Não é que o sentimento signifique menos que um veículo automotor. De forma alguma. O amor é mais que tudo e supera qualquer tipo de limitação locomotiva. Tampouco me considero interesseira: sou apenas uma mulher sensata e pobre, já acostumada com os dissabores do transporte público coletivo e, confesso eu, cansada.
Aqui jaz uma mulher honesta, mas cansada de ter que sair de casa de ônibus, sobretudo para encontrar alguém que ainda não estou amando. Perdoem-me os pedestres, mas é que antes de nascer o amor deve nascer o conforto de estar perto e nada pode ser mais desconfortável que um ônibus nesta capital soteropolitana.
Embora alguns insistam em me atribuir a pecha de "Maria Gasolina" e outros apelidos do gênero, há uma pequena diferença entre eu e a Maria Gasolina. A Maria Gasolina escolhe o namorado em função do carro. O homem que tinha um UNO será trocado pelo que tem um FUSION, que será trocado pelo detentor de um CAMARO e assim sucessivamente. Pra mim a diferença entre esses carros é apenas de nome, até porque ninguém pode dizer que ultimamente esteja fácil assim a ponto de poder escolher entre os donos desses três veículos. Não tá fácil.
Mas nem sempre eu fui assim. Houve um tempo em que eu não me incomodava, justamente por não achar agradável que alguém exigisse de mim algo de material como critério de relacionamento, tipo um silicone ou um mega-hair. Seria o fim. Mas depois de uma situação traumática, o carro passou a exercer função essencial na minha vida amorosa e confesso que vi com muita simpatia e esperança a queda do IPI. Mas não funcionou, se querem saber. Carro é importante, mas não é tudo.
Os leitores agora devem estar se perguntando que trauma foi esse e eu explico, deixando claro, de antemão, que não foi um assalto. Foi um tanto mais constrangedor que isso.
Eu era bem mais nova e tinha acabado de conhecer um paquera. Gente boa, divertido e até bonitinho. Marcamos de sair para assistir a algum filme - no tempo em que o cinema representava pretexto e intenção. Ambos pedestres, fizemos o que qualquer casal sensato faria: combinamos o encontro já no shopping e assim evitaríamos o grande constrangimento de uma paquera tortuosa e cheia de solavancos no ônibus.
Em casa, antes de sair, já começava eu a me arrepender e aí iniciou-se o processo traumático por que passei: com quê roupa ir? Queria ir com um vestido, que sempre me deixa um tanto mais feminina e não precisa ser combinado com muita coisa. Mas pensei nos degraus do ônibus e no vento que este faz ao passar em alta velocidade (como sempre) nas vias públicas. Tinha de ir de calça. Já fiquei contrariada. Odeio combinações de última hora.
Saí de casa cedo. Perfumada. Maquiada. Confiante. Mas só até meu salto me fazer tropeçar nos buracos da calçada. Um calo começava a se anunciar na minha sandália. Tinha esquecido disso: salto alto e ônibus não é uma boa combinação. Praguejei. Mas ainda estava linda. Passou meu ônibus e entrei. Estava cheio. Não tinha nenhum lugar pra sentar e eu ali em pé toda arrumada, digna de uma festa. Segurei firme naquelas barras de metal e fechei os olhos pra o tempo passar rápido.
Qual não foi minha surpresa quando um homem enorme e suado ficou fungando atrás de mim! Fingi que não era comigo, fechei a cara e me empertiguei toda. O homem se encostava em mim a qualquer custo. Até que disse num sussurro: "Huuummmm...tá bonita!" Eu já estava prestes a gritar "Socorro! Um tarado!", quando percebi que surgira um lugar lá na frente. Sentei e esperei chegar ao shopping.
Cheguei e não me reconheci no espelho da C&A: cadê a maquiagem? Onde foi parar minha sombra, meu blush? Cadê meu cheiro? Aquele maldito tinha cheirado meu perfume todo! E o ônibus ficou com uma parte. Definitivamente, eu cheirava a catraca e poltrona suja. E nesse dia desenvolvi a teoria de que todo ônibus tem uma espécie de portal, através do qual as mulheres passam e deixam pra trás toda a beleza e graça com que entraram naquela barca do inferno. Eu era a cólera em pessoa.
Mas já estava ali e tinha um filme para ver. Encontrei o pretendente e passamos um longo tempo juntos. "Assistimos" ao filme. Tomamos sorvete (iguaria que podíamos pagar). Conversamos. Rimos. Passeamos. E eu já estava esquecida do início do dia. Só o calo no pé me lembrava o quanto eu tinha subestimado as calçadas de Salvador. Até que o tempo passou e tínhamos de ir embora.
Àquela altura a quem estaríamos enganando? Voltaríamos de ônibus para casa. Os dois. E pra quem não sabe, as saídas dos pedestres são sempre matinês: impossível voltar pra casa de ônibus sozinha às 22h. O máximo tolerável é 19h. E era a hora que eu via aproximar-se no meu relógio. Foi neste momento em que ele pegou em minhas mãos, olhou nos meus olhos e me disse, com orgulho de si mesmo, uma frase que marcou minha alma:
-Eu te deixo no ponto.
Fomos os dois. Eu envergonhada e ele triunfante- afinal de contas tinha sido um gentleman. Atravessamos a passarela de mãos dadas, em meio às bolsas e óculos escuros de camelô. Passamos pelo carrinho de cachorro-quente e pelo carrinho de churros. No ponto de ônibus o clima não era propício ao romance: ambulantes gritando pra lá e pra cá ("Olha o Mendoratto, um é R$ 0,30 e dois é R$ 0,50!!"), crianças chorando, pessoas gritando "PERAÊ, MOTÔ!", gente correndo e eu triste. A palavra é esta. Eu estava triste. E foi aí que ele me surpreendeu mais uma vez. Olhou pra mim com curiosidade e atenção e perguntou:
- E aí, vai pegar qual?
O pior foi que eu me vi respondendo.
- Vilas do Atlântico, e você?
- Vale dos Rios/Stiep R3.
Quase chorei nessa hora e ao mesmo tempo fiquei pensativa. E se o ônibus dele passasse primeiro? E se ele pegasse o ônibus e me deixasse esperando lá naquele ponto sozinha? E na hora que minhas profecias se realizaram e o ônibus dele passou olhei pra ele com uma cara tão feia que acho que meus pensamentos chegaram até a alma do pobre coitado. E ele ficou. Logo depois vinha chegando o meu.
Só quem pega ônibus com frequência sabe que ele é efêmero e complexo: se você vacilar, ele pára, a porta abre, fecha e você nem chegou perto. E se tem uma verdade é que ele não pára na sua frente. Ele pára lá atrás ou lá na frente. E o meu parou lá atrás.
Neste momento eu vivi um dos maiores constrangimentos de minha existência. Tinha que correr. Só uma mulher de salto alto e arrumada sabe o que é perder o glamour ao correr atrás de qualquer coisa. Sobretudo atrás de um ônibus. E eu tinha que correr. Aí corri. Ele me acompanhou. Paramos atrás da porta traseira e enquanto eu esperava minha vez de subir, nos despedimos com um beijo sob os olhares de pressa do cobrador.
Entrei no ônibus, passei da catraca, o ônibus "arrastou" e não me contive de tristeza ao dar aquele "tchauzinho" pela janela. Cansada. Suja. Humilhada. Com um calo no pé. E depois de tanto esforço, solteira. Mas não lamento. Eu sabia que não daria certo. Não me arrependo. Entre nós faltava um motor e quatro pneus, um punhado de engrenagens e uma caixa de marcha. E carro é mais que isso. Carro significa três coisas das quais não abro mão: conforto, segurança e privacidade. Não é tudo. Mas é um bom começo.
Que venha o IPI reduzido!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBom texto....
ResponderExcluirhahaha! Que legal seu texto.
ResponderExcluirboa! haha
ResponderExcluirNinguém a impede de ter o seu próprio carro...
ResponderExcluirCurti demais o texto e quase me convenceu de que não é uma "Maria Gasolina" hauehahuahueahuhuaeuhaeuha mas não explicou porque você não comprou o seu próprio carro!!!
ResponderExcluirJustamente o que eu queria saber. Compre um carro e resolva seu problema, em vez de esperar isso de alguém.
ExcluirMuito bem escrito! Não concordo com a apologia ao carro, mas concordo com a crítica ao nosso transporte público e aos nossos passeios. O importante é lutarmos pela melhoria das calçadas e do transporte público, pois do geito que vai, só com a opção pelo carro, em pouco tempo a cidade vai parar e só vai ser possível andar a pé ou de bicicleta, porque a rua vai ter tanto carro que vai travar tudo. Conheça meu blog: www.ruadegente.com.br
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