sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Maria no espelho.




Nenhum dos meninos entendeu nada quando Maria da Anunciação, depois de ter demorado tanto tempo, chegou em casa e entrou direto sem se demorar no terreiro. Na frente da casa, as galinhas se amontoavam, subindo no pequeno batente e alçando, logo em seguida, voos curtos. O alvoroço estava instalado e por mais que tal fato pudesse passar despercebido para um expectador qualquer, era por demais estranho que Maria não fosse tanger as aves. Que teria acontecido? Era o que se perguntavam dois pares de olhos magros e infantis com peculiar assombro.

Nunca a mãe tinha chegado em casa da venda naquele estado. Sem reação. Sem tanger galinhas. Aliás, não apenas a providência quanto às aves fora deixada de lado: ela também deixara de retirar as roupas do varal e varrer o terreiro que agora emporcalhava-se com os dejetos dos galináceos. Sequer direcionara um olhar aos pequenos, nem de pena nem de pesar, como costumava fazer quando não trazia nada da venda.

Tinha ido comprar pão. Falou com Seu Messias, dono da venda. Perguntou quanto estava o pão. Mais caro. O homem tentou explicar: disse que o trigo aumentou 23% e consequentemente a farinha. Mas Maria , que não era dada a porcentagens e importações, simplesmente rejeitou o pão, balançando a cabeça de um lado para o outro como quem quer se convencer de que o pão está absurdamente caro e que tem o direito de não comer. Tentou ver outra coisa. Pegou um pacote de bolachas. Torceu para não serem feitas de trigo também. 23% era muito, sabe-se lá o que queria isso dizer. Não eram. Eram de água e sal. Ainda assim caro. Não levou nada. Melhor comprar outros víveres na feira do dia seguinte. Só por um dia não faria mal. Seguiu seu caminho.

No meio do caminho, perto do juazeiro que servia de ponto de referência à entrada da roça, sentiu o pé tocar numa superfície lisa. Escorregou. Quase caiu no chão. Ajeitou-se contrariada com o fato de ter escorregado: era período de seca, não tinha lama para fazê-la cair. Procurou o objeto causador do susto. Achou.

No chão, coberta pela terra seca, havia uma revista. Sem a capa. Uma daquelas revistas de cosméticos, daquelas de revendedora. Pegou do chão. Tirou o excesso de terra com a mão direita, que limpou no vestido. Olhou bem para a revista. Na primeira página uma mulher loira, olhos muito claros, dentes incrivelmente brancos e alinhados, cabelos bem lisos, pele lisinha. Na pálpebra da mulher da foto, cores. Iam do preto a um rosa claro. Um pouco de cor-de-rosa também nas bochechas. Cílios longos e fartos. E embaixo inúmeros símbolos diminutos, difíceis de enxergar, que exigiam de Maria não só a vista perfeita mas também, e principalmente, a alfabetização. A ela faltavam ambos.

Virou a página. Mais símbolos. Provavelmente explicando aquelas cores. Mais uma mulher. Desta vez morena. Cabelos de um cacheado perfeito. Brilhoso. Nos olhos só um pouquinho de cor. Nas bochechas um pouco de cor-de-rosa também, dessa vez mais puxado pro laranja. Em destaque as mãos: um esmalte vermelho escuro, brilhante e cremoso, tornava as unhas obras de arte. Reparou bem nas unhas. Olhou as suas próprias. Eram sem cor.

Resolveu pegar a revista e voltar pra casa, escondendo o objeto achado na roupa para que ninguém visse.

Ouviu o alvoroço das galinhas quando passou pelo terreiro. Viu todas as roupas muito brancas estiradas no varal balançando ao sabor do vento. Sentiu o cheiro de sabão de coco ao passar por elas. Viu, ao longe, o curral. Passou direto para dentro de casa.

E agora estava ali num dos únicos cômodos. Tirou a revista do esconderijo. Folheou mais uma vez. Tentou lembrar da última vez que olhou-se no espelho. Não lembrou. Resolveu que estava muito esquecida das coisas. Talvez não. Talvez só estivesse um pouco esquecida de si. Ainda com a revista na mão começou a procurar um objeto. Abriu as duas gavetas do móvel antigo. Nada. Procurou mais um pouco. Onde teria guardado? Sabia que tinha um. Lembrou-se. Abriu a mala de couro antiga. Puxou de dentro
Era um espelho de borda laranja desses que vendem na feira. Barato, mas igualmente eficaz. No canto esquerdo inferior faltava um pequeno pedaço, deixando à mostra uma parte do papelão que cobria a parte de trás do objeto.

Depois de muito tempo, como que criando coragem, olhou-se.

Em vez de se perguntar como surgia aquela imagem, como sempre se perguntava, tentou descobrir o porquê de ter passado tanto tempo sem se enxergar. Não era questão de vaidade, mas de ter consciência de si todos os dias, de ter prova de sua existência. Nunca mais havia se olhado. Era uma mulher e não se lembrava mais de ter visto aqueles olhos castanhos, em cujo entorno aglomeravam-se as rugas. As bochechas sequinhas, murchas, também marcadas, cujas sardas denunciavam exposição demasiada ao sol. Na boca também havia rugas e nos próprios lábios secos. Parecia que seu rosto ressecava como a terra, admitindo um aspecto único, como se tivesse sido cortado. E fora. Pelo tempo e pelo esquecimento.

Emocionou-se por ter dado conta de si. Por se conhecer. Era uma mulher e esta (re)descoberta lhe causava grande satisfação. Com os olhos acenou para si mesma. Lembrou-se da revista e folheou mais uma vez. Era um tanto diferente das moças. Mas igualmente era mulher. Observou-se. Ensaiou uma pose igual à de uma delas. Faltava algo. Sorriu, deixando ver os dentes irregulares e amarelados. Decidiu que não eram feios, só mal cuidados. Gostou da aparência da mulher do espelho. Um ar de senhorio embora fadada a servir. Tinha olhos que pareciam certos de tudo: da hora certa de tanger as galinhas, da melhor época pra plantar o sisal, do melhor sabão para manter tão perfumadas e brancas as roupas gastas. Gostou de ver que sabia das coisas.

Procurou mais um objeto perdido. Novamente achou. Um batom rosa escuro. Testou. A cor não passou para os lábios, tamanha a secura do cosmético. Passou nas costas da mão. Agora sim. Levou à boca. Sentiu a maciez do batom percorrendo sua boca e preenchendo os sulcos daqueles lábios secos. Olhou-se no espelho. Tirou o excesso.

Sentiu um par de olhos pousados sobre si. Viu o pequeno próximo à cortina que servia de porta. Ele perguntou por que a mãe fazia aquilo.

- Porque eu sou uma mulher, meu filho. - respondeu Maria. E então foi tanger as galinhas.

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