domingo, 28 de outubro de 2012

Ruy de cujus.

Ruy tinha o nome do seu maior ídolo. Mas não o talento. Se é certo que os nomes são colocados em homenagem aos grandes, também podemos dizer que quando os pequenos não fazem jus, tudo soa como uma ironia. Neste caso, fazia até graça.

Desde cedo quis fazer Direito. Dizia que não tinha pretensões de ser um Ruy Barbosa da vida, mas que gostava daquilo apenas "por amor ao debate" - expressão que utilizava em todas as suas peças, quando queria preencher mais linhas. Adorava aquele mundo de tribunais, togas, audiências, processos e papéis. Muitos papéis. E a importância que tudo aquilo lhe conferia: sentia-se o máximo ao passar com processos muito volumosos na rua. Parecia infinitamente inteligente.

Mas foi levando aquilo cada vez mais a sério. Já não conseguia mais realizar qualquer tarefa da vida cotidiana sem pensar nas possíveis soluções jurídicas para o caso. Antes de formar, por exemplo, alegara impedimento do pai para dirimir um conflito seu com o irmão. Usucapiu roupas que os amigos lhe emprestaram e diante da negativa da devolução, estes afastaram-se.

Certa feita, já depois de formado, foi a um restaurante fino. Clientes muito arrumados e um garçom rigorosamente vestido.
- Qual o seu pedido, senhor?
- Mediato ou imediato?
- Desculpe-me senhor. Não entendi.
- O pedido imediato é que você me sirva. O mediato é este magnífico medalhão de filé ao molho de cogumelos. Ao ponto.

Sempre acontecia este diálogo. E após, quando vinha o prato, reclamava a diferença entre este e a foto do cardápio. "Isto aqui já não é dolus bonus, meu amigo. Ultrapassa os limites da boa-fé do homem médio e ao violar minha vontade livre e consciente de adquirir o produto, posso dizer que é inválido o negócio jurídico." Mas ainda assim comia. E após comer dizia pra si mesmo "Precluiu."

Tentou alguns relacionamentos mas nunca dava certo. Diante de tanta chatice que emanava do seu ser, nenhuma das moças queria namorá-lo. Ao menor sinal de pedido de namoro, todas eram categóricas ao dizer que não. "Improcedência prima facie", pensava ele. Só recorreu de uma decisão, afinal, por ausência de fundamentação. Mas essas coisas do coração não precisam ter motivo mesmo. Basta a vontade, ou, neste caso, a falta dela. Não tinha, pois, interesse recursal. Então desistiu.

Até que achou Anita. Moça tímida e sozinha, que vivia num casarão da rua de baixo. Ao pedido de namoro respondeu que sim e aí viu nos olhos do Ruy aquela sensação de vitória num processo. Mas o romance durou pouco. Se brigavam por qualquer motivo, tinha de questionar os atos do Ruy no mesmo momento, por motivo de segurança jurídica. O que já tinha acontecido transitava em julgado e nunca mais poderia vir à tona.

Até que um dia passou a suspeitar da fidelidade do Ruy. Contratou um detetive particular. Descoberta a traição, e amparada "no mais robusto espeque probatório", como diria o próprio Ruy, foi tirar satisfação. O infeliz alegou desconstituição da prova, por ser ela ilícita, além do in dubio pro reu.
Mas não foi a absolvição que veio pela mão da justiça, e sim um glorioso tapa que zuniu no ar e acertou em cheio a face do infiel. E assim terminaram.

Trabalhou em alguns poucos casos, até o dia em que, furioso por não poder fazer carga de um processo concluso, subiu no balcão de atendimento da Vara de Família da capital e, brandindo na mão um vade mecum Rideel verde musgo, desferia "golpes de justiça" no ar, contra mosquitos invisíveis, gritando a plenos pulmões que a Constituição lhe permitia o livre exercício de qualquer profissão. Escreventes, diretor de secretaria, estagiários, partes, advogados, e a própria juíza baixinha olharam espantados aquela atuação ridícula. Foi convidado a se retirar, ainda gritando. E nunca mais voltou ao fórum.

 Este baque tinha sido grande demais para o Ruy, apaixonado que era por sua profissão. Estava envergonhado ao extremo e receoso não mais ser útil a ninguém, nem como advogado nem como pessoa. Adoeceu tanto que definhou. Ficou magro magro. Um dia morreu. Suicídio. Não sem antes deixar um extenso testamento com legatários e herdeiros específicos e todos os bens detalhadamente minudenciados. Ao final, o pedido de inscrição na lápide:

"Ruy da Silva, de cujus. Passado em julgado em xx/xx/xx."
 


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Remédio para todas as dores.

Amor é remédio para todas as dores.
A dor de dente,
Quando vinha a mãe da gente
E carinho em gotas ministrava.
A dor de cabeça,
A febre quente,
Quando um pano úmido,
Em nossa fronte passava.
A dor na perna,
A dor da ferida aberta,
Que somente o sopro materno amenizava.

A gente cresce e as dores mudam.
Mas remédios de amor tudo curam.
A posologia não se deve esquecer.
Para estresse de contas que se acumulam,
Um só beijo de amor há de resolver.
Depois é só ir repetindo a dose.
E ainda que a dor sofra metamorfose,
Qualquer romance a faz perecer.

E para os que pensam que existe a tal dor de amor,
Digo, e aqui repito, que amar, em si, nunca dói.
É falta de amor que traz sofrimento.
É medo de amar que causa lamento.
Por ausência de afeto é que o coração corroi.

Porque amor é toda a profilaxia.
E muita dor não mais existiria.
Tão só as pessoas amassem sem medo.
A analgesia, amigos, é coração benfazejo.
É mão de mãe em meus cabelos,
Que todas as dores arrefecia.
E quantas vezes ela, sem saber,
Justamente por amortecer,
Amor tecia.




quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Do chuchu e outros fingimentos.

- Menina - disse a dona da casa, me trazendo uma travessa de porcelana - você vai adorar esse suflê de chuchu!

Tanta receita no mundo, tanta coisa mais simples e mais gostosa de se fazer e a mulher me vem com suflê de chuchu. Odeio chuchu. O chuchu pra mim é a personificação do paradoxo: ele tem um gosto horrível de nada. Detesto isso. Detesto coisas sem gosto no paladar e na vida. E agora o chuchu se impõe no meu garfo, sob os olhos  ansiosos de uma anfitriã muito atenta. Levo o garfo à boca. O suflê derrete, enchendo minhas papilas gustativas de nada. Puro nada.

- Huuummm... Muito bom! - exclamo eu, numa das maiores aventuras da dramaturgia.
- Ai, que bom que gostou! Fiquei na dúvida, mas chuchu é algo tão universal! Não tem como não gostar!
- Exatamente isso! - ri.

Passei no teste. Agora vinha a melhor parte: comer o restante do prato, jogar pedaço de suflê no carpete e esperar que o gato coma. Será que ele come? Se não comer eu finjo que caiu. Na pior das hipóteses eu derrubo o prato. E choro. Isso. Choro copiosamente por ter perdido meu delicioso suflê de chuchu.

Mas por que eu não disse que não gostava de chuchu? Seria mais simples. Mas não queria desapontar a matrona anfitriã. Ela havia se esforçado desde a compra do chuchu até o momento certo de retirar o suflê do forno, para que não murchasse. Melhor que eu a fizesse um tanto mais feliz à custa do sacrifício próprio. Altruísmo não é bem uma palavra que me define, mas neste caso não resisti ao fingimento.

Afinal de contas, o que é um pedaço de chuchu perto do que a gente finge todo dia?

A gente finge escutar as pessoas - sobretudo quando já pedimos para elas repetirem a frase por três vezes. Aí nos limitamos a dar uma risadinha e esperar que faça sentido.
A gente finge que está tudo bem para não preocupar os outros e isso só não serve para as mães: elas se sobrepõe a qualquer tentativa de dramatização.
A gente finge que não tava chorando e que foi só um cisco, mesmo que estejamos com o nariz vermelho escorrendo e os olhos inchados.
A gente finge não gostar e fica ansioso esperando uma ligação. E quando chega a gente não atende. E finge que não tá nem aí.
Tem quem consiga o mais difícil: fingir que gosta de alguém.
A gente finge alergias, doenças, dores de cabeça.
A gente finge achar graça em algumas coisas. E finge não ter achado graça em outras, ainda que o riso tenha sofrido um freio brusco na frente da boca.
Tem quem finja se importar com os outros.
Tem quem finja gostar de Paulo Coelho.
Eu finjo aturar pessoas chatas. E sou boa nisso.
Algumas pessoas fingem enxergar.
Outras fingem orgasmo.
Tem quem finja entender de vinho e quem finja entender de si.
Às vezes a gente finge acreditar.
A gente finge não saber e até prefere: menos problema, menos abalo.
Muita gente finge trabalhar. Ou estudar.
A maioria das pessoas começa a tentar fingir ser bom em alguma coisa.
Eu finjo que estou satisfeita para não assustar os outros com meu apetite.
Fingimos o interesse por coisas sérias. E fingimos, muitas vezes, nos preocupar com o mundo.
A gente finge estar confortável no colchão duro.
A gente inventa desculpa pra não sair, só porque não tem dinheiro pro cinema.
Tem gente que finge que ainda está dormindo.
Outros fingem ter acordado para muita coisa na vida, embora ainda sonhem.

E do chuchu ao orgasmo, do amor a Paulo Coelho, a gente continua fingindo. E acha que tudo será melhor se a gente não for honesto consigo mesmo: a anfitriã não ficará triste, o homem não se sentirá ruim de cama, a namorada não se sentirá desamparada e o interlocutor não nos achará ignorantes. Mas um dia cansaremos de mostrar essa imagem distorcida do que somos de verdade.

Pediremos às pessoas pra repetirem pela quarta vez e nos desculparemos por não ter prestado atenção. Vamos dizer que estávamos chorando sim e que estamos tristes. Admitiremos que estamos cansados de trabalhar e não teremos vergonha de detestar Paulo Coelho (porque os livros dele, pra mim, são tão insossos quanto chuchu). Diremos às pessoas que esperamos uma ligação delas e atenderemos no primeiro toque, tal a vontade de conversar.

Beberemos vinho sem ter de sentir as notas de cereja, azeitona e couro e apenas estaremos perto daqueles que gostamos. Se não houver orgamos, valeu a tentativa e podemos tentar novamente. Comeremos muito, até nos entupir de comida e ter de abrir o botão da calça. Falaremos às pessoas chatas que elas são mesmo chatas. Vamos rir de tudo que quisermos, porque não há vergonha em ver graça nas coisas. E não fingiremos mais. Acordaremos. Porque de tanto fingir tanta coisa, a gente quase que finge viver. E ísso é pior que chuchu.



P.S. Também detesto abóbora.
 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Destino.

Destino?
Desfaço.
Invento um risco.
Apago um laço.
Pois se não sou a dona do traço,
Não admito estar escrito.

Se posso dele tomar as rédeas,
Ele pra mim é cavalo.
Mas sou mais veloz, sou Pégaso.
Sou alado.
Sou duas asas num torso mágico.
Sou arisco.

Eu cavalgo liberto no espaço.
Já não sei o que é cabresto nem laço.
Meu caminho não é pré-definido.
Minhas rédeas são feitas de ouro
E mesmo quando cansado pouso,
Não me alcançará Destino.
Pois se tenta me colocar arreios
Revoltada, ponho um "A" no meio.
DesAtino.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Carro não é tudo. Mas é um bom começo.

Não é que o sentimento signifique menos que um veículo automotor. De forma alguma. O amor é mais que tudo e supera qualquer tipo de limitação locomotiva. Tampouco me considero interesseira: sou apenas uma mulher sensata e pobre, já acostumada com os dissabores do transporte público coletivo e, confesso eu, cansada.

Aqui jaz uma mulher honesta, mas cansada de ter que sair de casa de ônibus, sobretudo para encontrar alguém que ainda não estou amando. Perdoem-me os pedestres, mas é que antes de nascer o amor deve nascer o conforto de estar perto e nada pode ser mais desconfortável que um ônibus nesta capital soteropolitana. 

Embora alguns insistam em me atribuir a pecha de "Maria Gasolina" e outros apelidos do gênero, há uma pequena diferença entre eu e a Maria Gasolina. A Maria Gasolina escolhe o namorado em função do carro. O homem que tinha um UNO será trocado pelo que tem um FUSION, que será trocado pelo detentor de um CAMARO e assim sucessivamente. Pra mim a diferença entre esses carros é apenas de nome, até porque ninguém pode dizer que ultimamente esteja fácil assim a ponto de poder escolher entre os donos desses três veículos. Não tá fácil.

Mas nem sempre eu fui assim. Houve um tempo em que eu não me incomodava, justamente por não achar agradável que alguém exigisse de mim algo de material como critério de relacionamento, tipo um silicone ou um mega-hair. Seria o fim. Mas depois de uma situação traumática, o carro passou a exercer função essencial na minha vida amorosa e confesso que vi com muita simpatia e esperança a queda do IPI. Mas não funcionou, se querem saber. Carro é importante, mas não é tudo.

Os leitores agora devem estar se perguntando que trauma foi esse e eu explico, deixando claro, de antemão, que não foi um assalto. Foi um tanto mais constrangedor que isso.

Eu era bem mais nova e tinha acabado de conhecer um paquera. Gente boa, divertido e até bonitinho. Marcamos de sair para assistir a algum filme - no tempo em que o cinema representava pretexto e intenção. Ambos pedestres, fizemos o que qualquer casal sensato faria: combinamos o encontro já no shopping e assim evitaríamos o grande constrangimento de uma paquera tortuosa e cheia de solavancos no ônibus.

Em casa, antes de sair, já começava eu a me arrepender e aí iniciou-se o processo traumático por que passei: com quê roupa ir? Queria ir com um vestido, que sempre me deixa um tanto mais feminina e não precisa ser combinado com muita coisa. Mas pensei nos degraus do ônibus e no vento que este faz ao passar em alta velocidade (como sempre) nas vias públicas. Tinha de ir de calça. Já fiquei contrariada. Odeio combinações de última hora.

Saí de casa cedo. Perfumada. Maquiada. Confiante. Mas só até meu salto me fazer tropeçar nos buracos da calçada. Um calo começava a se anunciar na minha sandália. Tinha esquecido disso: salto alto e ônibus não é uma boa combinação. Praguejei. Mas ainda estava linda. Passou meu ônibus e entrei. Estava cheio. Não tinha nenhum lugar pra sentar e eu ali em pé toda arrumada, digna de uma festa. Segurei firme naquelas barras de metal e fechei os olhos pra o tempo passar rápido.

Qual não foi minha surpresa quando um homem enorme e suado ficou fungando atrás de mim! Fingi que não era comigo, fechei a cara e me empertiguei toda. O homem se encostava em mim a qualquer custo. Até que disse num sussurro: "Huuummmm...tá bonita!" Eu já estava prestes a gritar "Socorro! Um tarado!", quando percebi que surgira um lugar lá na frente. Sentei e esperei chegar ao shopping.

Cheguei e não me reconheci no espelho da C&A: cadê a maquiagem? Onde foi parar minha sombra, meu blush? Cadê meu cheiro? Aquele maldito tinha cheirado meu perfume todo! E o ônibus ficou com uma parte. Definitivamente, eu cheirava a catraca e poltrona suja. E nesse dia desenvolvi a teoria de que todo ônibus tem uma espécie de portal, através do qual as mulheres passam e deixam pra trás toda a beleza e graça com que entraram naquela barca do inferno. Eu era a cólera em pessoa.

Mas já estava ali e tinha um filme para ver. Encontrei o pretendente e passamos um longo tempo juntos. "Assistimos" ao filme. Tomamos sorvete (iguaria que podíamos pagar). Conversamos. Rimos. Passeamos. E eu já estava esquecida do início do dia. Só o calo no pé me lembrava o quanto eu tinha subestimado as calçadas de Salvador. Até que o tempo passou e tínhamos de ir embora.

Àquela altura a quem estaríamos enganando? Voltaríamos de ônibus para casa. Os dois. E pra quem não sabe, as saídas dos pedestres são sempre matinês: impossível voltar pra casa de ônibus sozinha às 22h. O máximo tolerável é 19h. E era a hora que eu via aproximar-se no meu relógio. Foi neste momento em que ele pegou em minhas mãos, olhou nos meus olhos e me disse, com orgulho de si mesmo, uma frase que marcou minha alma:
-Eu te deixo no ponto.

Fomos os dois. Eu envergonhada e ele triunfante- afinal de contas tinha sido um gentleman. Atravessamos a passarela de mãos dadas, em meio às bolsas e óculos escuros de camelô. Passamos pelo carrinho de cachorro-quente e pelo carrinho de churros. No ponto de ônibus o clima não era propício ao romance: ambulantes gritando pra lá e pra cá ("Olha o Mendoratto, um é R$ 0,30 e dois é R$ 0,50!!"), crianças chorando, pessoas gritando "PERAÊ, MOTÔ!", gente correndo e eu triste. A palavra é esta. Eu estava triste. E foi aí que ele me surpreendeu mais uma vez. Olhou pra mim com curiosidade e atenção e perguntou:
- E aí, vai pegar qual?
O pior foi que eu me vi respondendo.
- Vilas do Atlântico, e você?
- Vale dos Rios/Stiep R3.

Quase chorei nessa hora e ao mesmo tempo fiquei pensativa. E se o ônibus dele passasse primeiro? E se ele pegasse o ônibus e me deixasse esperando lá naquele ponto sozinha? E na hora que minhas profecias se realizaram e o ônibus dele passou olhei pra ele com uma cara tão feia que acho que meus pensamentos chegaram até a alma do pobre coitado. E ele ficou. Logo depois vinha chegando o meu.

Só quem pega ônibus com frequência sabe que ele é efêmero e complexo: se você vacilar, ele pára, a porta abre, fecha e você nem chegou perto. E se tem uma verdade é que ele não pára na sua frente. Ele pára lá atrás ou lá na frente. E o meu parou lá atrás.

Neste momento eu vivi um dos maiores constrangimentos de minha existência. Tinha que correr. Só uma mulher de salto alto e arrumada sabe o que é perder o glamour ao correr atrás de qualquer coisa. Sobretudo atrás de um ônibus. E eu tinha que correr. Aí corri. Ele me acompanhou. Paramos atrás da porta traseira e enquanto eu esperava minha vez de subir, nos despedimos com um beijo sob os olhares de pressa do cobrador.

Entrei no ônibus, passei da catraca, o ônibus "arrastou" e não me contive de tristeza ao dar aquele "tchauzinho" pela janela. Cansada. Suja. Humilhada. Com um calo no pé. E depois de tanto esforço, solteira. Mas não lamento. Eu sabia que não daria certo. Não me arrependo. Entre nós faltava um motor e quatro pneus, um punhado de engrenagens e uma caixa de marcha. E carro é mais que isso. Carro significa três coisas das quais não abro mão: conforto, segurança e privacidade. Não é tudo. Mas é um bom começo.

Que venha o IPI reduzido!

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Era eu.

Ele tinha um senso de humor invejável e olhos muito brilhantes. Algumas pessoas tem olhos que nunca vão brilhar daquele jeito, mas os dele faiscavam. E por isso mesmo eu pousava os meus ali, enquanto, em vão, tentava raciocinar. Era inteligente, agradável e tinha um ar de esperteza e de serenidade ao mesmo tempo, como se nunca hesitasse em fazer qualquer coisa. E era belo. Mas, como todos os que um dia me tiraram o fôlego, tinha um defeito imperdoável.

Ele era casado.

Casado. Bem casado. E tinha que ser. Não era privilégio meu a força daquele olhar que me via já nua, despojada de toda a sorte de fingimentos. Era casado. A aliança comprovava e me provava que jamais seria aceitável que eu o tivesse comigo. Não seria digno, diriam alguns. Não seria certo, diriam outros. Não seria justo com você, diria eu no espelho.

Mas dignidade não é bem o que eu queria dele. Nem amor. O que eu queria era qualquer coisa diferente de algo digno; qualquer coisa instável e sórdida, mas que me deixasse em paz com o mundo. O que eu queria era justamente o frio na barriga e o lábio tremendo, ambos cientes daquela atração deliciosa somente comparável à atração que me dá a altura daquele penhasco íngreme, me fazendo querer alçar vôo em queda livre.

E era assim que eu o queria. Como uma perdição. Como o primeiro e nefasto gole de uma deliciosa cicuta. E por isso não me preocupavam os pensamentos alheios. Não me abalava a falta de compromisso, a imprevisibilidade. Não me causava qualquer tipo de remorso pensar na mulher dona da aliança gêmea da dele. Nada. Nada iria me demover do que já me consumia inteira, porque era naqueles olhos sabedores de tudo que eu sabia de mim.

Com ele em qualquer lugar eu era muito mais eu do que jamais fora. Pra ele eu podia ser qualquer coisa: um joguete, uma diversão, um bom papo, um dia diferente na rotina matrimonial. Mas pra mim eu era bem mais que tudo isso. Ao me olhar no espelho depois de encontrá-lo minha expressão era triunfante e segura, ao contrário do que seria em geral. Nunca me senti tão bonita quanto depois de vê-lo. No espelho uma mulher linda me olhava a cada noite dessas, sem me condenar ou me repreender, e a ela eu retribuía com um sorriso vitorioso.

Mas um dia, para a felicidade dos que me condenavam, ele se foi. Sua ida foi tão imprevisível quanto cada uma de suas voltas. E eu sabia que seria assim, embora me lamentasse.  Não senti o término de um relacionamento, pois que nunca o tive. Tampouco senti o peso de estar só. Ele se foi como as coisas boas que um dia passam.

Não fiquei triste.
Não chorei.

Apenas soube que não mais voltaria a pousar meus olhos nos dele e que talvez devesse me acostumar com mãos vacilantes, tão diferentes daquelas sempre seguras e obstinadas. É uma pena voltar a raciocinar. Pensando bem, não era amor não. Era muito mais. Era eu. E isto é que me faz falta às vezes.

Carta de um astronauta.




"Estávamos em uma expedição sigilosa em busca de desconhecidos. Desenvolvemos um projeto de mapeamento e reconhecimento de galáxias em que houvesse maior probabilidade de encontrarmos vida. Nosso objetivo, aliás, não era apenas encontrar vida -  esta já comprovada pela existência de seres microscópicos em um planeta vizinho ao nosso. Procurávamos vida inteligente e com ela a demonstração de que não estávamos sós. Mais que isso: queríamos a chance de aprender (e quem sabe ensinar) com nossos novos amigos.

Numa das galáxias mais próximas encontramos um planeta em condições semelhantes ao nosso. Ficamos completamente ansiosos quando verificamos que as condições climáticas e atmosféricas também se assemelhavam às nossas. Estávamos a um passo de finalizar nossa busca. Mal pude me conter! Manobramos a nave para que ficasse próxima, mas a uma distância segura o suficiente: não sabíamos o que esperar dos nossos vizinhos alienígenas.

Num susto tremendo, um satélite artificial passou perto da nave. Era a nossa prova! Somente um ser intelectualmente desenvolvido poderia criar um satélite daqueles. Tentamos uma conexão com o satélite. Não conseguimos. No entanto, verificamos que tínhamos acesso aos dados. Vídeos, fotografias, coordenadas, em suma, tínhamos o mapa do planeta e a possibilidade de ver, mesmo à distância, tudo o que acontecia ali.

E o que vimos nos deixou completamente embasbacados.

Os seres desenvolvidos não tinham um aspecto tão repugnante quanto pensávamos. Eram até simpáticos, vez que não ostentavam aqueles olhos desproporcionais e corpos esquálidos e altos. Ficamos felizes com a descoberta e até envergonhados: sempre achávamos que um alienígena teria aparência feia, mas estes não tinham. Eram diferentes, sem dúvida. Mas não causavam espanto.

O planeta era bonito. Pequeno, mas vasto ao mesmo tempo. Também padecia das mesmas intempéries que o nosso: vulcões, furacões, atividade sísmica. Mas era bonito. Abrigava algumas espécies, assim como no nosso. Mas ficamos surpresos mesmo com o nível de desenvolvimento do planeta : os alienígenas haviam feito construções semelhantes às nossas, embora utilizando uma tecnologia mais rudimentar.

Daríamos por encerradas as buscas. Voltaríamos ao nosso planeta com a sensação de missão cumprida. Nossos governantes se preparariam para o primeiro contato oficial com os alienígenas. A diplomacia interplanetária inauguraria uma teia de relações jamais vista entre civilizações de planetas diferentes. Aprenderíamos com eles a aperfeiçoar nossa ciência, bem como poderíamos, eventualmente, ensinar algo.

Então uma cena chamou-nos a atenção.

Observamos atentos a imagem de um artefato semelhante a uma bomba destruir uma das colônias de alienígenas. E, por incrível que pareça, o artefato foi enviado por outra colônia. Pensávamos se tratar de uma disputa por territórios ou recursos - já que parecem ser escassos por lá. Todavia, parecia não haver motivo para aquele massacre.

Em outra tela visualizamos uma região do planeta diferente das outras. Não tinha recursos, não tinha natureza. Parecia o vácuo. Tinha apenas um grande número de seres sobrevivendo em condições de extrema miséria. Eram párias naquela sociedade. E eram muitos. Em pouco tempo observando a tela, sentimos verdadeiro asco dos que tanto tinham e nada partilhavam com aqueles mendigos da vida.

Para alguns de nós ainda era um planeta promissor. Havia um grande potencial energético e riquezas sem fim. Era de uma beleza encantadora e ainda imaculada em muitos locais. Mas a espécie que o habitava era digna de pena e, talvez pela existência de tantas línguas e dialetos, não entendiam uns aos outros.

Onde procurávamos evolução, encontramos guerra. Onde procurávamos vida inteligente encontramos apenas vida. Ainda nos sentimos sós. Resta-nos observar por mais tempo. Quem sabe um dia os humanóides estejam prontos."


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Um recado de autores defuntos.

Reunidos do lado de lá da vida, ou do lado de cá da morte, como queiram os leitores, faziam considerações sobre os recentes acontecimentos que puderam observar de um mirante na abóbada celeste. Se é certo que o fim da vida também põe termo às obras, também é certo que a morte coroa os clássicos, imprimindo-lhes o caráter perene que não tem seus autores. Agora, mais mortos do que nunca e mais vivos do que sempre, podiam se regozijar do sucesso eterno e da longa vida fictícia que teriam a cada virar de uma página.

Mas nem sempre a morte traz uma consolação, e o que nossos célebres perceberam é que o mundo parece girar cada vez mais rápido, como se tudo caísse de repente num vórtice de informações. O tempo, ventríloquo dos homens, realiza manobras rápidas e quase imperceptíveis, furtando das pessoas seus mais preciosos momentos. Não há tempo, reclamam eles. E se não há tempo não há leitura, só há rotina.

E com isto se preocupavam nossos célebres autores. Clássicos mortos no corpo, mas vivos na memória e nas orelhas de seus livros. Conversavam sobre o futuro e desejavam o passado. Com a batida de um sino estridente começou a assembleia.

"Ao primeiro verme que roeu as frias carnes do meu cadáver dedico esta assembleia."

- Por que ele sempre tem que começar assim?
- Silêncio! Vamos ouvir!

-Caros confrades, autores defuntos. O desprazer deste discurso somente se assemelha ao desprazer de ver presa num frasco de vidro uma linda borboleta e depois observá-la morrer asfixiada. A borboleta é o que de mais nobre fizemos na vida, o que nos trouxe a este patamar de perene sobrevivência: nossos livros, outrora festejados como os 15 anos das moças, e que agora fazem parte de estantes cobertas do pó da ignorância. Se não podemos lançar mais clássicos às ruas e aos jornais, é somente por estarmos despidos da vida e não por vontade própria. Entretanto, certo é que as pessoas que antes nos liam, já parecem mais mortas que nós, embora muitas ainda não tenham passado pra o lado de cá. Certa feita, fui surpreendido por uma senhora mui educada, que me confessou ser uma leitora 'machadiana' quando em vida. Travamos um curto diálogo desses de esquina e ela me disse que por mais que tentasse seus netos nunca leram o que ela recomendava. Chamavam-na de caduca e coroca, mal sabendo eles que jamais sucumbirá às eras aquilo que tem o dom de ser perene: o conhecimento. Eis que agora preocupo-me, não com honrarias e ganhos derivados do labor com as letras, mas com o quê se preenche meu testamento aos homens, qual meu verdadeiro legado e em quê poderá ele ajudar o mundo.

- Mas agora ficou difícil, Machado. Começamos a competir com tecnologias cada vez mais avançadas. As pessoas ficam cada vez mais retidas no que é rápido, pois nunca há tempo. Gasta-se horas em frente a uma tela de computador, mas não há minutos para a leitura diária de uma anedota qualquer.

Caras de espanto preenchiam o ambiente sem paredes. Todos se entreolhavam com um quê de mistério e espanto. Clarice, que não conseguia se conter à menor curiosidade, quis saber mais.
- Computador?
- É como se fosse uma máquina de escrever, mas, para além da escrita e da leitura, permite um universo de outras utilidades.
- Aí temos nosso resgate, Caio. Se a máquina permite a leitura, permitirá que sobrevivamos ao tempo e às angústias da vida moderna.
- Não é bem assim, Clarice.
- Já não entendo.
- Sim, atalhou Drummond, plausível a dúvida de Clarice. Também não me dou por satisfeito com tamanha dissonância. Se o computador permite a leitura, por que então não nos permite?
- Porque livros são grandes demais e as pessoas querem algo rápido. Apesar disso, querem parecer entendidas em algo e em tudo ao mesmo tempo. Querem um suco concentrado de cada um de nós. Uma frase que os marque, sem que nada mais tenham de pensar sobre ela e seu nascimento em nossos intelectos.
- Só frases?
- Só. Citações.
- Como você sabe disso?
- Fiquei famoso assim.
- Já depois de morto?
- É. Como diria Cubas, sou eu um defunto autor. E pra te explicar como é isso, venha ver o que consegui esses dias.
- Uma fotografia minha com uma frase escrita?
- Sim, Clarice, veja.
- Mas por que me atribuem esta frase? Não é minha nem nunca seria. Essa frase não sou eu, Caio.
- Pois é...Costuma acontecer.

Clarice lança um olhar cheio de súplica e ira ao mesmo tempo para Caio, que disfarça e olha pra Machado. Este, resignado e triste, apenas balança a cabeça de um lado pro outro, lembrando dos tempos áureos em que seus contos e histórias vendiam a esperança de um Brasil mais inteligente e atento às letras. Não que seus textos ensinassem muita coisa - seria muita pretensão - mas pelo menos atiçavam o pensamento, como uma mula é chicoteada de leve para chegar no rumo certo.

De repente a ideia!

Assim como de seus intelectos brotaram personagens e histórias inesquecíveis que até hoje marcam a vida dos que se deram ao prazer (e não "ao trabalho") de ler, também em intelecto resolveram aparecer pra uma leitora assídua e escritora incipiente, que decerto não se negaria a transmitir um recado, ou melhor, alerta aos seus. A humilde moça sentiu-se tocada e escolhida, pronta para realizar o mister que mais parecia os Doze Trabalhos de Hércules, não em dificuldade, mas em importância. Utilizaria de toda a sapiência como a de Ulisses na Ilíada e teria a bravura do índio Peri, de Alencar. Deixar-se-ia levar por toda a prosa e poesia ao menor pedido de um desses deuses da literatura que, longe de pertencerem ao Olimpo, estão sempre ao alcance das mãos e dos olhos na prateleira mais próxima.

Ah, se todos soubessem a plenitude do que é a leitura! Veriam que é mais fácil aproximar-se do céu e dos clássicos que lá estão do que mendigar os frutos quase podres que o tempo deixou cair. Retirar dos célebres apenas uma citação é o mesmo que tocar com a mão suja a ponta minúscula e brilhante de um iceberg que flutua na imensidão oceânica da ignorância. E neste oceano, diferente do que diria Camões, navegar não só é preciso como necessário.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O Reino dos Sérios e a descoberta do riso.

Era uma vez um reino muito muito distante chamado Reino dos Sérios. Os habitantes deste reino não sabiam sorrir. Não se sabe ao certo se por falha mecânica na contração da musculatura da face ou se por falta de costume mesmo. Uns dizem que é porque ninguém jamais experimentou fazê-lo e assim as crianças não aprenderam com seus pais, que por sua vez também não aprenderam com os seus e assim sucessivamente.

O que se sabe é que não há piadas, nem risos pelos cantos. Os sérios se cumprimentam, conversam e não contam piadas. Jamais. Piadas são terminantemente proibidas pela lei do Reino, mas nem necessitava tanta proibição: uma vez que ninguém sabe rir as piadas perdem seu objeto e ficariam sempre vazias de sentido.

Uma vez, um dos sérios foi embora para um Reino vizinho e descobriu o sorriso. Ficou maravilhado com a perfeição do artefato. Não conseguiu reproduzir com perfeição o sorriso visto, mas tentou e viu que conseguia ensaiar ao menos um sorriso sem graça. Depois de pouco tempo já estava rindo. Por que não havia isso no Reino dos Sérios? Que mal fazia a libertação do riso?

Decidiu voltar ao Reino e contar a seus compatriotas sobre a existência do riso. Ainda não sabia fazer muito bem, mas levou embalado num papel de pão um riso de criança brincando. Os Sérios ficaram EMBASBACADOS! O que era aquilo? Por toda a cidade espalhou-se a notícia do riso. Até que o rei soube e mandou investigar.

A verdade é que o povo gostou tanto do riso que queria comprar. Sorrisos e gargalhadas passaram a ser contrabandeados. O preço variava: 5 o sorriso tímido, 8 o sorriso sincero, 20 a gargalhada rápida, 40 o sorriso apaixonado e 80 a crise de riso. Pessoas ficaram viciadas nos risos. Cada vez mais sérios iam para o reino vizinho pegar uma nova carga. A segurança do reino passou a prender e mandar enforcar sérios traficantes.

Só que o tráfico de risos aqueceu a economia. Os traficantes começaram a ganhar muito dinheiro com os risos e a comprar cada vez mais produtos do reino. As pessoas trabalhavam mais satisfeitas após uma sessão de riso. E o rei foi percebendo que os risos poderiam ser bem lucrativos.

Campanhas pela legalização do riso começaram a eclodir. A revolução para legalizar o riso tomou força. E o rei foi perdendo a popularidade, o que não era desejável. Estudos sobre os benefícios do riso para a Medicina apareceram. O riso ficou conhecido pela propriedade de causar emagrecimento e aumentar o tônus muscular do abdômen. Descobriu-se que o riso fazia bem pro coração. E aí já era. O rei só tinha a possibilidade de aceitar o riso.

Então surgiu uma saída brilhante. O rei decidiu que não deveria haver mais o tráfico do riso e então concedeu o direito à colheita do riso próprio. Cada um poderia rir o quanto pudesse, mas somente se o riso fosse seu. Estava proibida a compra de sorrisos alheios, independentemente do valor/qualidade do riso. Os sérios passaram a praticar o sorriso e alguns já conseguiam até rir deliberadamente, quase gargalhando.

Então não se vendia mais o riso engarrafado. Sorrisos sem graça ou tímidos, a mercadoria mais barata, sumiram e só havia lugar para risos e gargalhadas espontâneos e sinceros. Algumas pessoas continuavam a obter sorrisos alheios, mas tinham direito a isso: o Rei estabeleceu que o sorriso pertencia a quem o causasse.

Como ninguém queria ficar privado de riso, deixando apenas que outras pessoas os causassem, os sérios começaram a cultivar o riso de si mesmos. E cultivando o riso de si e para si mesmos viram que os efeitos eram semelhantes ao de possuir risos alheios.

Dizem que nunca  houve um reino mais feliz, mas como tudo na história um dia se acaba, o Reino dos Sérios teve sua derrocada com o apogeu da civilização "Polida". Estes ainda resistem aos sorrisos gratuitos. E embora o Reino tenha acabado, sua população só se multiplicou e em todos os lugares do mundo é possível vê-los sorrindo e causando sorrisos alheios.

E eles são felizes para sempre.