segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O binóculo.

A vizinha tinha brigado com o namorado. Há 6 dias não cantava para as flores da varanda. Ela só cantava após noites de amor bem românticas, aquelas em que a luz do apartamento dela ficava bem fraquinha - quando se apagava tudo não: aí ela estava só dormindo. Depois dessas noites ela também dançava com a vassoura enquanto cuidava dos afazeres domésticos. Uma das maiores curiosidades era a música que cantava. Qual seria? Não importa. Agora ela não cantava mais. Torceu para que voltasse a cantar: as flores deviam estar mais tristes.

Enquanto isso, no prédio do lado, mais precisamente no apartamento do 5º andar voltado para a torre do edifício empresarial, uma família séria tomava café e se preparava para o dia. O marido ajeitava a gravata e gritava com o filho pequeno que acabara de jogar a tigela de cereal no gato, que escapou por um triz. O marido também gritou com a esposa, que estava se arrumando pro trabalho e passando batom em vez de olhar o filho. A esposa gritou com o marido, rebatendo. E o filho gritou com o gato. Não, minto, miou para o gato. Só o gato não gritava naquela casa. E o marido nem desconfiava que o gato presenciava a traição da esposa. A sorte era que o gato não gritava.

A banca de revista da esquina estava falindo. Ninguém mais queria comprar letras. Todo mundo tinha as letras que quisesse numa tela de computador. E estas só falariam o que queriam ouvir. Na banca não. Os jornais eram expostos e mesmo se você desviasse o olhar já teria sido capturado pela informação, para azar dos otimistas que não queriam saber dos escândalos. Talvez as pessoas achem que informações em papel, depois de lidas ficam só guardadas. Depois de guardadas ficam mantidas. E onde ficaria o desenvolvimento sustentável? Pena que as pessoas esquecem o que dá pra fazer com notícias velhas: recortar letras pra fazer cartas anônimas sem medo de se reconhecer a caligrafia ou simplesmente relê-las para lembrar que aquilo aconteceu e passou. É bom ter uma prova irrefutável de que o tempo passa mesmo.Não dá pra confiar nesses relógios.

E isso era a vida dele. Observar pessoas através de um binóculo da janela do 6º andar. Gostava de descobrir as histórias delas. Gostava de conhecê-las mesmo à distância, dada a impossibilidade de descer. O que não gostava era quando o achavam um inválido. Não é que ele estivesse preso em casa, condenado a ficar naquela cadeira de rodas pra sempre, sozinho. Foi assim só até comprar o binóculo. Depois não. Depois passou a ter companhia.

Fato é que o binóculo caiu do 6º andar naquela noite, quando não via atividade alguma no apartamento da vizinha - aquela das flores- e presumia um rompimento. Afastou-se da varanda descuidado e triste e foi aí que o binóculo caiu, fazendo um barulho quanse abafado para ele, mas sonoro demais para a rua, à noite. Que lástima! Como enxergar as pessoas agoras? Como saber se a vizinha cantava ou não, que cor de roupa usava, se terminara mesmo o namoro ou apenas dera um tempo? Como saber se o gato ainda estava vivo depois de ter escapado das malcriações do menino? Como saber a reação das pessoas às notícias? Haveriam ainda notícias?

A vida sem binóculo seria o caos. Sem pernas que prestassem era até tolerável: os olhos iam até onde queria, com a ajuda do binóculo. Agora estava inerte. Perdera as pernas que substituíam com perfeição as outras, já inertes há muito tempo. E já que vivia sozinho não tinha como mandar alguém providenciar novas "pernas". Teria de viver sem elas.

Talvez devesse sair de casa e conhecer as pessoas de perto. Quem sabe conheceria a vizinha das flores, a vizinha adúltera e o dono da banca de revistas. Deveria descer para providenciar outro binóculo e comprar a notícia do dia, só pra marcar aquele momento. Até poderia descer mesmo: tinha elevador e tinha uma cadeira de rodas. Mais que suficiente pra ir até a banca de revista. Mas o que o estava impedindo? Talvez o fato de saber da realidade das coisas, em vez de meramente supor situações. A realidade nem sempre se presta a nossas imaginações. Agora entendia as pessoas que se esquivavam das notícias do dia. Espertas.

Decidiu fazer como elas: entrou na internet. E lá encontrou um binóculo por um bom preço. Entregaram em casa. Mal pôde esperar: foi até a varanda e esquadrinhou a cena: na sala da vizinha das flores sombras se revelavam nas cortinas, estavam contra a luz de algumas velas. Era um jantar. Talvez tenha reatado, mas talvez seja outro amor. Não, tinha reatado. Quem canta com as flores por uma pessoa, jamais cantará por outra assim tão rápido. Decidiu que a vizinha reatou. As flores estariam mais felizes amanhã e a vassoura mais eficaz depois de tanta dança.Recolheu as pernas novas e dormiu em paz.








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