acontecem.


O mundo está cheio de gente que existe. Infestado. Tem mais de 7 bilhões existindo por aí e podemos atestar isso através de nossas experiências sensoriais mais simples: vemos mais de uma centena de pessoas por dia, esbarramos nelas pelas calçadas e passarelas lotadas, sentimos o cheiro dos desodorantes e perfumes misturados ao suor do trabalho. O cotidiano nos reserva esse imenso encontro de desconhecidos nas padarias, no trabalho, nas ruas, nos supermercados, nas farmácias, nos shoppings, na praia. Estas pessoas existem, assim como existimos em algum momento pra elas.

Mas há pessoas, umas poucas nesse universo de gente, que não apenas existem. Há pessoas cujas lembranças duram mais que dois milésimos de segundo ou o cheiro instantâneo de uma colônia barata que se vai com o primeiro vento. Há pessoas cujo contato, ainda que efêmero, deixa em nós uma marca tão patente, tão visível, que permanecem em nós após o encontro promovido pela rotina. Estas pessoas acontecem. São eventos.

E por serem eventos, estas pessoas tem todas as características que só os grandes acontecimentos possuem: é impossível contar sua própria história sem citar aquela pessoa; se você fizesse uma linha do tempo de sua vida - dessas que se faz na escola sobre D. Pedro I - haveria a marca do dia em que conheceu aquela pessoa; aquilo que você é passa a ter relação direta com aquilo que a pessoa é pra você.

Se você teve a chance/sorte de ter uma vida coroada de pessoas-eventos, agradeça. Comemore. Ria. Espalhe ao mundo sua felicidade. Os bons eventos nem sempre costumam acontecer tão facilmente. Alguns chegam juntos. Outros demoram meses e meses para acontecer. Tem gente que passa toda a vida almejando acontecimentos tão marcantes. Tem gente que é mais espectador. Tem gente que acontece com uma frequência assustadora. Mas todos, de uma forma ou de outra, acontecem.

Na minha vida alguns desses eventos são tão bons que eu pediria empréstimo para comprar ingresso. Compraria com antecedência e esperaria com ansiedade. Alguns valem meses de espera na porta, munida de uma barraca de camping e cobertor. Eu colocaria uma foto do ingresso no facebook e escreveria "Faltam __ dias!". Correria pra pegar o melhor lugar e documentaria todo o show com olhos vidrados e memória acesa, cheia de admiração. É o que me fazem sentir.

Mais que isso até: posso dizer que muitas das pessoas com as quais convivo são verdadeiros festivais! São pessoas completas! Se apresentam de várias formas e em cada momento são únicas: às vezes tem uma carga dramática que me faz tensa ao assistir; outras vezes são dotadas de uma leveza que me fazem corar e esboçar o mais sincero sorriso de contemplação. Ser espectador de alguém é tão sublime quanto ser um evento na vida de uma pessoa. 

E em nossos estranhos encontros de desconhecidos fiquemos alertas: infelizmente não se vendem ingressos de pessoas. Não temos hora ou lugar marcado. Não podemos esperar na fila. Não podemos ter uma prévia de grandes shows. E também os eventos não esperam pra acontecer. Não há necessidade de casa lotada. É tudo sempre uma questão de oportunidade e coração aberto. De se mostrar de verdade e também de assistir aos outros. É ser sensível a todos aqueles que podem virar uma marca em nossa linha do tempo: nossa história a qualquer momento pode se confundir com a história de um encontro.

Nem todos que passam por nós apenas existem. Uns acontecem. Sejamos bons espectadores.








quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O botão que tinha medo de desabrochar.

Era só um botão de flor, desses pequeninos e insignificantes, que a gente costuma pisar sem nem perceber. Escondido na folhagem, por entre os ramos e folhas das demais flores, crescia pequeno e fechado, ouvindo o barulho dos beija-flores e das abelhas. Ainda não tinha desabrochado e isso era menos por vontade do que por exigência da natureza: não desenvolvera ainda a grandeza das pétalas e por isso mesmo esperava, impaciente, o dia de se abrir ao mundo.

Certa feita, ouviu de um besouro que passava a triste história de uma rosa amarela, que ao se abrir, espalhando perfume e cor, tivera a vida ceifada por um jardineiro e acabou servindo de enfeite no vaso do criado-mudo de uma madame.

Então tomou pavor da ideia de desabrochar. Não queria acabar como a rosa amarela, que mal tivera tempo de experimentar o abraço quente do sol de primavera sobre suas pétalas coloridas. O abrir-se era um risco muito grande, ainda que não passasse de uma margarida. O medo, então, se apoderou de cada pétala e cada porção da seiva fresca e jovem. Decidiu não se abrir. Nunca. Se pudesse, cresceria sempre no escuro de si mesma, protegida dos perigos que só atormentam a vida das pequenas flores.

E assim fez.

Dia após dia a florzinha aproveitava o que podia do sol em suas folhas e, estando repleto de nutrientes o solo, tratava de crescer sem ver a luz. E passaram-se semanas, até que a florzinha cresceu o suficiente. Estava pronta. Ainda com medo, relutou. Preferia continuar naquele contorcionismo de pétalas a deixar-se ferir de morte por um jardineiro cruel. Ouviu quando a tesoura gigante e afiada levara as demais e não queria ter o mesmo fim. E assim ficou só.

As borboletas e joaninhas desapareceram. Os besouros visitavam as flores da outra parte do canteiro, na certeza do pólen dourado. E a sensação de proteção, tão querida dos outros tempos, desapareceu. Era um alvo fácil agora. Atormentou-a a solidão adubada. Fechar-se ao mundo pode não ter sido uma boa ideia: ainda que tenha prolongado sua ínfima existência, não lhe garantiu a eternidade.

Pelo contrário, morreria igual às outras, só que machucada pela certeza de uma vida sem significado. Jamais veria os olhos humanos de admiração, não sentiria as carícias do vento da tarde, tampouco saberia o peso que tem o orvalho. Desconfortável e atrofiada, morreria feia e seca e talvez não fosse digna nem de enfeitar o próprio túmulo, se houvesse nesse mundo enterro de flor - esta história de enfeitar túmulo ela sabia porque um crisântemo contara-lhe o destino de seus irmãos, numa coroa de flores de velório.

Rápido, tratou-se de mexer as pétalas dobradas. Ia doer. Ela tinha certeza que doía. Era inevitável. Algo que se fecha por tanto tempo tem certa resistência à liberdade - e nisto se iguala aos corações. Mas aos poucos avançava até sentir os primeiros raios de sol. Desabrochou por completo. Era uma flor meio torta, é verdade, mas via-se com clareza que era uma flor.

E tão logo se abriu, um pássaro descuidado esbarrou nela, ferindo-a com o bico. As abelhas roubaram-lhe o pólen com violência. Os besouros subiam e desciam por suas pétalas, enquanto depositavam ovos de pequenas larvas. Cada promessa dessa primavera doeu.

Após meses, quando chegou o inverno, fechou-se novamente. Ainda lhe doíam as pétalas machucadas e o caule mordido pelas formigas. Estaria um tanto mais segura. Cansada que estava das mutilações, poderia até escolher se fechar novamente. Mas não. Quando chegou o tempo novamente foi a primeira a se abrir e se mostrar.

Percebeu que desabrochar fora sua melhor decisão - se é que podemos imputar ao livre arbítrio fato tão natural. Sim, fora uma decisão: também nós, humaos, somos naturalmente impelidos a viver, mas alguns decidem não fazê-lo. Se não tivesse escolhido se abrir, ainda que para conhecer a dor, seria para sempre um botão de flor insignificante e pequeno, desses que qualquer um pisa sem nem perceber. Mas para além das ferroadas dos marinbondos, da apropriação do pólen, e das pragas que llhe afligiam, ela enfim sabia bem o que era.

Ela era uma flor, não um botão.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A cigana.

Sentada na praia eu observo as ondas virem e irem naquela cadência costumeira. Não sei se o som do mar ajuda, mas o fato é que pra mim as ondas representam uma música cheia de acordes que vem e voltam. É uma música gostosa de ouvir. Calma. Tranquila. Paciente.

Observo a parte mais escura do mar. Lá parece mais calmo, sem ondas, mas tenho a impressão de tormenta. Não sei se por causa dos filmes, ou porque o mar aqui perto é mais claro, mas no fundo eu tenho a impressão de naufrágio. E deve ser mesmo. Nunca passei da linha da cintura. Mas fico aqui observando o mar, ao longe, na esperança de ver a própria Iemanjá surgir em alto-mar.

Não, não sou "devota" de Iemanjá. Só joguei flor uma vez, mas simpatizo com essa figura feminina das águas. Não gosto quando zombam dela. Tampouco entendo porque jogam na água coisas de tão baixa qualidade. Melhor que joguem coisas sem preço, tipo as flores: a serventia deve ser maior do que o esmalte seco colorido. Gosto dela. Acho que ela deve simpatizar comigo também, se ela existir mesmo. Pelo sim pelo não, não vou perturbá-la no fundo. Deixa ela lá e eu aqui na areia.

O melhor da praia é que é um dos únicos lugares onde constância e acaso gostam de se juntar. A certeza do mar para a areia é a mesma certeza da areia para o mar. Vão se encontrar sempre, enquanto houver praia. Ao mesmo tempo algumas coisas são tão incertas, apesar de insertas naquele ambiente... Eu, por exemplo. Provavelmente, nem a areia nem o mar esperavam encontrar uma visitante tão súbita (tempão que não vou à praia), mas eu aconteci. E a praia aconteceu pra mim num dia de terça-feira.

Sentada ali o tempo passa. Eu observo tudo. Alguns homens jogam futebol por perto, gritando a posse da bola. Outros passam vendendo coisas. Me oferecem picolé, óculos escuros, protetor solar, acarajé. Tudo. Eu recuso tudo também: minha ideia era ir à praia só comigo mesma e não carregar mais nada. Nem preocupação nem planos.

Ao longe uma figura diferente. Um tanto ridícula, para nossos padrões. Repenso essa frase. Ela é só diferente de todos nós. Fico imaginando quantos graus fazem embaixo do vestido cheio de babados e cores. Uns quarenta graus, no  mínimo. É uma cigana.

- Posso ler sua mão?

Eu rio. Digo que não com um sorriso tímido. Não acredito nessas coisas.Tem gente que tem medo. Eu não, só tenho descrença. Se ela pudesse ler as mãos e saber de tudo, com certeza já teriam inventado um programa de televisão pra ela. O anonimato era a prova da mentira. Ou não. Quem sabe ela só não foi descoberta e neste caso ela mesma saberia, já que teria lido a própria mão desde pequena, ao aprender o ofício.

- Você já leu a sua? - pergunto.
Ela não respondeu. Deu um sorriso de deboche. Na certa pensava o quanto eu tinha sido insolente e precipitada. Mas não. Era só uma risada de velha zombeteira.
- Quando é com a gente a coisa muda de figura.
Ofereço minha mão.
- Você tem problema em saber de coisa ruim? - desafia ela.
- Não. Meu único problema é com coisa boa demais. Sou ansiosa.
- Hum.. Aqui diz que sua vida vai ser curta.
- Curta quanto?
- Você vai morrer do coração, fia.
Começamos bem, penso eu. E rio.
- E não diz quando?
- Não. Isso só o tempo.

Dou uns trocados. Digo que já está bom, não precisa ler mais nada não. Ela se afasta e eu continuo na rotina das ondas. O mar continua igual. A areia, um tanto mais quente. E eu continuo confortável comigo ali quietinha. Um siri aparece. Andar meio ridículo. Ridículo não, diferente. Penso na cigana. Lembro do que ela disse.

Não tenho medo de morrer. Aliás tenho, mas de morte matada: tiro, facada ou asfixia por estrangulamento. Morrer do coração mesmo eu já morri algumas vezes. Umas vezes de alegria, outras de susto. Um punhado de desilusões incrustadas nos átrios e ventrículos. Tô quase acostumada. Coração não aguenta muito essas coisas não. Nem o meu, que é novo.

Também se eu morresse ali, naquela hora, tanto faz. Quem sabe minha alma ia passear pelos terrenos de Iemanjá e pedir emprestado um esmalte. Gostei dessa ideia. Ri. Mas falando sério, se for pra escolher uma morte, que seja a do coração. Coração tem uma cadência de onda do mar. Faz sentido. Decidi que vou morrer do coração mesmo. É mais coerente com a vida que eu levo. Só não sei quando: isso a cigana não me contou.




quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Eu, um "dia das mães" e o porquê de escrever.

Sempre que eu penso no prazer que tenho ao escrever, lembro de um episódio que marcou minha vida "literária". Na época eu nem tinha blog nem nada, mas me satisfazia escrevendo mensagens de aniversário um tanto diferentes dos padrões normais. Sempre gostei de surpreender. E a surpresa foi mais pra mim do que pra minha mãe.

Quando comecei a morar aqui em Salvador, meus pais não podiam alugar um apartamento. Eu morei na casa de uma tia. Éramos 7 num apartamento de dois quartos e uma dependência. Eu, menina do interior. Ainda meio besta, meio acostumada com a vida fácil das cidades em que todo mundo se conhece. Achava difícil me acostumar ao "modus vivendi" da capital. Perdi não só a convivência diária com meus pais e irmãos, mas também um pouco da minha privacidade e conforto. Apesar disso, jamais reclamarei: foi naquele apartamento de dois quartos que eu aprendi as maiores lições da vida.

No último ano que eu passei lá, em 2008, aos 17 anos de idade, minha mãe veio passar o Dia das Mães comigo. Quem tem pai/mãe no interior sabe o quanto é difícil estar presente nessas datas, sobretudo porque não é feriado: dias dos pais e das mães são sempre num domingo e domingo já é o dia do regresso à agonia da capital. Domingo, em geral, é um dia de reflexão e melancolia para os que voltam. Sempre assim.

Aquele dia das mães de 2008, contudo, foi diferente.

Minha mãe veio e eu, que adoro preparar surpresas, tratei logo de ir procurar um presente. Minha mãe tem muito bom gosto para as coisas e isso dificulta um pouco porque o que é bonito, no mais das vezes, é também caro. E foi este o meu problema daquele ano: falta de dinheiro pra comprar presente. Ainda não estagiava e a mesada vinha nos estritos limites de minha necessidade pra transporte. Nunca sobrava. E eu não tinha cartão de crédito. O que comprar?

Precisar mesmo minha mãe tava precisando de tudo: bolsa, sapato, roupa, perfume. O problema não estava na "precisança" e sim no que eu podia comprar. Isso tudo é caro e as lojas parece que não tem noção dos preços: sapatos por preços maiores que um salário mínimo. Absurdo. Algum tempo depois, quando eu começasse a estagiar, ia saber o que é dar duro por um mês inteiro. Imagine se fosse só pra adquirir um sapato? Falta de noção completa da loja.

Acabei comprando um conjunto de sabonete líquido e hidratante do Boticário por uns R$ 30,00.

Mas faltava alguma coisa. E aí veio a ideia, colorida e esvoaçante: eu ia fazer pra minha mãe uma pasta cheia de "atividades de Dia das Mães". Não sei se na escolinha de vocês era assim, mas quando eu era do 1º Período (vulgo "Jardim I"), na semana do dia das mães, nós fazíamos várias atividades. Um dia era confecção de um cartão, no outro dia era colagem com fotos de revista, artesanato e assim por diante.

Vocês não imaginam como foi divertido e especial fazer aquilo!
Na primeira página eu copiei a definição de "Mãe", no dicionário. Depois completei embaixo com a minha própria definição.

Depois, um desenho meu e de minha mãe, do único jeito que eu sei fazer: nós duas de vestido de princesa, ela maior que eu (embora isso não se coadune mais com a realidade), um sol com óculos escuros (embora eu nunca tenha me questionado porque ele estaria usando aquilo, já que os raios de sol saem dele!), gramado baixo, uma flor, uma árvore, uma borboleta voando e ausência de proporção nas coisas (a árvore é menor que a flor e a borboleta é quase do tamanho do sol). E pintei tudo.

Na próxima folha uma história em quadrinhos, no qual eu dizia porque eu achava importante ter um mãe. Tudo isso com direito a desenhos de homens-palito e textos do tipo "Minha mãe cuida de mim quando estou doente." 

Adiante, o mais legal: uma colagem com todos os tipos de presente que eu gostaria de dar a ela. Carros importados, avião, joias, sapatos, roupa e tudo mais que eu recortei de uma revista. No topo da página a frase: "Mamãe, eu queria te dar tudo isso..."

Na página seguinte, a continuação do anterior. A frase "Mas enquanto não posso, te desejo tudo isso:" e um desenho de um presente, de onde saíam meus desejos de amor, felicidade, alegria e tudo mais de bom que só um filho pode desejar a uma mãe.

Quando eu dei esta pasta a minha mãe, sentamos nós duas na cama. Ela me olhava meio nervosa. Abriu o classificador. Fitou a capa e riu do desenho. A partir da primeira página ela só chorou. E eu também. Nossas lágrimas desciam mudas, pois nada precisava ser dito. Ao final, depois de tanto chorar com as declarações infantis e coloridas dos meus desenhos, minha mãe me disse:
- Foi o melhor presente que já ganhei na minha vida.

Aquilo me pegou tão de surpresa que nem eu mesma acreditei. E naquele momento eu senti que queria fazer aquilo mais vezes. Que queria emocioná-la e emocionar aos outros com um punhado de palavras ditas de uma maneira especial. Naquele momento é como se um anjo tivesse cochichado no meu ouvido: "Continue escrevendo, Mari, e quiçá um dia as pessoas se emocionem tanto quanto sua mãe."

Sei que escrever é um negócio de gente grande e eu estou só engatinhando nisso. Mas o fato é que eu sinto que nasci pra fazer isso, mesmo com todo o meu amadorismo. Sei que não tenho o talento dos grandes escritores, que só com uma frase bem colocada me fazem pensar sobre a vida. Não, não tenho. Tampouco tenho minha mãe como única avaliadora (embora ela leia meus textos e me diga de quais gostou mais).

Mas a tentativa de emocionar alguém é tão doce, tão recompensadora que sempre vale a pena. E sempre que alguém me fala que gostou de algo que eu escrevi, que lembrou da infância, ou que riu um bocado e se identificou com a situação, eu me vejo diante de minha mãe com os olhos cheios de lágrima e uma felicidade transbordante no peito por ter feito algo de bom pra alguém.

E é só por isso que eu escrevo e persisto. Pra me surpreender com o que posso causar nos outros e com o que eles podem causar em mim.