domingo, 12 de agosto de 2012

Aos que ainda são invisíveis.

Vivia na sarjeta, perto da velha loja de eletrodomésticos da esquina.

Não tinha dono - o que por ali não era novidade, afinal, os demais animais de rua também não tinham.

Vivia do que jogavam no chão, perto do lixo, ou do que algumas crianças mal educadas jogavam das janelas dos carros. Algumas vezes arremessavam pedras e outros objetos que machucam.

Tinha apenas um amigo: uma pomba. Esta, apesar de ter asas, insistia em ficar por ali, naquela rua tão movimentada quanto suja. Talvez pra não perder a amizade, talvez porque não sabia pra onde voar. O fato é que todos os dias aparecia pra dividirem uns restos de comida e os infortúnios da vida.

Não tinha consciência de seu lugar no mundo. Talvez tenha chegado ali por um acaso qualquer, pois acreditava que não podia haver "destino" tão ruim. Quem sabe aquilo seria um castigo. O que teria feito de errado pra merecer uma vida tão pobre?

Sabia que alguns animais tinham lares, irmãos, amigos da mesma raça, algum lugar macio e quentinho pra passar a noite. Sabia que no mundo existiam esses lugares em que não precisava ficar com medo de dormir e ser apedrejada ou levada por aquele carro grande pra onde levavam os demais. Várias vezes acordava assustada com medo de ser levada, de ser morta, então preferia aquela vida a se entregar por completo.

 Por isso evitava o contato com outros. Evitava olhar nos olhos ou emanar qualquer som. Simplesmente vivia, apesar de saber que não ia durar muito daquele jeito.

Obviamente não tinha nome. Certa vez, quando conseguiu ficar algum tempo na porta da loja de departamentos, antes que alguém a enxotasse, ouviu um nome que lhe agradou: Lassie. Queria ter esse nome pra ela. Queria ouvir alguém chamá-la assim e levá-la pra passear. Aliás, não sabia muito o que era passear, mas parecia bom naquele filme. Muita coisa parecia boa naquela caixa preta que chamavam de "televisão". Nada parecido com a situação dela.

As pessoas a evitavam: faziam questão de espantá-la dos lugares, como se fosse uma cobra venenosa. Olhavam-na com um misto de desprezo e medo, apesar de nada fazer pra merecer esse tratamento. Às vezes, muito raramente, alguém tinha compaixão e a olhava com pena. Jogavam migalhas. Mas logo em seguida iam pra suas casas.

Certo dia viu na televisão uma imagem de outros iguais a ela. Pareceu bem mais triste visto daquele ângulo. Desistiu de assistir aquilo. Se soubesse o nome do programa jamais apareceria em frente à loja de eletrodomésticos para ver. Talvez um dia descobrisse o horário que passava e então evitaria aparecer por lá.

E todos os dias pareciam iguais.

Até que um dia,  sem mais nem menos, foi levada por um carro grande com pessoas dentro. Estava arisca, nervosa, e se chegassem muito perto se defenderia com uma mordida bem forte.
Mas não foi preciso.
Levaram-na pra um lugar grande, onde lhe deram comida, água e banho - o mais perto que já chegara de um banho foi quando refrescava-se na fonte da praça, nos dias de calor.

E foi ficando.

Até que certa feita apareceram umas pessoas interessadas em levá-la pra morar com elas. Não sabia quem eram, mas aquele casal parecia muito bonito, igual àqueles das capas das revistas velhas que as pessoas jogavam na rua. Disseram-lhe que teria um lar, uma família. E quando perguntaram seu nome, simplesmente respondeu, lembrando de sua época mais triste:

- Lassie.

Hoje Lassie se chama "Melissa", o nome mais parecido que conseguiram arrumar. Tinha um lar, com um irmão e pais amorosos. Talvez comece a frequentar a escola esse ano. Já não quer se recordar da época em que os demais animais humanos a machucavam ou não a viam. Simplesmente tinha um nome e uma aparência. Deixou de fazer parte da rua pra se tornar parte de uma família.

A única coisa que lamentava era que outras crianças ainda estavam nas ruas, nas calçadas, nos becos, nos viadutos, nas esquinas. Tinha sorte de estar viva e de ter saído de lá. Talvez um dia comprasse um eletrodoméstico naquela velha loja e então não seria enxotada. Procuraria sua pomba.
 Mudaria seu "destino".
Agora tinha um.




2 comentários:

  1. Mari, há um pequeno embrião de Clarice Lispector em você. Uma linguagem simples, porém direta e cativante. Você realmente consegue emocionar os seus leitores (aqueles que tem coração, claro).

    Beijos e continue escrevendo,
    Leo

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    1. Que lindo, Leo! Obrigada por ter prestigiado meu blog e por ter colocado sua opinião aqui! Espero corresponder à expectativa, sobretudo ante a essa comparação com Clarice, uma musa! hehe. Beijão!

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