quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Do chuchu e outros fingimentos.

- Menina - disse a dona da casa, me trazendo uma travessa de porcelana - você vai adorar esse suflê de chuchu!

Tanta receita no mundo, tanta coisa mais simples e mais gostosa de se fazer e a mulher me vem com suflê de chuchu. Odeio chuchu. O chuchu pra mim é a personificação do paradoxo: ele tem um gosto horrível de nada. Detesto isso. Detesto coisas sem gosto no paladar e na vida. E agora o chuchu se impõe no meu garfo, sob os olhos  ansiosos de uma anfitriã muito atenta. Levo o garfo à boca. O suflê derrete, enchendo minhas papilas gustativas de nada. Puro nada.

- Huuummm... Muito bom! - exclamo eu, numa das maiores aventuras da dramaturgia.
- Ai, que bom que gostou! Fiquei na dúvida, mas chuchu é algo tão universal! Não tem como não gostar!
- Exatamente isso! - ri.

Passei no teste. Agora vinha a melhor parte: comer o restante do prato, jogar pedaço de suflê no carpete e esperar que o gato coma. Será que ele come? Se não comer eu finjo que caiu. Na pior das hipóteses eu derrubo o prato. E choro. Isso. Choro copiosamente por ter perdido meu delicioso suflê de chuchu.

Mas por que eu não disse que não gostava de chuchu? Seria mais simples. Mas não queria desapontar a matrona anfitriã. Ela havia se esforçado desde a compra do chuchu até o momento certo de retirar o suflê do forno, para que não murchasse. Melhor que eu a fizesse um tanto mais feliz à custa do sacrifício próprio. Altruísmo não é bem uma palavra que me define, mas neste caso não resisti ao fingimento.

Afinal de contas, o que é um pedaço de chuchu perto do que a gente finge todo dia?

A gente finge escutar as pessoas - sobretudo quando já pedimos para elas repetirem a frase por três vezes. Aí nos limitamos a dar uma risadinha e esperar que faça sentido.
A gente finge que está tudo bem para não preocupar os outros e isso só não serve para as mães: elas se sobrepõe a qualquer tentativa de dramatização.
A gente finge que não tava chorando e que foi só um cisco, mesmo que estejamos com o nariz vermelho escorrendo e os olhos inchados.
A gente finge não gostar e fica ansioso esperando uma ligação. E quando chega a gente não atende. E finge que não tá nem aí.
Tem quem consiga o mais difícil: fingir que gosta de alguém.
A gente finge alergias, doenças, dores de cabeça.
A gente finge achar graça em algumas coisas. E finge não ter achado graça em outras, ainda que o riso tenha sofrido um freio brusco na frente da boca.
Tem quem finja se importar com os outros.
Tem quem finja gostar de Paulo Coelho.
Eu finjo aturar pessoas chatas. E sou boa nisso.
Algumas pessoas fingem enxergar.
Outras fingem orgasmo.
Tem quem finja entender de vinho e quem finja entender de si.
Às vezes a gente finge acreditar.
A gente finge não saber e até prefere: menos problema, menos abalo.
Muita gente finge trabalhar. Ou estudar.
A maioria das pessoas começa a tentar fingir ser bom em alguma coisa.
Eu finjo que estou satisfeita para não assustar os outros com meu apetite.
Fingimos o interesse por coisas sérias. E fingimos, muitas vezes, nos preocupar com o mundo.
A gente finge estar confortável no colchão duro.
A gente inventa desculpa pra não sair, só porque não tem dinheiro pro cinema.
Tem gente que finge que ainda está dormindo.
Outros fingem ter acordado para muita coisa na vida, embora ainda sonhem.

E do chuchu ao orgasmo, do amor a Paulo Coelho, a gente continua fingindo. E acha que tudo será melhor se a gente não for honesto consigo mesmo: a anfitriã não ficará triste, o homem não se sentirá ruim de cama, a namorada não se sentirá desamparada e o interlocutor não nos achará ignorantes. Mas um dia cansaremos de mostrar essa imagem distorcida do que somos de verdade.

Pediremos às pessoas pra repetirem pela quarta vez e nos desculparemos por não ter prestado atenção. Vamos dizer que estávamos chorando sim e que estamos tristes. Admitiremos que estamos cansados de trabalhar e não teremos vergonha de detestar Paulo Coelho (porque os livros dele, pra mim, são tão insossos quanto chuchu). Diremos às pessoas que esperamos uma ligação delas e atenderemos no primeiro toque, tal a vontade de conversar.

Beberemos vinho sem ter de sentir as notas de cereja, azeitona e couro e apenas estaremos perto daqueles que gostamos. Se não houver orgamos, valeu a tentativa e podemos tentar novamente. Comeremos muito, até nos entupir de comida e ter de abrir o botão da calça. Falaremos às pessoas chatas que elas são mesmo chatas. Vamos rir de tudo que quisermos, porque não há vergonha em ver graça nas coisas. E não fingiremos mais. Acordaremos. Porque de tanto fingir tanta coisa, a gente quase que finge viver. E ísso é pior que chuchu.



P.S. Também detesto abóbora.
 

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