Não sei se foi por natureza mesmo ou apenas por vontade de ser diferente, mas o fato é que eu sempre detestei bonecas. Quando pequena, gostava mesmo era de jogos, quebra-cabeças, pingue-pongue, livros e, claro, o futebol - que é minha atividade favorita até hoje. Boneca não. Boneca eu detestava e jogava fora. Principalmente aquelas tipo "bebês". Nunca me agradou a ideia de "brincar" de cuidar de um bebezinho.
Para não dizer que não falei das flores, tinha boneca tipo Barbie, uma só, e que eu usava mais para fazer parte da turma de amiguinhas do que pra brincar mesmo. Nas brincadeiras delas, sempre meio chatas, eu nunca fui a esposa do Ken, que fica em casa cuidando dos filhos e esperando o marido chegar do trabalho. Eu sempre era a irmã dessa aí, a solteira que trabalhava e tinha um carro.
Na minha infância do interior fui sempre uma criança muito livre e se não gostava de boneca era porque andava muito ocupada subindo em árvore, jogando bola na rua ou brincando de esconde-esconde. Poucas pessoas entendiam essa minha predileção por atividades esportivas ou que mexiam com a mente, o que me rendeu algumas decepções. Natal de 1998: meu tio que chegara dos Estados Unidos, trouxe presente para mim e para meus irmãos. Eu ganhei uma boneca que fazia som de beijo. Eles ganharam nada mais nada menos que dois carrões de controle remoto e que era a coisa mais legal que eu já tinha visto!
Com o tempo eu fui vendo que a diferença entre meus irmãos e eu não era apenas nos presentes. No tratamento em casa por vezes eu tinha que ajudar minha mãe com as tarefas domésticas enquanto meus irmão brincavam e sempre que perguntava o porquê de só eu ter que ajudá-la meu pai dizia: - Porque você é mulher.
Ouvindo assim parece mais estarrecedor, mas à época, como eu nem tinha muito o que pensar, acabava ficando só com raiva mesmo. Hoje eu vejo que o assunto é um pouco mais profundo que isso.
Minha mãe, por exemplo, sempre trabalhou dentro e fora de casa. Era responsável por tudo, no tempo em que não tivemos empregada doméstica. Desde a arrumação de todos os quartos até perguntar se já tínhamos feito o dever de casa. E se apenas eu tinha de ajudar com algumas tarefas domésticas, hoje agradeço tanto pelo fato de ter aprendido a me virar quanto pelo fato de conviver com a pessoa sensacional que mainha é.
Depois de mais um tempo, no início da adolescência, tudo ficou mais claro - e ao mesmo tempo incompreensível:
"Mariana, venha me ajudar a fazer o almoço."
"Mariana, você não pode ir pra festa com seus irmãos. Seu irmão pode porque é homem. Você é menina."
"Mariana, sente direito."
"Mariana, se você continuar jogando bola vai ficar toda marcada, com as pernas feias."
"Mariana, você não pode namorar. Só depois dos 15 anos e olhe lá!"
E de tanto "Mariana isso", "Mariana aquilo" eu fui incorporando os ditames, as regras, o costume de nossa sociedade machista - mas que não pode ser chamada assim porque as pessoas insistem que não é. Talvez porque se limitam a justificar seus posicionamentos com a singela frase "Mas homens e mulheres SÃO diferentes!". Nisso concordo. São mesmo. Diferenças naturais, biológicas, fisiológicas. Mas diferença de intelecto e de caráter não. Isso é uma coisa só pra ambos os sexos.
Para quem acha que não é machista, proponho um teste simples.
Ande um pouco pelos corredores de brinquedos da Le Biscuit ou das Lojas Americanas na parte de " brinquedos de meninas", aquela parte em que tudo tem que ser necessariamente rosa. Isso. Ande por lá. Olhe os brinquedos.
Dia desses eu fui com minha mãe e minha infância toda voltou à tona. De um lado a outro do corredor uma infinidade de brinquedos que as empresas deveriam ter vergonha de vender: piazinhas de prato pra lavar, fogãozinho, jogo de panelinha, ferrinho de passar e muitos bebês.
A voz amedrontadora gritava no meu ouvido:
"Mariana, cuide do bebê!"
"Mariana, faça comidinha na panela!"
"Mariana, passe a roupa!"
"Mariana, lave os pratos!".
Claro que as crianças não tem culpa alguma em querer brinquedos desse tipo. Deve haver algo de divertido nessas atividades (o que até hoje eu tento descobrir) ou simplesmente devem se sentir melhores ao fazer uma coisa de adulto. Além disso, os brinquedos são representações da realidade do mundo dos adultos. Os super-heróis são adultos e também as princesas. Os carrinhos são representação dos pais. Mas o que sobra pras mães é a representação machista dos afazeres domésticos e suas filhas, coitadas, tem de aprender desde cedo o que devem fazer.
Hoje, no programa "Encontro com Fátima" o assunto era sobre mulheres em posição de liderança. E todas foram perguntadas sobre como era liderar homens, e além disso homens mais velhos.
Aí eu percebi que ninguém jamais perguntou a um homem como era liderar uma mulher. Para eles é "natural". Para nós não, embora sejamos maioria em diversas profissões.
E o corredor da Le Biscuit, que se limitava a alguns metros, vai mais além do que a gente pensa...