terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Escrever - alma de barriga cheia.

Respiro profundamente. Depois, sento-me diante do computador, observando a tela brilhante onde um papel branco virtual me observa. Às vezes tudo isso acontece na minha cama: eu com um caderno velho no colo e uma caneta de escrita macia na mão.

Na cabeça, lampejos de pensamento. Esboços de ideias. O menino que vi correndo, a mulher que ria de si mesma, o homem suado do trabalho semi-escravo ou, quem sabe, a velha que observa da janela de uma apartamento o mundo lá embaixo. O que não vi, o que queria ter visto, as risadas, as conversas transeuntes, as melancolias surdas de tão baixas.

Mas tudo isso, na minha mente, são só fantasmas esvoaçantes. Pequenas luzes que vagam. Nada cria forma e na cabeça só o "zumzumzum" dos meus pensamentos arredios. Nada é pronto. Nada é acabado.

Até que magicamente, quase que seguindo a distância mínima entre o papel e a caneta, ou entre o dedo e o teclado, me vem o assunto, assomando das profundezas do meu existir. Vem aquele pedaço de mim que escrevo numa tentativa desesperada de não ser esquecida e virar um objeto embaçado nas mentes alheias.

Escrevo um pouco do meu silêncio, da minha voz, um pouco das minhas angústias, da minha vida. E mesmo quando retrato outra pessoa, às vezes é de mim mesma que falo. Escrevo amores, escrevo o sabor de caju e meu riso, ah, esse é pura sinestesia.

Escrever me aproxima de Deus, dos anjos e santos, do místico. Me aproxima da luz e da liberdade que não existe no corpo físico. Escrever me transporta, me conduz e me satisfaz, como se minha alma pudesse estar de barriga cheia.

Quem dera eu pudesse escrever a felicidade. Mas ela não se escreve, não se define, é pra sempre a massa alegre e multicolorida que aqui passeia. A felicidade não pode ser escrita pois ela existe no ato de procurá-la. Não se ata. Não se amarra. A felicidade é solta como um nó mal feito. Mas no escrever a tenho.

Uma vez um menino disse: "Sabia que você vai ser escritora?". Fosse outra época, eu acreditaria só no amor e não no talento. Hoje, depois de tudo, só sei da vocação: o amor, malandro que é, pode virar melancolia escrita num papel molhado de lágrima. Mas quem sabe? Talento e amor são frutos da sorte. Talvez...

Ser escritora me traz esse sopro de vida eterna, essa delícias, esses prazeres quase insustentáveis, invejáveis. Um escritor não escreve palavras, letras, nem frases completas. O escritor escreve a si mesmo. Um escritor escreve sonhos e nisso não vejo profissão mais perfeita.

Agora, findo o texto, finda a ideia, depois que escrevi, retiro-me. As mãos deixam o portal e os olhos ficam opacos pela falta da luz que vinha da tela. Acabou. Escrevi mais uma história, mas tudo que fiz foi escrever sobre mim. Respiro fundo novamente. É uma despedida sem dor. Na cabeça tudo gira em pensamento e continuidade, no peito a chama permanece luz e na barriga da alma, a sensação da mais pura saciedade.

Escrevo.

Leiam-me.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Sobre avós.

"Vovó, por que não tem dentes?
Por que anda rezando só.
E treme, como os doentes
Quando têm febre, vovó?

(...)
Meu neto, que és meu encanto,
Tu acabas de nascer...
E eu, tenho vivido tanto
Que estou farta de viver!"


Minha avó costumava recitar estes versos de Olavo Bilac quando eu era pequena. Apesar de achar graça da primeira estrofe, eu sempre senti uma pequena tristeza com a segunda parte. Mas minha avó ria e ria e me mostrava que não era sério aquilo de "estar farta de viver". E aí ríamos nós duas juntas. E qualquer fiapo de tristeza se dissipava naqueles risos.

Engraçado...as avós tem uma doçura que ninguém consegue ter - acho que por isso muitas delas são diabéticas. São tão doces e tão especiais que ninguém consegue se zangar com avó. Minha avó uma vez me mandou calar a boca. Fiquei com raiva dela por 10 minutos. Depois ela me apareceu com uma pipoca tão doce quanto ela e eu parei de ficar zangada.

Pensando sobre as avós, descobri porque a maioria delas não enxerga bem. A razão é bem simples: elas não precisam de olhos pra enxergar o que se passa em nossas almas. Elas conseguem ver e talvez o mais especial é que elas falam justamente o que a gente precisa ouvir como se não fosse direcionado a nós, como se elas conseguissem nos poupar da vergonha que às vezes sentimos de nós mesmos.

E como são contraditórias essas avós! Elas aparecem com essas marcas na pele envelhecida, com esse andar cansado de quem já viveu de tudo e ao mesmo tempo nos brindam com uma ingenuidade quase infantil. E parecem crianças em lojas de brinquedo. E parecem adultos esperançosos no futuro.

Avós tem o dom de contar e cantar casos repetidos e histórias que já ouvimos mil vezes. Avós tem o dom de dormir muito tarde, acordar muito cedo, cochilar durante o dia todo e mentir quando são pegas dormindo, como se estivessem fazendo algo errado. Avós tem sempre balinhas de mel na bolsa, junto com um saco plástico que ninguém sabe pra quê serve.

Mas avós também tem o maior de todos os dons, o melhor antídoto para qualquer tristeza (de coração partido a morte de cachorro), o mais poderoso de todos os gestos de carinho: o dom do cafuné. Cafuné de vó é o mais perto do paraíso a que se pode chegar em vida. Avó tem mão pesada e lenta, e vai falando devagar com uma vozinha um pouco rouca, embalando o mais tranquilo de todos os sonos.

Avós demandam paciência: elas nos seguem com passos lentos, são inseguras e frágeis. Seus ossos não nos aguentam mais nos braços - e nosso peso também não ajuda. As mãos agora tremem, fazendo quase uma sinfonia com o pires e a colherzinha à hora do café. E a gente sente essa fragilidade quase como uma despedida, mas só até nos depararmos com o que de mais firme elas possuem: este amor açucarado.

E de tão doces que são, suas existências parecem finos flocos de algodão de circo que vão sumindo no céu da boca. E uma dia, tal qual o algodão que se desfaz ao menor toque, elas também desaparecem, deixando uma saudade azeda, outras vezes amarga, mas sempre a mesma saudade do melhor cafuné e das histórias que sabemos de cor.

Dizem que a gente só aprende a ser filha quando se torna mãe e que só aprende a ser mãe quando se torna avó. Pode ser. Se assim for, minha avó é, além de avó, a melhor mãe. Mas avó é mais que mãe. "Avó é mãe com açúcar", li outro dia numa camiseta, e isto, pra mim, significa que são puro amor.






quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Histórias de amor inacabadas.


É sempre a mesma expectativa,
A mesma história frustrada.
Que sabe-se-o-quê da vida
Fez com ficasse apagada.
Fez esmorecer.
Fez de todo o amor certo
Espectro do que podia ser.
E basta uma leve fagulha,
Um leve sopro de reencontro,
Que todo o amor paralisado,
Recomeça do mesmo ponto.
Aí vem uma tal de "hora certa",
Algum certo impedimento,
Aquele "não era pra ser",
Aquele "não é o momento",
Aí vem o raciocínio,
Vem o fio do pensamento,
Homem buscando razão
Naquilo que por natureza
Carece de explicação.
Então parece terminar.
A gente se desespera, se descabela.
Promete nunca mais voltar.
A gente se exaspera,
Diz que não espera,
Jura pra si não amar.
Até que se conforma.
O coração sossega.
E a gente, então, recomeça.
Foi melhor assim?
Como saber?
O pior não aconteceu nem deixamos acontecer.
O que vivemos foi um amor inacabado.
Essa constância interrompida.
Este sabe-se-o-quê da vida
Que transforma cor em desbotado.
Mas, penso eu com meus botões,
Em minha experiência contida,
Histórias de amor assim são melhores que as resolvidas:
As resolvidas, quando terminam, findam.
As inacabadas jamais acabam,
Só cochilam.






sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A imortalidade num pé de manga.



Pra quem não sabe, pé de manga é um dos maiores desafios de uma criança. É o nível mais elevado na escala evolutiva dos meninos de oito anos que sobem em árvores, logo acima da árvore da goiabeira. É mais alto, dá mais medo, mas os galhos são mais grossos e ásperos, dão mais sustentação.

Uma das maiores frustrações da minha vida era a falta de um pé de manga no meu quintal. Mas isso foi solucionado, pois quis Deus - e odiou minha mãe - que no quintal da vizinha tivesse um pé de manga bem alto, desses que provocam a imediata vontade de escalar até o mais alto galho.

Na minha época subir no galho mais alto do pé de manga era a maior glória que uma criança podia ter e também o maior desafio. Era a receita completa da felicidade: uma dose de aventura e de vitória, misturada com uma pitada de segredo - este ingrediente odiado pelas mães temerosas de fraturas expostas.


Mas valia a pena: cada galho, cada metro, cada lugar escondido e jamais alcançado representava a mais deliciosa das conquistas. Talvez em nossas ilusões da infância, o pé de manga era um ser forte e extremamente inflexível que ousávamos desafiar e que tantas vezes vencemos, cada um a seu modo.

Lembro que no alto ficavam as melhores mangas. Aquelas rosadas, grandes, mas não tão maduras. Estavam no ponto certo, "de vez", como chamávamos. E aí o segundo maior risco: comer manga com sal. Quantas vezes experimentei a subversão ao levar sal e comer a manga de maneira tão exótica e perigosa! - a combinação funesta de manga com cloreto de sódio, em nossas imaginações, só se comparava ao que hoje corresponde ao arsênico.


Desta maneira saboreávamos a manga junto com um pouco da imortalidade digna de grandes heróis. Aliás, chego à conclusão de que os meninos de oito anos são os seres mais corajosos que existem: ninguém mais enfrenta o medo de ossos quebrados, o medo da morte por envenenamento e o medo de uma mãe furiosa ao mesmo tempo.

Hoje eu mesma crio meus pés de manga e eu mesma tenho medo de escalá-los...Os galhos são outros, é verdade: carreira, relacionamento, amizades, família; mas eu não deveria ter tanto medo de me desequilibrar. Nem sal eu levo mais. Piso cada galho de uma maneira trôpega e ridícula, como Sinha Vitória andando de salto alto, como um equilibrista bêbado numa corda bamba.


Não sei, acho que falta em mim um pouco da coragem dos meninos de oito anos que sobem em árvores. Eu queria voltar a ser um deles. Teria o reconhecimento e respeito dos demais meninos. Chegaria em casa com um sorriso orgulhoso e triunfante e conseguiria esconder da minha mãe meus êxitos mais perigosos para então repeti-los cem, duzentas vezes. Experimentaria a felicidade infantil e perene. Seria imortal.