domingo, 30 de setembro de 2012

Pra quem bebe porque é líquido.



Por que se bebe? Porque nos rendemos a este prazer entorpecente de beber líquidos com proporção volumétrica de álcool não recomendada? Por que insistimos em continuar ingerindo algo que sabidamente pode fazer tanto mal pro fígado e pra dignidade?

Talvez a gente bebe porque beber é uma experiência. Porque quando somos crianças queremos repetir o que nossos pais fazem. Às vezes a gente bebe porque é gostoso. Porque cerveja tem gosto de maioridade. Porque é questão de honra beber um copo de cerveja após tantos anos de infância fingindo bebê-la em vez do guaraná.

Tem gente que bebe porque se sente mais leve, mais maleável.Tem gente que bebe porque beber dá coragem. Porque sentimentos não precisam de justificativa. Porque as palavras ganham alforria. Porque se der tudo certo temos a glória, e se der tudo errado temos um pretexto.

A gente bebe pelas pessoas. Porque há poucos prazeres tão reconfortantes quanto uma cerveja gelada após a sexta-feira de trabalho com os amigos. Porque a conversa fica melhor a cada gole. A gente bebe porque se sente massa conversando o que quiser! A gente namora vinho e bebe a companhia de alguém especial. A gente bebe um licor gostoso como arremate daquele almoço em família surpreendentemente delicioso. A gente comemora uma conquista com a champagne cara guardada pro reveillon ou com o whisky do pai e bebe como se estivesse bebendo a própria vitória.

Tem quem beba para ocupar a mão e tem quem beba pra desocupar a cabeça. Tem gente que simplesmente gosta de algo muito específico ou bebe tudo de genérico que contenha álcool em sua composição. Tem quem beba pra esquecer, tem quem ache que fica mais fácil de lembrar, tem quem queira simplesmente esquecer de lembrar tanto.

É bom beber. Não importa o motivo. O bom mesmo é beber companhias ou a solidão pensante.

E que bom que existem pessoas como Jânio Quadros, ex-presidente. Perguntado sobre o porquê de ele beber tanto, simplesmente respondeu:
-Bebo porque é líquido. Se sólido fosse, comê-lo-ia.




P.S. Aos chatos de plantão e "do contra" por profissão, só um aviso: nem comentem dizendo que o alcoolismo é uma doença grave, que destrói lares, corações e fígados alheios. Deixem isso pro "Bem Estar". Detesto viver num mundo em que a liberdade de expressão esbarra no politicamente (in)correto.


sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Um cavalo na Tancredo Neves.




Estava eu voltando pra casa depois de um dia de faculdade e estágio. Cansada, com fome, ansiosa pra chegar em meu apartamento e tirar o sapato na área de serviço (porque jamais me furtarei deste pequeno prazer que é tirar um sapato apertado e pisar logo em seguida no chão frio). E foi pensando nesta vontade que eu acelerei o passo para chegar ao ponto de ônibus localizado na Avenida Tancredo Neves.

E tomei um susto.

Um pouco atrás de mim, um barulho incomum e inconfundível.

Um cavalo cortava a Avenida. Um cavalo numa das Avenidas comerciais mais importantes da cidade de Salvador. A beleza da cena me pegou desprevenida. Um cavalo corria no asfalto, seguindo o fluxo dos quadrúpedes motorizados. A aparição do animal não causava modificação no trânsito já tão caótico. As mesmas buzinas, os mesmos motoristas contrariados, o mesmo suceder de luzes no semáforo. Mas um cavalo corria por entre as fileiras de carros, preenchendo o espaço entre eles com rebeldia e coragem.

O cavalo sabe não fazer parte dessa natureza morta, dessa luta pela vaga na faixa ao lado, desse despejo de monóxido de carbono. Ele sabe. Ele sabe que seu lugar não é ali, mas continua correndo, continua deixando aquele rastro de vida e inconstância. Porque ele é um cavalo!

E ele é diferente dos companheiros de trânsito. O cavalo pode parar, pode correr até a exaustão, pode caminhar tranquilo pelas marginais da pista. O cavalo pode mudar de caminho, pode não seguir o fluxo. Ou pode seguir o fluxo de uma maneira completamente desgarrada. Ele pode até ser domesticado, mas sabe que também é de sua essência a força indomável do vento na crina castanha e que vez em quando será a hora de correr como se não fosse preciso chegar a lugar nenhum.

Um cavalo não corre mais que um carro, mas ali ele corria. Ali ele ganhava de todos. E talvez ali, algum motorista emburrado tenha proclamado o desejo de ter um cavalo e chegar em casa mais cedo e tirar o sapato apertado num chão gelado qualquer. Talvez não. Talvez ninguém tenha reparado na cena do cavalo que corria na Avenida, ou apenas tenha reparado pra reclamar da irresponsabilidade do dono do animal.

Pode ser que só eu tenha me visto naquela corrida audaciosa, atravessando triunfante uma pista cheia de mesmice e continuidade. E não é porque meu signo no horóscopo chinês é o cavalo - informação relevantíssima tirada de uma folha de bandeja do McDonald's: é porque às vezes tenho necessidade de correr na contramão das coisas e chamar atenção de quem passa pela vida como quem passa por uma avenida congestionada.

A beleza do cavalo correndo por entre as luzes traseiras dos carros me tomou até onde a vista me permitiu alcançá-lo. Depois ele sumiu. E imediatamente, antes de entrar no ônibus e ir pra casa, concluí que um carro pode ter em seu motor muitos cavalos de potência, mas todos eles juntos não tem a altivez de um só cavalo de verdade.




terça-feira, 25 de setembro de 2012

Crescer dói.

Quando eu tinha entre 7 e 10 anos sofria de dores fortíssimas nas pernas. Era comum chegar em casa e chorar, pedindo à minha mãe que fizesse massagem porque eu estava com "dor de perna" - batizei a dor com esse nome.

Minha mãe fazia massagens com gelol, mas a dor era insuportavelmente profunda, como se viesse dos meus ossos. A massagem funcionava, até, mas era comum que eu tivesse isso com frequência, o que deixava a todos procupados, sobretudo meu pai, que em sua sutileza dizia que era podia ter um tumor.

Pra uma criança é duro de ouvir um negócio desses, ainda mais partindo de um pai, que pra mim estava sempre certo. Mas depois de um tempo eu aprendi que ele é assim mesmo - só pra vocês terem uma ideia, meu pai já se despediu de mim 3 vezes, achando que ia morrer em três cirurgias: uma de cálculo renal, outra para retirada de uma hérnea no umbigo e outra pra tirar um nódulo na nuca. Em todas estas situações eu recebi mensagens de texto no estilo "Minha filha, foi um prazer ter sido seu pai.", só pra vocês conhecerem a figura.

E meu pai estava errado quanto ao meu tumor na perna.

Depois de anos sem saber o que era, e depois de ter sumido a bendita dor, assisti a uma reportagem do Globo Repórter em que mostrava crianças que sentiam o mesmo tipo de dor que eu. Era a dor do crescimento, cuja causa específica ainda não era conhecida, mas que relacionava-se ao desenvolvimento dos ossos, músculos e tendões. É mais comum do que se pensa, e costuma preocupar os pais, já que não há sinais externos de vermelhidão ou inchaço. E eu, muitas vezes atormentada pela idea de ter um tumor, não me dava conta de uma verdade tão simples quanto inevitável: eu estava crescendo.

Pensei que crescer só doesse no coração. No fato de ter de abandonar a mais deliciosa das rotinas: brincar 90% do tempo e usar os outros 10% pra tomar banho e fazer dever de casa. Subir no pé de manga da vizinha, assistir 4 horas de desenho animado, escorregar na varanda enquanto minha mãe tentava lavar o chão todo ensaboado, ler meus livrinhos infantis que sempre vinham cheios de lições (às vezes mais especiais que as dos meus professores, saber que correr é divertido e apostar corrida pra fazer tudo, jogar gude e brincar de brigar.

Abandonar essas coisas gradualmente dói demais. Toda vez que eu volto pra casa e leio um dos meus livros infantis dá vontade de chorar e pedir uma massagem no coração. Embora eu possa lê-los novamente e recolher as mesma lições, aqui dentro eu sei que não é a mesma coisa e nunca será. Posso brincar de novo de qualquer coisa, mas haverá menos graça e o sabor não será de manga. Meu tratamento paliativo, então, é brincar com uma vizinha minha amiga, que tem 8 anos. Ela pensa que ela é que se diverte brincando comigo, mas na verdade é ela, que me fazendo criança de novo, acaba por me resgatar e me lembrar de como era bom sentir aquela dor nas pernas.

Sim, agora eu sei que era uma boa dor. Significava que eu estava crescendo, mas ainda não tinha crescido por completo. Hoje eu sinto falta da dor física que antecedia essa minha dor na alma por ter de crescer. Hoje não me dói mais nada. Só a saudade.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O binóculo.

A vizinha tinha brigado com o namorado. Há 6 dias não cantava para as flores da varanda. Ela só cantava após noites de amor bem românticas, aquelas em que a luz do apartamento dela ficava bem fraquinha - quando se apagava tudo não: aí ela estava só dormindo. Depois dessas noites ela também dançava com a vassoura enquanto cuidava dos afazeres domésticos. Uma das maiores curiosidades era a música que cantava. Qual seria? Não importa. Agora ela não cantava mais. Torceu para que voltasse a cantar: as flores deviam estar mais tristes.

Enquanto isso, no prédio do lado, mais precisamente no apartamento do 5º andar voltado para a torre do edifício empresarial, uma família séria tomava café e se preparava para o dia. O marido ajeitava a gravata e gritava com o filho pequeno que acabara de jogar a tigela de cereal no gato, que escapou por um triz. O marido também gritou com a esposa, que estava se arrumando pro trabalho e passando batom em vez de olhar o filho. A esposa gritou com o marido, rebatendo. E o filho gritou com o gato. Não, minto, miou para o gato. Só o gato não gritava naquela casa. E o marido nem desconfiava que o gato presenciava a traição da esposa. A sorte era que o gato não gritava.

A banca de revista da esquina estava falindo. Ninguém mais queria comprar letras. Todo mundo tinha as letras que quisesse numa tela de computador. E estas só falariam o que queriam ouvir. Na banca não. Os jornais eram expostos e mesmo se você desviasse o olhar já teria sido capturado pela informação, para azar dos otimistas que não queriam saber dos escândalos. Talvez as pessoas achem que informações em papel, depois de lidas ficam só guardadas. Depois de guardadas ficam mantidas. E onde ficaria o desenvolvimento sustentável? Pena que as pessoas esquecem o que dá pra fazer com notícias velhas: recortar letras pra fazer cartas anônimas sem medo de se reconhecer a caligrafia ou simplesmente relê-las para lembrar que aquilo aconteceu e passou. É bom ter uma prova irrefutável de que o tempo passa mesmo.Não dá pra confiar nesses relógios.

E isso era a vida dele. Observar pessoas através de um binóculo da janela do 6º andar. Gostava de descobrir as histórias delas. Gostava de conhecê-las mesmo à distância, dada a impossibilidade de descer. O que não gostava era quando o achavam um inválido. Não é que ele estivesse preso em casa, condenado a ficar naquela cadeira de rodas pra sempre, sozinho. Foi assim só até comprar o binóculo. Depois não. Depois passou a ter companhia.

Fato é que o binóculo caiu do 6º andar naquela noite, quando não via atividade alguma no apartamento da vizinha - aquela das flores- e presumia um rompimento. Afastou-se da varanda descuidado e triste e foi aí que o binóculo caiu, fazendo um barulho quanse abafado para ele, mas sonoro demais para a rua, à noite. Que lástima! Como enxergar as pessoas agoras? Como saber se a vizinha cantava ou não, que cor de roupa usava, se terminara mesmo o namoro ou apenas dera um tempo? Como saber se o gato ainda estava vivo depois de ter escapado das malcriações do menino? Como saber a reação das pessoas às notícias? Haveriam ainda notícias?

A vida sem binóculo seria o caos. Sem pernas que prestassem era até tolerável: os olhos iam até onde queria, com a ajuda do binóculo. Agora estava inerte. Perdera as pernas que substituíam com perfeição as outras, já inertes há muito tempo. E já que vivia sozinho não tinha como mandar alguém providenciar novas "pernas". Teria de viver sem elas.

Talvez devesse sair de casa e conhecer as pessoas de perto. Quem sabe conheceria a vizinha das flores, a vizinha adúltera e o dono da banca de revistas. Deveria descer para providenciar outro binóculo e comprar a notícia do dia, só pra marcar aquele momento. Até poderia descer mesmo: tinha elevador e tinha uma cadeira de rodas. Mais que suficiente pra ir até a banca de revista. Mas o que o estava impedindo? Talvez o fato de saber da realidade das coisas, em vez de meramente supor situações. A realidade nem sempre se presta a nossas imaginações. Agora entendia as pessoas que se esquivavam das notícias do dia. Espertas.

Decidiu fazer como elas: entrou na internet. E lá encontrou um binóculo por um bom preço. Entregaram em casa. Mal pôde esperar: foi até a varanda e esquadrinhou a cena: na sala da vizinha das flores sombras se revelavam nas cortinas, estavam contra a luz de algumas velas. Era um jantar. Talvez tenha reatado, mas talvez seja outro amor. Não, tinha reatado. Quem canta com as flores por uma pessoa, jamais cantará por outra assim tão rápido. Decidiu que a vizinha reatou. As flores estariam mais felizes amanhã e a vassoura mais eficaz depois de tanta dança.Recolheu as pernas novas e dormiu em paz.








domingo, 23 de setembro de 2012

De um jurista apaixonado.


Este amor é caso fortuito,
É morte por motivo fútil,
Domínio de violenta emoção.
Se me usa, logo é usufruto,
Se me toma, objeto de furto,
Se se apodera, usucapião.

Embriaguez preordenada
De relação condicionada,
Quase dolo eventual.
Condicionada ao sentimento,
Que sem custas ou emolumentos,
Me exerce direito real.

Mas se em desforço incontinenti,
Tento afastar renitente
O ato da turbação,
Reclamas agressão legítima,
De amante personalíssima,
Diz que é teu meu coração.

Recluso em regime fechado
Se grito de liberdade alardo
Tu me vens prender pela mão
Me lança este olhar de fascínio
Me pede exceção de domínio,
Me impinge condenação.

Se penso que assim se declara
Logo desmente na cara,
Tem nos lábios omissão.
Mas olhos são traiçoeiros,
Nunca deixam de ser verdadeiros
Nem tem medo de confissão.

O que requeiro, destarte,
É que admita ser minha parte,
Reconheça minha pretensão.
Esqueça qualquer ato pretérito,
E se com amor julgar meu mérito,
Serei pleno em satisfação.

Pra te amar não tem mais hora,
E se há periculum in mora,
Aprecie a liminar
Para constituir do teu lado
Este ser apaixonado
Do qual tu és titular.

















Contando contos.

Algumas coisas na vida mudam para permanecer as mesmas, só que mais elas próprias. Às vezes a mudança que se experimenta serve mais para reafirmar o caráter das coisas. Assim aconteceu com este blog.

Nasceu sem muita pretensão, confesso, sem definição do que eu queria colocar aqui. Com o tempo fomos mudando nós dois, eu e ele, até que cheguei à conclusão de que só fui ficando mais eu e um tanto mais "afiada" nesse negócio de escrever, que é um dos meus maiores prazeres e um dos maiores vícios.

Então, se escrever é o que me faz bem, e se tenho imaginação suficiente, melhor direcioná-la: a informação é tanta que às vezes o pensamento se embaraça e perde a meada. Aqui eu tenho um tear. Tenho como criar agasalhos de palavras, cada um com sua cor, sua textura, seu comprimento, que apenas servem para aquecer aquilo que, assim como a mente, deve permanecer sempre aberto: o coração.

Espero que continue me dando a honra da leitura e que o conto escolhido seja o seu número.

Aumento um ponto!





sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Que os deuses nos invejem.

Dia desses assisti ao filme "Troia", lançado já há bastante tempo - reflexo da absoluta falta de programas melhores para fazer mais a mania que me aflige de assistir a filmes repetidos. [Apenas a título de informação, saibam que este meu pequeno problema começou aos 6 anos de idade, quando todos os dias eu voltava da escola e assistia ao "Rei Leão". E eu chorava todos os dias porque todos os dias Mufasa morria.]

Pois bem, estava eu assistindo ao filme "Troia" e torcendo por Heitor - embora já soubesse que Heitor morreria em um duelo com Aquiles - quando o próprio Aquiles, falando com os gregos, disse a seguinte frase:

"Os deuses nos invejam. Eles nos invejam porque somos mortais, porque qualquer momento pode ser o ultimo. Tudo é mais bonito porque estamos fadados a isto."

No momento em que ouvi novamente esta frase, pus-me a pensar que de fato, a única coisa de que podemos nos vangloriar é de que somos mortais. Talvez, verdadeiramente, os deuses tivessem inveja dos humanos naquele período. A imortalidade, em que pese parecer uma grande virtude, invariavelmente  tornaria tudo mais monótono.

Imagine que nada pode nos abalar e temos, de fato, todo o tempo do mundo para fazermos o que quisermos. Imagine acordar sabendo que não se pode morrer, que nada de mal pode nos tirar desse mundo, que estaremos sempre diante do mesmo amanhecer e faremos o que quisermos ou não faremos nada. Imagine acompanhar tudo e poder esperar por qualquer acontecimento durante uma eternidade, sem ter aquela sensação, que tenho com frequência, de que ou vamos em busca ou jamais teremos o desejado.

No entanto, embora o raciocínio seja exatamente este, o de que vida e morte se complementam pois apenas a presença desta dá sentido àquela, não acho que hoje os deuses teriam a mesma inveja de nós e de nossa sociedade tão sem tempo quanto sem vida.

Vivemos num mundo tão rápido e tão cheio de coisas a fazer que levamos a vida no automático. Acorda-se pensando no que vai vestir, comer, fazer, estudar. Quando se vê já é 12:00 e esquecemos o que fizemos de manhã, o que comemos, o que tínhamos planejado. Vivemos à espera do segundo próximo que acabará por passar e com ele responsabilidades e afazeres. Fazemos tudo. Eventualmente uma ou outra tarefa nos dá a frustração de ser adiada. Comemos rápido, dormimos mal, deixamos de cumprimentar as pessoas porque perderemos muitos minutos preciosos e talvez seja melhor virar o rosto e fingir que não vimos uns aos outros.

No entanto, ainda que tenhamos a plena consciência de que tudo está passando rápido demais ( e que você já está sendo chamado(a) de "tio" ou "tia"), fazemos planos. Sim, continuamos planejando. Ano que vem eu viajo. Mês que vem eu recomeço a praticar esporte. Semana que vem eu vou ao cinema. Amanhã eu ligo para aquela pessoa especial.

Deixamos a maioria das coisas que nos satisfazem de verdade para depois, um depois que pode não existir. Sabemos que tudo passa rápido, mas ainda temos a ilusão de que haverá no futuro algum tempo para que possamos fazer tudo que não podemos fazer agora, porque não há tempo. Cada segundo é precioso. As obrigações não esperam: tem prazos exíguos, cujo cumprimento torna-se, não raro, mais importante que a própria tarefa em si.

Responda à seguinte pergunta: Quantas vezes neste mês você fez algo que te desse aquela sensação de se estar vivo? De satisfação plena? Aquele momento de absoluta sintonia com o mundo em que você olha pro céu e pensa: "Que bem que eu estou vivo"?

Você pode até rechaçar esta pergunta e rebater afirmando que talvez eu queria lançar o mundo ao mais completo devaneio hedonista, onde as pessoas não se preocuparão com o futuro e não estudarão ou trabalharão mais. Mas no fundo, no fundo, você sabe que não é disto que estou falando. E você neste exato momento pode fechar a página e parar de ler porque tem um prazo importantíssimo pra amanhã, mas penso eu que os prazos e as coisas inanimadas podem ficar pra depois. Mesmo que você morresse neste exato momento, o prazo não deixaria de existir e, inevitavelmente, seria feito posteriormente por outra pessoa. Só que as pessoas não podem ser deixadas pra amanhã.

"Pra morrer, basta estar vivo", diria meu irmão, na frase mais estupidamente óbvia e genial do século.

Acabamos nos importando tanto, com tantas coisas, que esquecemos de viver. E por esquecermos, vamos morrendo por dentro. E quando se vê já se morre por completo, deixando, como sobejo de personalidade, o espólio e algumas poucas lembranças.

Por isso faça aquilo que te mantém vivo, ou eventualmente você poderá se sentir morto antes mesmo de ter passado pelo véu de Ísis. Devemos estar preparados pois aqui há uma única obrigação a ser cumprida, cujo prazo pode ser tão exíguo quanto a tarefa mais rigorosa; nosso único encargo e, ao mesmo tempo, nossa única certeza: a morte.

Assim, que ela signifique a possibilidade de viver mais e melhor, de não deixar pessoas pra depois, amor pra depois, riso pra depois, e só assim não deixaremos a nossa própria vida pra depois, esse depois que pertence ao Universo, ao acaso, ao Deus, ao sobrenatural, ao que não se explica ou até ao sabe-lá-o-quê que nos colocou aqui.

Na vida, então, façamos como os gregos: deixemos os deuses com inveja.


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Duas amigas no salão.


- Ai amiga, não sei como é que você tem coragem de fazer isso!
- O quê, luzes?
- Não né.....Trair seu marido.
Tinha falado tão baixo, mas tão baixo, que nem o cabeleireiro nem a amiga escutaram.
- Anh?
- Trair seu marido! - Ainda era baixo, mas agora fez um gesto com os dedos, simulando chifres.
- Ah tá...Que nada, menina. Todo mundo faz isso hoje em dia. É normal.
- Normal?
- É, ué. É que nem perder virgindade. Você fica preocupada com aquilo, acha que vai estragar tudo, que não vai dar certo. Depois da primeira vez fica mais tranquila.
Recebeu um olhar de reprovação da amiga. Ambas olhavam uma revista de penteados.
- Não sei como pode achar isso normal.
- O quê, esse penteado com topete?
- Não. Você trair seu marido.
- Grande coisa, meu amante também trai a mulher.
- O QUÊ?
Falou tão alto que duas outras mulheres, 4 cabeleireiros, 3 manicures e uma gerente olharam na mesma direção.
- Ele é casado? - cochichou.
- É, menina.
- Esse mundo tá perdido mesmo...Absurdo!
- Vai dizer que você nunca ficou com mais ninguém durante seu casamento.
- Não! Claro que não!
- E acha que seu marido também não.
- Claro que não!
- Hahahahahaah! Sério que você ainda se ilude?
- O Júlio não me trai, amiga.
- Eu comecei assim.
- Assim como?
- Descobri que o Paulo César me traía. Traí a primeira vez pra dar o troco. E acabei gostando.
- Então ele bem que mereceu né? Mas por quê você continuou?
- Descobri o bem que isso faz pro relacionamento.
- Como assim?
- Nós estamos casados há uns 15 anos, amiga. Já não é mais a mesma coisa. Principalmente na parte da cama, né...Sabe como é. O Paulo não tem mais aquela energia de antes e pior: começou com uma crise de meia idade. Todo homem chega nessa fase de ver que tá ficando velho e começar a tentar se "ajeitar". Era um tal de clareamento dentário pra cá, peeling pra lá. Começou a pintar o cabelo. Mas o ápice mesmo foi quando eu peguei ele chorando no banheiro, com uma pinça na mão, na qual estava agarrado um pêlo branco. Era do peito.
- E aí?
- Aí que ele não ia admitir nunca que estava ficando velho. Pra se "reafirmar" no mercado, começou a sair com a secretária, que é uns 15 anos mais nova que ele.
- E você não ficou com ciúme?
- Fiquei claro, mas aí ele comprou pra gente uma segunda lua de mel em Cancún. Ele melhorou 100%. Passou a me levar mais pra sair, me agradar mais. Gostei.
- E aí começou a trair ele?
- Só no último dia de Cancún, quando eu conheci o Ramón, massagista do hotel.
- Hahahaha. Sério?
- Sério.
- E agora está saindo com um homem casado.
- Sim. Mais dia menos dia a mulher dele vai perceber que faz bem. Ele comentou que vai levá-la pra Vegas.
- Uau.
- Pois é.
- E quando você tá com ele você não lembra do Paulo César?
- Lembro. Por exemplo, outro dia fomos naquele motel perto do Aeroporto, sabe onde é? Um que eu fui com o Paulo César na nossa primeira vez.
- Sei! Você me contou isso...E ao entrar no motel você lembrou dele?
- Não, menina. A gente entrou, ele me ofereceu algo pra beber. Whisky.
- O Paulo César adora whisky, né?
- É, mas eu nem pensei nisso. Continuando, ele colocou uma música da nossa época.
- A que você tinha dançado com o Paulo César naquele bailinho.
- Não! A gente ficou lá dançando.
- Ih....aí vem.
- Aí sabe aquela cama redonda e enorme?
- Sei!
- Pois é. Foi aí que eu lembrei da barriga do Paulo César.
Seguraram o riso. Olharam-se. Agora eram cúmplices daquela traição. Riram abafado. Depois de alguns minutos a amiga voltou à fisionomia séria.
- Um absurdo!
- O quê? Esse negócio de eu ter um amante?
- Não, menina, o preço dessas luzes! Não tá fácil pra ninguém,viu...

sábado, 15 de setembro de 2012

A coisa julgada e as vassouras atrás da porta.


Esses dias eu me peguei pensando em "coisa julgada". Coisa julgada. Tem algo mais chato e inútil do que o termo "coisa julgada"? É algo que já foi julgado. Já era. Depois da coisa julgada o negócio é chorar no pé do cabôco. Mas a coisa julgada tem implicações. Tem limites objetivos e subjetivos. Tem consequências jurídicas. E me peguei pensando na existência concomitante de duas coisas julgadas. O mesmo fato foi julgado de maneiras diferentes. E aí? O que prevalece?

Você, que nunca se viu pensando em coisa julgada, não sabe o quanto a situação é ultrajante. Às vezes eu acho que todo mundo deveria ter o direito de colocar uma vassoura virada de cabeça pra baixo atrás da porta do pensamento, pra ver se espanta esse tipo de coisa indesejada. É como se fosse preferir salada a batata-frita, sendo que o único critério é o gosto. É sabotagem.

Por isso mesmo, quando eu, deitada às 23h36 do dia 13, me vi pensando em coisa julgada e procurando na memória a matéria "Conflito entre coisa julgada", quase desisti de mim mesma. Absurdo! Onde já se viu, pensar em coisa julgada uma hora dessa da noite? Coisa julgada? Tanta coisa mais interessante pra pensar, pra supor, imaginar, falar - sim, eu tenho diálogos longos e construtivos comigo mesma. Tantas cenas pra ensaiar - sim, eu "ensaio" as conversas que terei com as pessoas, ainda que elas não tenham recebido cópia do script - e eu ali pensando em coisa julgada no mais absoluto desperdício de tempo da minha vida.

Talvez quando eu esteja bem velha ou até mesmo se eu morrer jovem, naqueles poucos momentos antes de falecer, eu vou pensar: antes eu tivesse usado aquele tempo, em vez de pensar em coisa julgada. Talvez a vida até me reserve um futuro profissional cheio de coisa julgada, mas com certeza ela não ocupará mais meu pensamento. Não à noite, no horário em que todo cristão coloca a cabeça no travesseiro e pensa no que quiser.

E eu podia pensar em tanta coisa!

Eu podia pensar no meu sonho (agora meio abandonado) de ser atriz/cantora/modelo/jornalista da Globo - porque de outra emissora não serve. Eu podia pensar em ir aos Estados Unidos e trabalhar numa loja de fast food, onde todos ficarão embasbacados com a minha fluência no idioma e um americano muito legal se apaixona por mim após eu acertar no seu pedido com muito bacon. E esse é o momento em que eu começo a conversar sozinha em inglês, o que muito me deixa animada porque só uso o vocabulário que eu conheço, óbvio, me dando a impressão de que eu sou fera no inglês.

Eu poderia usar o tempo pra pensar no que eu vou fazer com o dinheiro quando eu ganhar na mega sena, mas esse pensamento eu já descobri que é inútil enquanto eu não começar a jogar na loteria, então talvez seja melhor pensar em algo mais rentável e possível, tipo eu conhecer um olheiro de cantores, que descobriria este meu talento desconhecido e me levasse pros palcos. Aí eu seria famosa, usaria roupas cheias de brilhos e faria um dueto com Roberto Carlos. Mas aí eu seria a Paula Fernandes e eu tenho muita agonia dela, porque parece que ela tirou uma costela. Seria eu, só que famosa.

Talvez eu devesse usar aquele tempo pra pensar no que vou fazer depois de formada, mas isso era chato!Também tem o lado ruim de ter que me fazer pensar que tenho que começar a estudar de verdade pra um concurso e saber coisas chatas, como coisa julgada. A cabeça da gente deveria fazer uma triagem antes de pensar: só coisas boas/improváveis/sonhadoras e que demandassem bastante imaginação poderiam prevalecer lá na mente. Responsabilidades, taxas, imposto de renda, ônibus, trabalho, estágio, futuro profissional: tudo isso só devia ser pensado na hora certa, não às 23h de uma noite de quinta-feira.

Mas, pensando bem, acho que não foi de todo ruim pensar nisso. É péssimo porque eu não descanso enquanto eu não lembro de algo, mas foi até bom porque me fez ficar mais atenta a esse tipo de armadilha montada pela cabeça. A partir daquele dia eu jamais me permiti dormir logo após pensar em coisas assim: chatas, sérias e julgadas. Não, nunca mais. Hoje talvez eu pense na minha viagem pra Europa. Ou na minha volta pra o interior. Talvez eu pense em como eu queria ir pra praia amanhã. Talvez eu pense no que eu podia dizer às pessoas. Talvez eu pense em você, que está lendo. Talvez em mim, mas não necessariamente.

O bom do pensamento é que sempre nos dá uma segunda chance, embora eu não possa dizer o mesmo do tempo. Este é implacável, mas quer saber? Necessário. Não fosse o tempo e sua passagem silenciosa, eu jamais me arrependeria de pensar em coisa julgada e talvez até continuasse indefinidamente pensando nisto. Há pessoas assim.

Pode parecer desespero esse negócio de não querer perder tempo nem com pensamento, mas pra cabeça de quem tem imaginação, o que se pensa é vivido. Nem que seja naquele cantinho da cabeça, a gente vive, sente, fala. Se for coisa boa, suspira depois do pensamento e torce pra virar verdade. Se for ruim, se arrepende. O negócio é se condicionar. Meu problema já resolvi: as vassouras estão atrás da porta.


domingo, 9 de setembro de 2012

A política, os bois mortos e 5 galinhas.


Sou de uma cidade do interior chamada Campo Formoso, aqui na Bahia. Em cidades pequenas do interior a gente sabe que poucas coisas chamam tanta a atenção e movimentam o povo como as eleições. São João talvez. Mas eleições trazem um quê de Copa do Mundo: torcida, briga, aposta e, em geral, apenas dois times disputando. Meus pais sempre apoiaram um dos lados da disputa, assim como todo mundo. Escolhe-se cedo em quem se vai votar e famílias inteiras votam no mesmo candidato. Este ano meu pai candidatou-se ao cargo de vereador, coisa que ele sempre gostou e que desde 1994 mantém como sonho não realizado - em 94 ele foi suplente da Câmara de Vereadores. 

Em Campo Formoso, um dos grupos políticos, a que meus pais fazem oposição, se mantém no poder por muito tempo, uns 46 anos. Apenas uma vez o grupo da oposição esteve no poder.

Assim como nas demais cidades do interior baiano, aqui, nas eleições, os candidatos visitam as comunidades rurais. Poucas pessoas sabem, então eu tenho o prazer e o dever de informar que Campo Formoso é um dos maiores municípios da Bahia, o 8º maior, para ser mais precisa. Embora a sede da cidade seja pequena, a zona rural é enorme: há lugares em que fica mais perto viajar por Juazeiro pra chegar. Alguns povoados chegam a 100km de distância da sede. Tudo isso com 90% do caminho em estrada de chão.

Depois dessa pequena introdução começa o relato de verdade.

Fomos visitar um povoado do interior chamado "Laje dos Negros", remanescente quilombola. Acordamos um tanto cedo e equipamos o carro: água, bonés, comida (salgadinhos e biscoitos), roupas de frio - por causa da alta amplitude térmica diária, termo que eu não deixaria de falar pois aprendi em Geografia e acho bonito. Levamos tudo. O carro ficou pesado.

Iniciamos a viagem.

Se tem uma coisa que eu gosto em viajar pelo interior é a paisagem. Fico observando tudo: o povo que a gente encontra andando pelo "acostamento", o tipo das casas, o tipo de vegetação que, à medida em que nos afastamos da sede, vai adquirindo uma coloração mais cinzenta e um aspecto mais seco: a caatinga se revela a cada metro percorrido. O chão, que antes parece esbranquiçado, agora vai ficando cada vez mais vermelho. E tudo vai ficando mais bonito, penso eu.

Mas a beleza, neste caso, não necessariamente é alegre. Pelo contrário. A beleza da caatinga e suas características mais evidentes - as árvores secas, o solo rachado, o mandacaru - fazem par com a calamidade da seca. Observando o cenário do sertão me deparo com sentimentos dúplices: meus olhos não param de contemplar a beleza das paisagens, mas meu cérebro, em contrapartida, me lembra a todo instante que nem sempre o que é bonito é bom.

Não fosse a poeira eu abriria o vidro do carro para sentir o cheiro da terra e ouvir melhor o barulho gostoso que os galhos fazem ao estalar, ou que o gado faz ao pisar na vegetação seca. As barrigudas, árvores cujos troncos parecem "grávidos" também vão tomando lugar. Tudo seco. De repente, visualizo uma cena que me enche de tristeza e vergonha.

No chão, dois bois mortos. Um em já avançado estado de decomposição. Não tinha mau cheiro, apenas uma carcaça seca. O outro poderia ter morrido no mesmo dia: não houvesse a carcaça do lado, poderia alguém até imaginar que estava dormindo. Mas quedava no chão inerte e inanimado. Não tirei meus olhos da tragédia. Meu irmão, que dirigia, acelerou o carro, mas continuei olhando para trás, como que para verificar se o boi, na verdade, não levantava e saía andando. Não levantou. E eu sabia que não ia fazê-lo.

Me senti ridícula. Ridícula. A palavra é essa. Ridícula por tantas vezes reclamar de tantas coisas que pareciam não fazer o menor sentido perto do que as pessoas sofrem. Um boi morto, na minha atual condição, pode não significar nada, mas pra quem só tem um boi morto significa muito, significa tudo. Como eu sou ridícula e limitada. Levei um bom tempo me chamando de ridícula por todas as vezes em que eu reclamei de não ter dinheiro pra ir ao cinema. Me senti ridícula, sobretudo, por não saber nada do que é a vida e precisar de uma cabeça de boi morto pra me mostrar que as reclamações mais fúteis não são dignas de serem pronunciadas ante o silêncio dos que sofrem a incerteza da comida e da água.

Lá no povoado de Laje dos Negros tudo estava animado. O comício arrumado. Gambiarra, som, festa. O povo, entoando e dançando a música do candidato, estava feliz. Sem querer entrar no mérito da política campo formosense, que muito me deixa desanimada, ninguém jamais fizera nada por aquela comunidade. Poucas ruas são calçadas. A rede de esgoto é recente. A pobreza é grande. A desigualdade e a falta de oportunidade são quase marcas do local. Mas a carência daquele povo é, sobretudo, de atenção. De pessoas que se importem de fato.

E aí eu me vejo reclamando de não ter dinheiro para ir a uma festa, enquanto o povo de lá briga a cada disputa eleitoral por aquele que lhe promete maior número de cisternas. É água. É básico. É sobrevivência. E em cada família a esperança de que um lado ou outro venha a prover o que se necessita. E fico mesmo é emocionada quando o "Nêgo Brás", senhor muito pobre que sempre acompanhou meus pais na política, diz que matou 5 galinhas pra comermos após o comício.

Talvez nem o Brás tivesse as 5 galinhas. Talvez sejam as últimas galinhas dele. Assim como aqueles foram os últimos bois de alguém. A morte das galinhas significa mais um sacrifício com esteio na esperança. Era a própria esperança cozida e repartida em peito, coxa, pescoço. Quanto aos bois, ao contrário, nada de simbólico há em suas mortes. Serviram apenas como constatação. De que somos ridículos. De que a ineficiência machuca. De que não só de esperança vive o gado. Nem o povo.


P.S. Na política, que vença aquele que come as galinhas sem deixar de pensar nos bois mortos.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Maria no espelho.




Nenhum dos meninos entendeu nada quando Maria da Anunciação, depois de ter demorado tanto tempo, chegou em casa e entrou direto sem se demorar no terreiro. Na frente da casa, as galinhas se amontoavam, subindo no pequeno batente e alçando, logo em seguida, voos curtos. O alvoroço estava instalado e por mais que tal fato pudesse passar despercebido para um expectador qualquer, era por demais estranho que Maria não fosse tanger as aves. Que teria acontecido? Era o que se perguntavam dois pares de olhos magros e infantis com peculiar assombro.

Nunca a mãe tinha chegado em casa da venda naquele estado. Sem reação. Sem tanger galinhas. Aliás, não apenas a providência quanto às aves fora deixada de lado: ela também deixara de retirar as roupas do varal e varrer o terreiro que agora emporcalhava-se com os dejetos dos galináceos. Sequer direcionara um olhar aos pequenos, nem de pena nem de pesar, como costumava fazer quando não trazia nada da venda.

Tinha ido comprar pão. Falou com Seu Messias, dono da venda. Perguntou quanto estava o pão. Mais caro. O homem tentou explicar: disse que o trigo aumentou 23% e consequentemente a farinha. Mas Maria , que não era dada a porcentagens e importações, simplesmente rejeitou o pão, balançando a cabeça de um lado para o outro como quem quer se convencer de que o pão está absurdamente caro e que tem o direito de não comer. Tentou ver outra coisa. Pegou um pacote de bolachas. Torceu para não serem feitas de trigo também. 23% era muito, sabe-se lá o que queria isso dizer. Não eram. Eram de água e sal. Ainda assim caro. Não levou nada. Melhor comprar outros víveres na feira do dia seguinte. Só por um dia não faria mal. Seguiu seu caminho.

No meio do caminho, perto do juazeiro que servia de ponto de referência à entrada da roça, sentiu o pé tocar numa superfície lisa. Escorregou. Quase caiu no chão. Ajeitou-se contrariada com o fato de ter escorregado: era período de seca, não tinha lama para fazê-la cair. Procurou o objeto causador do susto. Achou.

No chão, coberta pela terra seca, havia uma revista. Sem a capa. Uma daquelas revistas de cosméticos, daquelas de revendedora. Pegou do chão. Tirou o excesso de terra com a mão direita, que limpou no vestido. Olhou bem para a revista. Na primeira página uma mulher loira, olhos muito claros, dentes incrivelmente brancos e alinhados, cabelos bem lisos, pele lisinha. Na pálpebra da mulher da foto, cores. Iam do preto a um rosa claro. Um pouco de cor-de-rosa também nas bochechas. Cílios longos e fartos. E embaixo inúmeros símbolos diminutos, difíceis de enxergar, que exigiam de Maria não só a vista perfeita mas também, e principalmente, a alfabetização. A ela faltavam ambos.

Virou a página. Mais símbolos. Provavelmente explicando aquelas cores. Mais uma mulher. Desta vez morena. Cabelos de um cacheado perfeito. Brilhoso. Nos olhos só um pouquinho de cor. Nas bochechas um pouco de cor-de-rosa também, dessa vez mais puxado pro laranja. Em destaque as mãos: um esmalte vermelho escuro, brilhante e cremoso, tornava as unhas obras de arte. Reparou bem nas unhas. Olhou as suas próprias. Eram sem cor.

Resolveu pegar a revista e voltar pra casa, escondendo o objeto achado na roupa para que ninguém visse.

Ouviu o alvoroço das galinhas quando passou pelo terreiro. Viu todas as roupas muito brancas estiradas no varal balançando ao sabor do vento. Sentiu o cheiro de sabão de coco ao passar por elas. Viu, ao longe, o curral. Passou direto para dentro de casa.

E agora estava ali num dos únicos cômodos. Tirou a revista do esconderijo. Folheou mais uma vez. Tentou lembrar da última vez que olhou-se no espelho. Não lembrou. Resolveu que estava muito esquecida das coisas. Talvez não. Talvez só estivesse um pouco esquecida de si. Ainda com a revista na mão começou a procurar um objeto. Abriu as duas gavetas do móvel antigo. Nada. Procurou mais um pouco. Onde teria guardado? Sabia que tinha um. Lembrou-se. Abriu a mala de couro antiga. Puxou de dentro
Era um espelho de borda laranja desses que vendem na feira. Barato, mas igualmente eficaz. No canto esquerdo inferior faltava um pequeno pedaço, deixando à mostra uma parte do papelão que cobria a parte de trás do objeto.

Depois de muito tempo, como que criando coragem, olhou-se.

Em vez de se perguntar como surgia aquela imagem, como sempre se perguntava, tentou descobrir o porquê de ter passado tanto tempo sem se enxergar. Não era questão de vaidade, mas de ter consciência de si todos os dias, de ter prova de sua existência. Nunca mais havia se olhado. Era uma mulher e não se lembrava mais de ter visto aqueles olhos castanhos, em cujo entorno aglomeravam-se as rugas. As bochechas sequinhas, murchas, também marcadas, cujas sardas denunciavam exposição demasiada ao sol. Na boca também havia rugas e nos próprios lábios secos. Parecia que seu rosto ressecava como a terra, admitindo um aspecto único, como se tivesse sido cortado. E fora. Pelo tempo e pelo esquecimento.

Emocionou-se por ter dado conta de si. Por se conhecer. Era uma mulher e esta (re)descoberta lhe causava grande satisfação. Com os olhos acenou para si mesma. Lembrou-se da revista e folheou mais uma vez. Era um tanto diferente das moças. Mas igualmente era mulher. Observou-se. Ensaiou uma pose igual à de uma delas. Faltava algo. Sorriu, deixando ver os dentes irregulares e amarelados. Decidiu que não eram feios, só mal cuidados. Gostou da aparência da mulher do espelho. Um ar de senhorio embora fadada a servir. Tinha olhos que pareciam certos de tudo: da hora certa de tanger as galinhas, da melhor época pra plantar o sisal, do melhor sabão para manter tão perfumadas e brancas as roupas gastas. Gostou de ver que sabia das coisas.

Procurou mais um objeto perdido. Novamente achou. Um batom rosa escuro. Testou. A cor não passou para os lábios, tamanha a secura do cosmético. Passou nas costas da mão. Agora sim. Levou à boca. Sentiu a maciez do batom percorrendo sua boca e preenchendo os sulcos daqueles lábios secos. Olhou-se no espelho. Tirou o excesso.

Sentiu um par de olhos pousados sobre si. Viu o pequeno próximo à cortina que servia de porta. Ele perguntou por que a mãe fazia aquilo.

- Porque eu sou uma mulher, meu filho. - respondeu Maria. E então foi tanger as galinhas.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Matrimônio e casamentos.

Nós nos prometemos amor, respeito e fidelidade. A companhia um do outro nos momentos de saúde e doença, riqueza e pobreza e um laço que duraria até a morte. Em verdade assumimos um compromisso, com todas as características que só um compromisso podia ter: era inadiável, era sério, era pesado. E assumimos isto diante daquela plateia de pessoas desconfortáveis em suas roupas de festa e penteados extravagantes. Aquele velho de batina à nossa frente e uma estátua de Jesus Cristo observavam a cena e dela participavam: um pelo compromisso da celebração - e que nos custara uma pequena fortuna - e o outro simplesmente porque alguém o colocara ali.

E foi assim que "contraímos matrimônio", termo jurídico totalmente correspondente com a seriedade daquele ato solene. Eu feliz, mas sem lágrimas. As pessoas todas viram e, se o padre estivesse certo, o próprio Deus estaria vendo duas pessoas manifestarem desejo tão sólido de serem marido e mulher. Mas eu não. O meu desejo mesmo era de tirar aquele vestido, que me oprimia tanto quanto a densa solenidade. Ainda assim comprei o tal vestido numa das promoções mais fajutas que já tive oportunidade de presenciar. Era tão pesado quanto o rombo no cartão de crédito.

Não pensem que aqui encontra-se uma mulher dissimulada, que fingiu gostar de um homem - oh, pobre rapaz - para com ele se casar e assegurar a meação. Não. Eu o amava e estávamos juntos há tanto tempo! Eu apenas questionava o porquê do matrimônio em si e da religiosidade que não estava presente em nenhum de nós. Decerto Deus, vendo a cena, teria exclamado: "Tomem vergonha, não sabem nem rezar um pai-nosso. Por que vieram fazer essa promessa perante Deus, se quase nunca me procuram?"

E parecia mesmo sem sentido. Era bonito, confesso. Flores brancas em todas as filas. Iluminação que colocava em evidência a igreja do séx. XVII ornada em ouro. A pesar sobre nossas cabeças, lustres magníficos. Do lado direito uma pequena orquestra. Mas, em que pese bonito, opressor. Incomodava-me ser o centro das atenções - eu, que nunca tivera problema com isso. Mas fizemos a cerimônia: 2 avós nervosas fizeram questão, uma de cada lado da grande família que agora se formava.

Não é que eu não queria me casar, ou não o amasse, ou não desejasse passar todos os dias ao lado dele. Eu desejava. Eu sonhava com isso! Queria dividir todos os pequenos problemas: a pia que quebrou, a margarina que faltou ou mesmo o ciúme daquela mulher decotada numa das primeiras fileiras da cerimônia e que agora olhava pra ele como quem pensa: " Que inveja da noiva!". Eu sempre quis tudo isso. O que eu não queria era ver uma coisa tão simples - o sentimento e a vontade de estar junto - se transformar em algo desconfortável, dispendioso e, permitam-me os amantes da cerimônia, chato.

E era simples. Era uma vela em vez de um lustre pesado! Era uma única rosa em vez de bolas de flores e daquele buquê, ambos caros. Era uma pulseira de palha comprada naquela viagem à praia, em vez da aliança de grosso calibre que agora deveríamos ostentar nos lugares públicos. Era ele lambendo do meu dedo um pouco do brigadeiro de panela que queimara (mas ele não sabia disso) e não docinhos finos de damasco com amêndoas e castanhas, cuja centena me custara mais que a panela com a qual eu poderia fazer meu brigadeiro por toda a vida.

Até porque eu já tinha me casado com ele outras tantas vezes: naquela noite no balanço da rede em frente ao mar, com uma lua que parecia inventada; naquele dia em que nós fomos ao almoço de família e ele, cansado, dormira em meu colo ressonando tranquilo; na ocasião em que eu o surpreendera escondendo um objeto quebrado da casa só pra não me ver zangada. Nos casamos sobretudo na cama. Todas as noites. E no jardim jogando bola. Nos casamos uma vez no carro e outra vez num avião. Em segredo, mas casamos.

Ele sabia disso, tanto que uma vez um de nossos amigos perguntou:
- Tantos anos de namoro e não casaram ainda?
- Mas claro que já casamos! - disse ele.
- Quando?
- Todo dia.

E por já me ver tão casada não imaginava o porquê de toda aquela pompa pra subverter nossos sentimentos mais leves. Por isso fiquei tão feliz quando acabou. Quando o padre disse: "Vão em paz e que o Senhor os acompanhe". Quando percebi que, embora dura naquele vestido que parecia pesar duas toneladas, não haveria mais a pressão das avós e dos pais. Por mim aliás, continuaríamos "amigados", termo pejorativo que minha sogra sempre falava e com o qual eu sempre tivera afinidade: a amizade, mais que o amor, perdura e se reinventa.

Agora, enfim, com o final da cerimônia, poderíamos continuar nos casando. As testemunhas seríamos apenas nós dois, em qualquer lugar do mundo, com qualquer roupa ou sem roupa. A comida? Qualquer uma. Talvez aquela macarronada, a única coisa que sei fazer - para desespero de minha sogra. Nos prometeríamos mais do que fidelidade e mais do que amor. Nos prometeríamos em segredo, cada um com seu sentimento, o que quiséssemos.

E naquele dia de maio, no local de festas, a última provação pela qual eu deveria passar, ele me puxou para um canto longe de todos com uma garrafa de champagne na mão, serviu duas taças, me deu um beijo apertado e disse que me amava. A euforia era tanta que bebemos tudo de um só gole. E aí sim nos casamos pela primeira vez naquele dia.