Não costumo escrever muito sobre o Direito. Sobre temas controversos e sérios na jurisprudência. Sobre inconstitucionalidades e atecnias dos Códigos. Digamos que não fazem parte deste meu blog. Não cabem. Além disso, utilizo o princípio do "kompetenz - kompetenz", segundo o qual o juiz tem, no mínimo, competência pra avaliar sua própria competência para julgar um caso. Reconheço minha incompetência pra tratar desses temas jurídicos, e aqui falo em incompetência mesmo, no sentido usual, que os leigos conhecem como falta de aptidão. Não é uma das minhas habilidades. Paciência.
Prefiro trabalhar com uma narrativa um tanto mais sensível sobre a forma com que eu enxergo este ser complexo que é objeto de 5 largos anos de Faculdade (reparem que não disse aqui "5 longos anos de estudo", pois sou uma pessoa sincera).
Aí vai.
Se nesses 5 anos eu tivesse que escolher uma situação, apenas uma, que tenha de fato me marcado a ponto de lembrar sempre, teria sido a que eu vou contar agora. Tomei como exemplo a não seguir não só como profissional mas principalmente como pessoa.
Há alguns meses eu precisava assistir audiências em varas criminais pra ser aprovada numa disciplina prática. Dei meu jeito, arrumei tempo e fui assistindo às audiências que precisava. Faltavam duas audiências na Justiça Estadual e então me dirigi ao Fórum Criminal que fica em frente à Justiça Federal, ali em Sussuarana.
Achei uma Vara em que iam acontecer duas audiências, uma após a outra. "Maravilha", pensei, ia ficar lá sentadinha e pegar minhas duas certidões e pronto. Nada de perder tempo procurando outra audiência.
Entrei na sala de audiências e me deparei com a Juíza, que foi bastante solícita e disse que eu poderia assistir as audiências consecutivas, se quisesse. A defensora de um lado. E mais ninguém. Nesse momento eu juro que invoquei a máxima dos revoltados "Cadê o Ministério Público?". E a audiência começou assim. Sem o membro do MP.
A Ré: uma moça de 18 anos, que estava na DERCA - Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes Contra a Criança e o Adolescente- e se dirigia ao Fórum dentro de uma viatura. Presa há 5 meses. E a audiência de instrução ainda ia acontecer.
A moça chegou. Algemada. Passando pelos corredores do Fórum onde as pessoas se afastavam, como se portadora de doença altamente contagiosa. Atraía olhares, mas não queria vê-los: estava ocupada baixando a cabeça pela vergonha que sentia. Sentou-se ao meu lado. Cumprimentou-me, falando "Bom dia" e esboçando um sorriso bastante tímido, como se estivesse se desculpando por alguma coisa. Respondi ao cumprimento com um sorriso e um "bom dia".
De repente a Defensora Pública começou a passar mal. Pressão baixa. E agora como continuar a audiência, se ela não tinha condição de suportar a instrução processual? Sugeriu a juíza que fosse redesignada a audiência para outra data, mas aí teria que "soltar" a Ré, em virtude do lapso temporal que ia transcorrer até a nova audiência. A defensora concordou e, dirigindo-se à Ré, explicou o caso:
- Olhe, eu sou sua defensora, estou passando mal e a audiência vai ser remarcada. Como a data vai ser bem depois e voccê não pode ficar presa até lá, a juíza vai expedir o alvará de soltura e você vai ser solta, mas vai se comprometer a comparecer na próxima audiência.
A acusada não disse nada. Pra quê dizer alguma coisa quando aquelas lágrimas caíam tão sinceras do rosto? O quê dizer neste caso? "Obrigada"? "Prazer em conhecê-la" - já que estava conhecendo a defensora ali? Nada. Olhou pra baixo e eu acompanhei o olhar. Unhas dos dedos dos pés pintadas de roxo com detalhes de uma flor desenhada com capricho.
A defensora se foi.
A promotora chegou, acompanhada de sua estagiária. Ambas fazendo pareceres de outros processos na mesa daquela audiência. Conversaram amenidades com a juíza, coisas que eu nem prestei atenção.
Estava toda absorta naquela moça, presa há cinco meses pelo furto de uma bolsa. A família, também presente na sala, envergonhada. Mas ia apoiar a filha, a qual teria sua liberdade restituída, ainda que de maneira tardia.
Foi quando a juíza, cujo nome sinceramente não lembro, disse essas palavras:
-Olhe, você tá dando muito trabalho pra sua família viu? Não sei se vou lhe soltar mais não...Tô pensando ainda...
Assim. Como se isso fosse uma faculdade e não uma obrigação da juíza. Como se ela, a magistrada, a quem cumpre observar a lei e os ideais de justiça, estivesse se divertindo de maneira sádica, ao ver o desespero de alguém que chegara tão perto de um sonho e agora o via se esvair das mãos. Arrisco dizer que ainda vi um certo sorriso no canto esquerdo da boca que deveria pronunciar as palavras da lei em vez de deboche e terrorismo judicial.
Imediatamente pediu a Ré:
- Não, doutora, me solte por favor. Não aguento mais ficar lá. Quando chove molha tudo no lugar que eu durmo. É cheio de barata e ainda por cima só dão comida estragada pra gente comer.
A resposta da "lei" veio curta e fria:
-É nada, eu até estou achando você gordinha.
Eu simplesmente não acreditei naquilo. Me recusei a pensar que estivesse de fato acontecendo. Ninguém se pronunciou. Estava ali sem defesa. E o Ministério Público, a quem cumpre o papel de fiscal da lei, nada fez. Todos inertes. Menos a moça, que agora chorava.
Então a juíza resolveu assinar o alvará, provavelmente de consciência limpa por fazer seu dever de magistrada, embora no fundo ela devesse saber o absurdo de sua conduta. Desde a prisão. Desde a algema. Desde a ausência da defensora. Desde o início daquela tortura psicologica desnecessária travestida de justiça.
E quando eu achei que tinha acabado, com a assinatura do alvará de soltura, um servidor daquele gabinete veio à sala falar à Ré que sabia onde ela "costuma agir", que "sabia que ela andava naquela ladeira da Rua Tal, se prostituindo e satisfazendo os homens". E disse, em tom ameaçador, que sabia de tudo que ela fazia. Assim, sem mais nem menos.
E foi nesse exato momento que eu fiquei com os olhos cheios de lágrimas, por ver uma pessoa humilhada, atacada em sua dignidade, sem ter ninguém a quem recorrer, sem ter ninguém para lhe defender, pra dizer uma palavra sequer que fizesse cessar aquela agonia. A acusada era "Daniel na cova dos leões", historinha bíblica que eu lia nos tempos de criança. Ela chorava e quase que eu também. Ela por estar solta e eu por ter sido traída pela minha própria ideia do que era o Direito. E nada daquilo era.
Peguei minha certidão de comparecimento das mãos da juíza. Ela me perguntou, solícita, se eu não iria assistir a outra audiência, já que não tinha havido instrução.
-Não. O que eu vi nessa já foi suficiente, doutora.
E fui embora.
Certamente esta juíza passou por um concurso rigorosíssimo. Deve ter passado noites em claro estudando, memorizando artigos e decorando entedimento jurisprudencial. Treinou com provas passadas, deixou de sair, ensaiou discursos e respostas orais a perguntas tão complexas quanto absurdas.
Não sabe o que é dignidade. Liberdade. Apelando pra conceitos mais simples: compaixão, pena, dó.
Infelizmente o Direito tem dessas: um juiz pode ser treinado para saber o que é kompetenz - kompetenz, mas não para reconhecer sua própria incompetência em lidar com seres humanos.
P.S. Dias depois fui assistir a uma sessão do TRE - Tribunal Regional Eleitoral - cujo objeto, naturalmente, era um crime eleitoral cometido por um determinado prefeito, que desviou só uns R$ 900.000,00 dos cofres públicos. Mas era diferente lá. Cafezinho. Poltronas confortáveis pra assistir ao julgamento enquanto um competente advogado tomava a palavra. Algema era palavra proibida naquele ambiente.
Convidada por um amigo a tomar um café e fazer uma pausa, fui. Não sem antes pegar minha bolsa que estava na sala de sessões, claro. Nunca se sabe.
Muito bom o seu texto, mari. vc é uma pessoa iluminada!
ResponderExcluir"A humanidade é desumana". Fico radiante de felicidade por saber que ainda existe gente humana nesse mundo, você é um bom exemplo. :)
ResponderExcluirMuito interessante e bem narrada a história, no meio de tanta técnica às vezes passa despercebida as coisas mais simples como a compaixão com o próximo!
ResponderExcluirÉ chocante mesmo. E esperamos não sermos contaminados com o meio para não nos acostumarmos nunca com essas atitudes. A resposta para a juíza foi excelente. Essa postagem deveria fazer parte do relatório =D
ResponderExcluirmuito bom o texto, uma pena é pensar que de tão comum , se torne banal, e a muitos até eu mesmo não me surpreende e me sinto um tanto frio por achar isso "normal". Melhor é pensar
ResponderExcluirque ainda vai haver quem faça diferente, e haveremos de fazer diferente.
Parabéns pela narrativa e sobretudo pela sensibilidade, algo meio raro de se ver por aí.
ResponderExcluirQue lindo!!! Parabens pela narrativa plenamente realistica.
ResponderExcluirNossa, realmente surpresa! Nessas horas que é sempre bom saber que existem pessoas como você ainda no mundo! Muito bom texto, não te conheço mas tenho certeza que você será uma ótima profissional ;D
ResponderExcluirMuito obrigada, Bela!! Fico muito feliz de ler isso! =)
ExcluirFántástico texto! Essas sensibilidades precisam ganhar espaço jurídico. O que se passou nessa sessão, dentre outras violências, foi um pesado assédio moral, violência psicológica, desnecessária e perversa. Isso tem que ser combatido e responsabilizado. Basta de abusos.
ResponderExcluirAdorei!
ResponderExcluirLINDA,VOCÊ É LINDA!!!!!!!!
ResponderExcluirObrigada pelos elogios, pessoal! Embora essa situação tenha sido uma das mais tristes pelas quais passei, ainda fico feliz em saber que podemos fazer nossa parte e evitar esse tipo de injustiça. =)
ResponderExcluirSensacional o texto!
ResponderExcluirParabéns pelo texto! Fico feliz por saber que ainda existe pessoas que se importam com a sensibilidade! E esta sensibilidade deve ganhar mais espaço e ser incorporado pelos operadores do Direito,SIM,CADA VEZ MAIS, só assim poder-se à fazer valer a mais salutar JUSTIÇÇA!
ResponderExcluirMuito bom o que você escreveu! Que você continue levando o seu ideal à frente e não se deixe "corromper" pelo sistema. Precisamos de mais humanidade no Judiciário. Parabéns pela análise e sensibilidade!
ResponderExcluirLaborda, fiquei profundamente comovido com esse seu relato. Vamos lutar para que nossa geração (e as que virão depois da gente) exerçam sua função com mais dignidade e respeito pelo ser humano, com a consciência de que o direito é apenas um instrumento, e que o Direito (´D´) como um fim em si mesmo não é aquele que nos é ensinado na faculdade, mas aquele que se desvela no dia-a-dia de nossas vidas em sociedade.
ResponderExcluirObrigado por essa reflexão.
Rafa D´Ávila
Belo texto, apesar do triste relato. Parabéns pelo blog.
ResponderExcluirMari, se não me engano você é da UFBA, né? Excelente texto! Excelente reflexão. Infelizmente temos muitos juízes assim, insensíveis à realidade, apegados aos status de seus cargos e completamente alienados da realidade.
ResponderExcluirTodavia, não desanime. Há também os muito sensatos, para quem devemos olhar esperançosos de uma mudança.
Sou da UFBA sim, Nicolás. Parabéns pelos elogios quanto ao texto! Espero que algum dia eu redija mais um texto, só que dessa vez elogiando as posturas! Abraço!
ExcluirLivrai-me do vício humano de abusar do poder que lhe é dado, amém!
ResponderExcluirBem-vinda a ciência do Direito.
ResponderExcluirInfelizmente é o que eu tenho a dizer.
Sou formada em direito, advogada, pretendo ser uma juíza futuramente... mas o direito tem me decepcionado tanto.
Vivemos em um mundo corrupto, quem tem que cumprir a lei são as pessoas mais pobres, porque os ricos sempre tem um "jeitinho brasileiro".
Muito triste a história. Você teve essa decepção quando ainda estudante. Eu, só depois de formada. Fui como parte na audiência consumerista no Juizado Especial, em que o juiz ao invés de discutir o caso concreto, colocando em prática todos aqueles princípios consumeristas, inclusive o do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, ele se ateve apenas de quem era a responsabilidade, ou seja, do primeiro réu ou do segundo réu.
Espero que eu não seja corrompida. O que me estimula é a vontade apenas de fazer justiça, algo raro atualmente.
Mais triste do que tudo isso é assistir o filme Tropa de Elite 2, e sair com sorriso no rosto.
ResponderExcluirEu gostei muito da produção do filme, das cenas, dos efeitos, no entanto, ao me deparar com tanta sujeira, com tantas coisas ruins que imperam no Brasil, fiquei mais decepcionada ainda, já que eu via todo mundo saindo feliz do filme.
Tudo bem que assistimos todos os dias nos jornais notícias sobre corrupção, morte, acidentes de trânsito... a notícia passa tão rápida, que não conseguimos fazer uma reflexão, do tipo: "que país é esse?!". E a própria televisão inibe tal reflexão. Mas no cinema sentamos para viver o filme, nos transportar, e diante de tantas verdades sobre o Brasil, escancaradas, "saimos" achando a coisa melhor do mundo.
Só pra refletir mesmo!
Mariana, já te vi na faculdade algumas vezes. Seu texto, maravilhoso, me faz refletir não só sobre o tema em si, mas sobre como é bom saber que dentre as pessoas que a gente vê no dia a dia, seja na faculdade ou pela vida afora, existem algumas com tamanha sensibilidade. Parabéns!
ResponderExcluirSensacional!!
ResponderExcluirBelo texto, Mari. Sua sensibilidade e empatia é algo muito raro nos dias de hoje, ainda mais inserida nos duros caminhos da Bacharelado em Direito. O Estado, além de outras coisas, representa isso: a força desprorcinal sobre o indivíduo, a violência legitimada e uma pitada da frieza legalizada. Tem algo que precisamos sempre lembrar, formalamente (nem sempre) somos iguais, mas materialmente os abismos são absurdos e, tendentes a crescer.
ResponderExcluirAté!
Excelente, Mariana. Parabéns!
ResponderExcluirCARA MARI, LÁSTIMO EM TE DAR BOAS VINDAS AO MUNDO DO DIREITO REAL...
ResponderExcluirPosso te chamar de Mari?
ResponderExcluirBem, ameeei o seu blog. Li quase todos os textos, mas, como o que me trouxe aqui, decidi deixar meu comentário por aqui mesmo. Você escreve muito bem e conseguiu me prender por horas. Esqueci do tempo passar, e quando me dei conta, já era quase 3 horas da tarde. Já estou anciosíssima pra saber o que vem por aí, pois continuarei entrando sempre no seu blog. Beijos, Ana Paula
Muito obrigada, Ana!! Pode me chamar de "Mari" sim..Eu até prefiro!! Hehehe. Espero corresponder às expectativas!=) Um abraço!
ExcluirMari, muito bom o seu relato, só algumas ressalvas. Você falou que a Defensora passou mal, depois se referiu a sua ausência. Ela estava presente, mas passou mal, como qualquer ser humano. Porém, antes de ir, cumpriu o seu dever de garantir que o pedido de liberdade da "ré" fosse apreciado, e que sua audiência só ocorresse com a presença ativa de um defensor público, que irá elaborar sua defesa da melhor maneira possível, inclusive independente de sua inocência. tem um livro: "Redesenhando a execução penal", feito por vários defensores baianos, e "autos da barca do inferno", de daniel nicory, que narra outros casos semelhantes. Vale à pena conferir!
ResponderExcluirseu texto está excelente, nos faz refletir sobre a (in)justiça institucionalizada. Que seus colegas que agora ingressam na profissão tenham a mesma sensibilidade.
Abs
Mari, assim como tem bons motoristas e tem péssimos motoristas, em todas as profissões existe o mau profissional, e os estagiários vão seguindo as linhas de pensamentos dos magistrados, uns seguem os humanos, outros seguem os animais com carinha de gente. Eu torço para que você seja uma excelente magistrada do bem...ótimo texto, parabéns e deixo um convite a conhecer, se não já conhece, o www.recantodasletras.com.br pois seu talento é imensurável, abraço
ResponderExcluirMuito bom o texto , pena que nao posso falar o mesmo da realidade de grande parte dos magistrados . =/
ResponderExcluirParabéns! fiquei emocionada tb!
ResponderExcluirBom texto, boa narrativa, ótimas conclusões.
ResponderExcluirIncrível, parabéns!!
ResponderExcluirParabéns!!! Excelente percepção da realidade do nosso Poder Judiciário...Mas sem querer parecer petulante deixo a dica :):
ResponderExcluirQue este fato te impulsione a lutar para ocupar estes cargos tão almejados e que uma vez lá permaneça com essa mesma percepção. São os votos de um colega que luta pela mesma causa.
Um abraço! Sucesso!
Ótimo texto!
ResponderExcluirÓtima descoberta do que é o Direito -- ou o que não é, na sua visão. Sei que seria o certo para dizer em público nas academias de Direito -- como provavelmente também sabia a juíza "boca da lei" --, mas tenho que discordar de que isso não é Direito -- mesmo concordando que não deveria sê-lo. O Direito sempre foi assim, produto de quem profere a lei, mesmo que nós, jovens tecnicistas com um anseio de que Direito seja sinônimo de Justiça, achemos absurdo. Na verdade, nós que somos o organismo estranho, o "câncer" nesse organismo milenar no qual se configura o Direito. Cabe a nós fazer diferente, mesmo ao perceber que o corpo já constituído não nos quer ali. Continue se indignando diante às injustiças.