Reunidos do lado de lá da vida, ou do lado de cá da morte, como queiram os leitores, faziam considerações sobre os recentes acontecimentos que puderam observar de um mirante na abóbada celeste. Se é certo que o fim da vida também põe termo às obras, também é certo que a morte coroa os clássicos, imprimindo-lhes o caráter perene que não tem seus autores. Agora, mais mortos do que nunca e mais vivos do que sempre, podiam se regozijar do sucesso eterno e da longa vida fictícia que teriam a cada virar de uma página.
Mas nem sempre a morte traz uma consolação, e o que nossos célebres perceberam é que o mundo parece girar cada vez mais rápido, como se tudo caísse de repente num vórtice de informações. O tempo, ventríloquo dos homens, realiza manobras rápidas e quase imperceptíveis, furtando das pessoas seus mais preciosos momentos. Não há tempo, reclamam eles. E se não há tempo não há leitura, só há rotina.
E com isto se preocupavam nossos célebres autores. Clássicos mortos no corpo, mas vivos na memória e nas orelhas de seus livros. Conversavam sobre o futuro e desejavam o passado. Com a batida de um sino estridente começou a assembleia.
"Ao primeiro verme que roeu as frias carnes do meu cadáver dedico esta assembleia."
- Por que ele sempre tem que começar assim?
- Silêncio! Vamos ouvir!
-Caros confrades, autores defuntos. O desprazer deste discurso somente se assemelha ao desprazer de ver presa num frasco de vidro uma linda borboleta e depois observá-la morrer asfixiada. A borboleta é o que de mais nobre fizemos na vida, o que nos trouxe a este patamar de perene sobrevivência: nossos livros, outrora festejados como os 15 anos das moças, e que agora fazem parte de estantes cobertas do pó da ignorância. Se não podemos lançar mais clássicos às ruas e aos jornais, é somente por estarmos despidos da vida e não por vontade própria. Entretanto, certo é que as pessoas que antes nos liam, já parecem mais mortas que nós, embora muitas ainda não tenham passado pra o lado de cá. Certa feita, fui surpreendido por uma senhora mui educada, que me confessou ser uma leitora 'machadiana' quando em vida. Travamos um curto diálogo desses de esquina e ela me disse que por mais que tentasse seus netos nunca leram o que ela recomendava. Chamavam-na de caduca e coroca, mal sabendo eles que jamais sucumbirá às eras aquilo que tem o dom de ser perene: o conhecimento. Eis que agora preocupo-me, não com honrarias e ganhos derivados do labor com as letras, mas com o quê se preenche meu testamento aos homens, qual meu verdadeiro legado e em quê poderá ele ajudar o mundo.
- Mas agora ficou difícil, Machado. Começamos a competir com tecnologias cada vez mais avançadas. As pessoas ficam cada vez mais retidas no que é rápido, pois nunca há tempo. Gasta-se horas em frente a uma tela de computador, mas não há minutos para a leitura diária de uma anedota qualquer.
Caras de espanto preenchiam o ambiente sem paredes. Todos se entreolhavam com um quê de mistério e espanto. Clarice, que não conseguia se conter à menor curiosidade, quis saber mais.
- Computador?
- É como se fosse uma máquina de escrever, mas, para além da escrita e da leitura, permite um universo de outras utilidades.
- Aí temos nosso resgate, Caio. Se a máquina permite a leitura, permitirá que sobrevivamos ao tempo e às angústias da vida moderna.
- Não é bem assim, Clarice.
- Já não entendo.
- Sim, atalhou Drummond, plausível a dúvida de Clarice. Também não me dou por satisfeito com tamanha dissonância. Se o computador permite a leitura, por que então não nos permite?
- Porque livros são grandes demais e as pessoas querem algo rápido. Apesar disso, querem parecer entendidas em algo e em tudo ao mesmo tempo. Querem um suco concentrado de cada um de nós. Uma frase que os marque, sem que nada mais tenham de pensar sobre ela e seu nascimento em nossos intelectos.
- Só frases?
- Só. Citações.
- Como você sabe disso?
- Fiquei famoso assim.
- Já depois de morto?
- É. Como diria Cubas, sou eu um defunto autor. E pra te explicar como é isso, venha ver o que consegui esses dias.
- Uma fotografia minha com uma frase escrita?
- Sim, Clarice, veja.
- Mas por que me atribuem esta frase? Não é minha nem nunca seria. Essa frase não sou eu, Caio.
- Pois é...Costuma acontecer.
Clarice lança um olhar cheio de súplica e ira ao mesmo tempo para Caio, que disfarça e olha pra Machado. Este, resignado e triste, apenas balança a cabeça de um lado pro outro, lembrando dos tempos áureos em que seus contos e histórias vendiam a esperança de um Brasil mais inteligente e atento às letras. Não que seus textos ensinassem muita coisa - seria muita pretensão - mas pelo menos atiçavam o pensamento, como uma mula é chicoteada de leve para chegar no rumo certo.
De repente a ideia!
Assim como de seus intelectos brotaram personagens e histórias inesquecíveis que até hoje marcam a vida dos que se deram ao prazer (e não "ao trabalho") de ler, também em intelecto resolveram aparecer pra uma leitora assídua e escritora incipiente, que decerto não se negaria a transmitir um recado, ou melhor, alerta aos seus. A humilde moça sentiu-se tocada e escolhida, pronta para realizar o mister que mais parecia os Doze Trabalhos de Hércules, não em dificuldade, mas em importância. Utilizaria de toda a sapiência como a de Ulisses na Ilíada e teria a bravura do índio Peri, de Alencar. Deixar-se-ia levar por toda a prosa e poesia ao menor pedido de um desses deuses da literatura que, longe de pertencerem ao Olimpo, estão sempre ao alcance das mãos e dos olhos na prateleira mais próxima.
Ah, se todos soubessem a plenitude do que é a leitura! Veriam que é mais fácil aproximar-se do céu e dos clássicos que lá estão do que mendigar os frutos quase podres que o tempo deixou cair. Retirar dos célebres apenas uma citação é o mesmo que tocar com a mão suja a ponta minúscula e brilhante de um iceberg que flutua na imensidão oceânica da ignorância. E neste oceano, diferente do que diria Camões, navegar não só é preciso como necessário.
- Mas agora ficou difícil, Machado. Começamos a competir com tecnologias cada vez mais avançadas. As pessoas ficam cada vez mais retidas no que é rápido, pois nunca há tempo. Gasta-se horas em frente a uma tela de computador, mas não há minutos para a leitura diária de uma anedota qualquer.
Caras de espanto preenchiam o ambiente sem paredes. Todos se entreolhavam com um quê de mistério e espanto. Clarice, que não conseguia se conter à menor curiosidade, quis saber mais.
- Computador?
- É como se fosse uma máquina de escrever, mas, para além da escrita e da leitura, permite um universo de outras utilidades.
- Aí temos nosso resgate, Caio. Se a máquina permite a leitura, permitirá que sobrevivamos ao tempo e às angústias da vida moderna.
- Não é bem assim, Clarice.
- Já não entendo.
- Sim, atalhou Drummond, plausível a dúvida de Clarice. Também não me dou por satisfeito com tamanha dissonância. Se o computador permite a leitura, por que então não nos permite?
- Porque livros são grandes demais e as pessoas querem algo rápido. Apesar disso, querem parecer entendidas em algo e em tudo ao mesmo tempo. Querem um suco concentrado de cada um de nós. Uma frase que os marque, sem que nada mais tenham de pensar sobre ela e seu nascimento em nossos intelectos.
- Só frases?
- Só. Citações.
- Como você sabe disso?
- Fiquei famoso assim.
- Já depois de morto?
- É. Como diria Cubas, sou eu um defunto autor. E pra te explicar como é isso, venha ver o que consegui esses dias.
- Uma fotografia minha com uma frase escrita?
- Sim, Clarice, veja.
- Mas por que me atribuem esta frase? Não é minha nem nunca seria. Essa frase não sou eu, Caio.
- Pois é...Costuma acontecer.
Clarice lança um olhar cheio de súplica e ira ao mesmo tempo para Caio, que disfarça e olha pra Machado. Este, resignado e triste, apenas balança a cabeça de um lado pro outro, lembrando dos tempos áureos em que seus contos e histórias vendiam a esperança de um Brasil mais inteligente e atento às letras. Não que seus textos ensinassem muita coisa - seria muita pretensão - mas pelo menos atiçavam o pensamento, como uma mula é chicoteada de leve para chegar no rumo certo.
De repente a ideia!
Assim como de seus intelectos brotaram personagens e histórias inesquecíveis que até hoje marcam a vida dos que se deram ao prazer (e não "ao trabalho") de ler, também em intelecto resolveram aparecer pra uma leitora assídua e escritora incipiente, que decerto não se negaria a transmitir um recado, ou melhor, alerta aos seus. A humilde moça sentiu-se tocada e escolhida, pronta para realizar o mister que mais parecia os Doze Trabalhos de Hércules, não em dificuldade, mas em importância. Utilizaria de toda a sapiência como a de Ulisses na Ilíada e teria a bravura do índio Peri, de Alencar. Deixar-se-ia levar por toda a prosa e poesia ao menor pedido de um desses deuses da literatura que, longe de pertencerem ao Olimpo, estão sempre ao alcance das mãos e dos olhos na prateleira mais próxima.
Ah, se todos soubessem a plenitude do que é a leitura! Veriam que é mais fácil aproximar-se do céu e dos clássicos que lá estão do que mendigar os frutos quase podres que o tempo deixou cair. Retirar dos célebres apenas uma citação é o mesmo que tocar com a mão suja a ponta minúscula e brilhante de um iceberg que flutua na imensidão oceânica da ignorância. E neste oceano, diferente do que diria Camões, navegar não só é preciso como necessário.
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