domingo, 9 de setembro de 2012

A política, os bois mortos e 5 galinhas.


Sou de uma cidade do interior chamada Campo Formoso, aqui na Bahia. Em cidades pequenas do interior a gente sabe que poucas coisas chamam tanta a atenção e movimentam o povo como as eleições. São João talvez. Mas eleições trazem um quê de Copa do Mundo: torcida, briga, aposta e, em geral, apenas dois times disputando. Meus pais sempre apoiaram um dos lados da disputa, assim como todo mundo. Escolhe-se cedo em quem se vai votar e famílias inteiras votam no mesmo candidato. Este ano meu pai candidatou-se ao cargo de vereador, coisa que ele sempre gostou e que desde 1994 mantém como sonho não realizado - em 94 ele foi suplente da Câmara de Vereadores. 

Em Campo Formoso, um dos grupos políticos, a que meus pais fazem oposição, se mantém no poder por muito tempo, uns 46 anos. Apenas uma vez o grupo da oposição esteve no poder.

Assim como nas demais cidades do interior baiano, aqui, nas eleições, os candidatos visitam as comunidades rurais. Poucas pessoas sabem, então eu tenho o prazer e o dever de informar que Campo Formoso é um dos maiores municípios da Bahia, o 8º maior, para ser mais precisa. Embora a sede da cidade seja pequena, a zona rural é enorme: há lugares em que fica mais perto viajar por Juazeiro pra chegar. Alguns povoados chegam a 100km de distância da sede. Tudo isso com 90% do caminho em estrada de chão.

Depois dessa pequena introdução começa o relato de verdade.

Fomos visitar um povoado do interior chamado "Laje dos Negros", remanescente quilombola. Acordamos um tanto cedo e equipamos o carro: água, bonés, comida (salgadinhos e biscoitos), roupas de frio - por causa da alta amplitude térmica diária, termo que eu não deixaria de falar pois aprendi em Geografia e acho bonito. Levamos tudo. O carro ficou pesado.

Iniciamos a viagem.

Se tem uma coisa que eu gosto em viajar pelo interior é a paisagem. Fico observando tudo: o povo que a gente encontra andando pelo "acostamento", o tipo das casas, o tipo de vegetação que, à medida em que nos afastamos da sede, vai adquirindo uma coloração mais cinzenta e um aspecto mais seco: a caatinga se revela a cada metro percorrido. O chão, que antes parece esbranquiçado, agora vai ficando cada vez mais vermelho. E tudo vai ficando mais bonito, penso eu.

Mas a beleza, neste caso, não necessariamente é alegre. Pelo contrário. A beleza da caatinga e suas características mais evidentes - as árvores secas, o solo rachado, o mandacaru - fazem par com a calamidade da seca. Observando o cenário do sertão me deparo com sentimentos dúplices: meus olhos não param de contemplar a beleza das paisagens, mas meu cérebro, em contrapartida, me lembra a todo instante que nem sempre o que é bonito é bom.

Não fosse a poeira eu abriria o vidro do carro para sentir o cheiro da terra e ouvir melhor o barulho gostoso que os galhos fazem ao estalar, ou que o gado faz ao pisar na vegetação seca. As barrigudas, árvores cujos troncos parecem "grávidos" também vão tomando lugar. Tudo seco. De repente, visualizo uma cena que me enche de tristeza e vergonha.

No chão, dois bois mortos. Um em já avançado estado de decomposição. Não tinha mau cheiro, apenas uma carcaça seca. O outro poderia ter morrido no mesmo dia: não houvesse a carcaça do lado, poderia alguém até imaginar que estava dormindo. Mas quedava no chão inerte e inanimado. Não tirei meus olhos da tragédia. Meu irmão, que dirigia, acelerou o carro, mas continuei olhando para trás, como que para verificar se o boi, na verdade, não levantava e saía andando. Não levantou. E eu sabia que não ia fazê-lo.

Me senti ridícula. Ridícula. A palavra é essa. Ridícula por tantas vezes reclamar de tantas coisas que pareciam não fazer o menor sentido perto do que as pessoas sofrem. Um boi morto, na minha atual condição, pode não significar nada, mas pra quem só tem um boi morto significa muito, significa tudo. Como eu sou ridícula e limitada. Levei um bom tempo me chamando de ridícula por todas as vezes em que eu reclamei de não ter dinheiro pra ir ao cinema. Me senti ridícula, sobretudo, por não saber nada do que é a vida e precisar de uma cabeça de boi morto pra me mostrar que as reclamações mais fúteis não são dignas de serem pronunciadas ante o silêncio dos que sofrem a incerteza da comida e da água.

Lá no povoado de Laje dos Negros tudo estava animado. O comício arrumado. Gambiarra, som, festa. O povo, entoando e dançando a música do candidato, estava feliz. Sem querer entrar no mérito da política campo formosense, que muito me deixa desanimada, ninguém jamais fizera nada por aquela comunidade. Poucas ruas são calçadas. A rede de esgoto é recente. A pobreza é grande. A desigualdade e a falta de oportunidade são quase marcas do local. Mas a carência daquele povo é, sobretudo, de atenção. De pessoas que se importem de fato.

E aí eu me vejo reclamando de não ter dinheiro para ir a uma festa, enquanto o povo de lá briga a cada disputa eleitoral por aquele que lhe promete maior número de cisternas. É água. É básico. É sobrevivência. E em cada família a esperança de que um lado ou outro venha a prover o que se necessita. E fico mesmo é emocionada quando o "Nêgo Brás", senhor muito pobre que sempre acompanhou meus pais na política, diz que matou 5 galinhas pra comermos após o comício.

Talvez nem o Brás tivesse as 5 galinhas. Talvez sejam as últimas galinhas dele. Assim como aqueles foram os últimos bois de alguém. A morte das galinhas significa mais um sacrifício com esteio na esperança. Era a própria esperança cozida e repartida em peito, coxa, pescoço. Quanto aos bois, ao contrário, nada de simbólico há em suas mortes. Serviram apenas como constatação. De que somos ridículos. De que a ineficiência machuca. De que não só de esperança vive o gado. Nem o povo.


P.S. Na política, que vença aquele que come as galinhas sem deixar de pensar nos bois mortos.

3 comentários:

  1. Mari, duas coisas me chamaram a atenção nesse seu texto. A primeira: sua habilidade em passar tão bem essa mensagem, mesmo tendo como premissa uma realidade triste e seca. A segunda: poder apreciar o fato de existirem pessoas que, diante de situações assim, são capazes de refletir, se questionar e, sobretudo, se dispor a mudar a ordem das coisas - seja com um texto crítico, seja com medidas mais diretas. Cenas assim assustam, mas assusta ainda mais quem opta - por ser mais fácil - ignorá-las. Que possamos, sempre, comer as galinhas sem deixar de pensar nos bois mortos!

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  2. Mari, parabéns pelo texto. Eu não sou de parar para ler textos longos em blogs, mas sua escrita, mesmo ao descrever uma realidade triste, é uma delícia. A gente vai lendo, lendo, lendo e se envolvendo de tal maneira que, quando acaba, quer ler mais e mais. Parabéns! Virei sua fã!
    Beijo,
    Fina.

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    1. Valeu, Fina!!! Meu blog tem os melhores leitores!!! hehe. Também adoro o seu...sou frequentadora assídua! Beijão!

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