Ruy tinha o nome do seu maior ídolo. Mas não o talento. Se é certo que os nomes são colocados em homenagem aos grandes, também podemos dizer que quando os pequenos não fazem jus, tudo soa como uma ironia. Neste caso, fazia até graça.
Desde cedo quis fazer Direito. Dizia que não tinha pretensões de ser um Ruy Barbosa da vida, mas que gostava daquilo apenas "por amor ao debate" - expressão que utilizava em todas as suas peças, quando queria preencher mais linhas. Adorava aquele mundo de tribunais, togas, audiências, processos e papéis. Muitos papéis. E a importância que tudo aquilo lhe conferia: sentia-se o máximo ao passar com processos muito volumosos na rua. Parecia infinitamente inteligente.
Mas foi levando aquilo cada vez mais a sério. Já não conseguia mais realizar qualquer tarefa da vida cotidiana sem pensar nas possíveis soluções jurídicas para o caso. Antes de formar, por exemplo, alegara impedimento do pai para dirimir um conflito seu com o irmão. Usucapiu roupas que os amigos lhe emprestaram e diante da negativa da devolução, estes afastaram-se.
Certa feita, já depois de formado, foi a um restaurante fino. Clientes muito arrumados e um garçom rigorosamente vestido.
- Qual o seu pedido, senhor?
- Mediato ou imediato?
- Desculpe-me senhor. Não entendi.
- O pedido imediato é que você me sirva. O mediato é este magnífico medalhão de filé ao molho de cogumelos. Ao ponto.
Sempre acontecia este diálogo. E após, quando vinha o prato, reclamava a diferença entre este e a foto do cardápio. "Isto aqui já não é dolus bonus, meu amigo. Ultrapassa os limites da boa-fé do homem médio e ao violar minha vontade livre e consciente de adquirir o produto, posso dizer que é inválido o negócio jurídico." Mas ainda assim comia. E após comer dizia pra si mesmo "Precluiu."
Tentou alguns relacionamentos mas nunca dava certo. Diante de tanta chatice que emanava do seu ser, nenhuma das moças queria namorá-lo. Ao menor sinal de pedido de namoro, todas eram categóricas ao dizer que não. "Improcedência prima facie", pensava ele. Só recorreu de uma decisão, afinal, por ausência de fundamentação. Mas essas coisas do coração não precisam ter motivo mesmo. Basta a vontade, ou, neste caso, a falta dela. Não tinha, pois, interesse recursal. Então desistiu.
Até que achou Anita. Moça tímida e sozinha, que vivia num casarão da rua de baixo. Ao pedido de namoro respondeu que sim e aí viu nos olhos do Ruy aquela sensação de vitória num processo. Mas o romance durou pouco. Se brigavam por qualquer motivo, tinha de questionar os atos do Ruy no mesmo momento, por motivo de segurança jurídica. O que já tinha acontecido transitava em julgado e nunca mais poderia vir à tona.
Até que um dia passou a suspeitar da fidelidade do Ruy. Contratou um detetive particular. Descoberta a traição, e amparada "no mais robusto espeque probatório", como diria o próprio Ruy, foi tirar satisfação. O infeliz alegou desconstituição da prova, por ser ela ilícita, além do
in dubio pro reu.
Mas não foi a absolvição que veio pela mão da justiça, e sim um glorioso tapa que zuniu no ar e acertou em cheio a face do infiel. E assim terminaram.
Trabalhou em alguns poucos casos, até o dia em que, furioso por não poder fazer carga de um processo concluso, subiu no balcão de atendimento da Vara de Família da capital e, brandindo na mão um vade mecum Rideel verde musgo, desferia "golpes de justiça" no ar, contra mosquitos invisíveis, gritando a plenos pulmões que a Constituição lhe permitia o livre exercício de qualquer profissão. Escreventes, diretor de secretaria, estagiários, partes, advogados, e a própria juíza baixinha olharam espantados aquela atuação ridícula. Foi convidado a se retirar, ainda gritando. E nunca mais voltou ao fórum.
Este baque tinha sido grande demais para o Ruy, apaixonado que era por sua profissão. Estava envergonhado ao extremo e receoso não mais ser útil a ninguém, nem como advogado nem como pessoa. Adoeceu tanto que definhou. Ficou magro magro. Um dia morreu. Suicídio. Não sem antes deixar um extenso testamento com legatários e herdeiros específicos e todos os bens detalhadamente minudenciados. Ao final, o pedido de inscrição na lápide:
"Ruy da Silva, de cujus. Passado em julgado em xx/xx/xx."