Sentada na praia eu observo as ondas virem e irem naquela cadência costumeira. Não sei se o som do mar ajuda, mas o fato é que pra mim as ondas representam uma música cheia de acordes que vem e voltam. É uma música gostosa de ouvir. Calma. Tranquila. Paciente.
Observo a parte mais escura do mar. Lá parece mais calmo, sem ondas, mas tenho a impressão de tormenta. Não sei se por causa dos filmes, ou porque o mar aqui perto é mais claro, mas no fundo eu tenho a impressão de naufrágio. E deve ser mesmo. Nunca passei da linha da cintura. Mas fico aqui observando o mar, ao longe, na esperança de ver a própria Iemanjá surgir em alto-mar.
Não, não sou "devota" de Iemanjá. Só joguei flor uma vez, mas simpatizo com essa figura feminina das águas. Não gosto quando zombam dela. Tampouco entendo porque jogam na água coisas de tão baixa qualidade. Melhor que joguem coisas sem preço, tipo as flores: a serventia deve ser maior do que o esmalte seco colorido. Gosto dela. Acho que ela deve simpatizar comigo também, se ela existir mesmo. Pelo sim pelo não, não vou perturbá-la no fundo. Deixa ela lá e eu aqui na areia.
O melhor da praia é que é um dos únicos lugares onde constância e acaso gostam de se juntar. A certeza do mar para a areia é a mesma certeza da areia para o mar. Vão se encontrar sempre, enquanto houver praia. Ao mesmo tempo algumas coisas são tão incertas, apesar de insertas naquele ambiente... Eu, por exemplo. Provavelmente, nem a areia nem o mar esperavam encontrar uma visitante tão súbita (tempão que não vou à praia), mas eu aconteci. E a praia aconteceu pra mim num dia de terça-feira.
Sentada ali o tempo passa. Eu observo tudo. Alguns homens jogam futebol por perto, gritando a posse da bola. Outros passam vendendo coisas. Me oferecem picolé, óculos escuros, protetor solar, acarajé. Tudo. Eu recuso tudo também: minha ideia era ir à praia só comigo mesma e não carregar mais nada. Nem preocupação nem planos.
Ao longe uma figura diferente. Um tanto ridícula, para nossos padrões. Repenso essa frase. Ela é só diferente de todos nós. Fico imaginando quantos graus fazem embaixo do vestido cheio de babados e cores. Uns quarenta graus, no mínimo. É uma cigana.
- Posso ler sua mão?
Eu rio. Digo que não com um sorriso tímido. Não acredito nessas coisas.Tem gente que tem medo. Eu não, só tenho descrença. Se ela pudesse ler as mãos e saber de tudo, com certeza já teriam inventado um programa de televisão pra ela. O anonimato era a prova da mentira. Ou não. Quem sabe ela só não foi descoberta e neste caso ela mesma saberia, já que teria lido a própria mão desde pequena, ao aprender o ofício.
- Você já leu a sua? - pergunto.
Ela não respondeu. Deu um sorriso de deboche. Na certa pensava o quanto eu tinha sido insolente e precipitada. Mas não. Era só uma risada de velha zombeteira.
- Quando é com a gente a coisa muda de figura.
Ofereço minha mão.
- Você tem problema em saber de coisa ruim? - desafia ela.
- Não. Meu único problema é com coisa boa demais. Sou ansiosa.
- Hum.. Aqui diz que sua vida vai ser curta.
- Curta quanto?
- Você vai morrer do coração, fia.
Começamos bem, penso eu. E rio.
- E não diz quando?
- Não. Isso só o tempo.
Dou uns trocados. Digo que já está bom, não precisa ler mais nada não. Ela se afasta e eu continuo na rotina das ondas. O mar continua igual. A areia, um tanto mais quente. E eu continuo confortável comigo ali quietinha. Um siri aparece. Andar meio ridículo. Ridículo não, diferente. Penso na cigana. Lembro do que ela disse.
Não tenho medo de morrer. Aliás tenho, mas de morte matada: tiro, facada ou asfixia por estrangulamento. Morrer do coração mesmo eu já morri algumas vezes. Umas vezes de alegria, outras de susto. Um punhado de desilusões incrustadas nos átrios e ventrículos. Tô quase acostumada. Coração não aguenta muito essas coisas não. Nem o meu, que é novo.
Também se eu morresse ali, naquela hora, tanto faz. Quem sabe minha alma ia passear pelos terrenos de Iemanjá e pedir emprestado um esmalte. Gostei dessa ideia. Ri. Mas falando sério, se for pra escolher uma morte, que seja a do coração. Coração tem uma cadência de onda do mar. Faz sentido. Decidi que vou morrer do coração mesmo. É mais coerente com a vida que eu levo. Só não sei quando: isso a cigana não me contou.
Texto lindo Mari, eu ainda quero muito ter uns 10% dessa sensibilidade que vc tem. :)
ResponderExcluirParabéns