domingo, 24 de novembro de 2013

Rascunho definitivo.

Escrever deveria ser sempre esse caminhar no escuro da alma. Essa coisa assustadora que de repente se ilumina em alguma vereda do coração.
Escrever deveria aliviar a dor como um pensamento alegre. E não deveria haver pessimismo em escrever.
Se escreve, sobretudo, aquilo que se quer e, a não ser que o que se escreva seja uma carta suicida, nada pode ser escrito com tudo que há de ruim.
Nessas horas em que sem inspiração me desespero, em que penso sobre todas as coisas já escritas e busco um novo velho significado. Nessas horas é que deixo as palavras lançarem-se em tempestade sobre o papel branco, me propondo um rascunho que não pode ser consertado. Nessas horas é que deixo as palavras cumprirem sua sinas. Mostrarem-me porque vieram.
Talvez para acalmar as ânsias desse coração que tem sede. Talvez para afugentar todos os medos e me transformarem de dentro pra fora toda e de uma só vez. Talvez porque liberdade seja isso e as palavras precisam enfrentar a mesma desordem que meus cabelos sentem ao cair sobre o papel, formando uma senda através da qual vejo todo o resto.
Agora é que, engraçado, me vejo como um objeto pelo qual as palavras passam sem embaraço; algumas se rindo de mim, outras me provocando.
Percebo que acabo de escrever uma palavra em letra cursiva muito feia e que já nem sei o que era nem o que eu mesma queria dizer.
Não me importa: basta apenas seguir o fluxo do branco no papel, onde já se formam sombras do que foi escrito no verso.
Importante esta missão de poder escrever sem pensar, tão diferente do dia a dia em que sequer nos permitimos amar sem pensar - logo amar, que apaga qualquer vestígio de raciocínio.
Pois continuo escrevendo em assombrosa velocidade, deixando que gritem as palavras a liberdade que não encontraram em mim. Elas, que até então estavam enclausuradas nesse peito. Voem! Cantem! Assustem!
Nenhuma delas é minha, em verdade sinto como se tivesse acabado de psicografá-las: uma luz misteriosa sobre minha cabeça ilumina o que se escondia na alma. A cabeça pende e o corpo dança, estático apenas por fora. Talvez o corpo é que não esteja tão acostumado a deixar fluir e por isso o estranhamento. Mas o coração está.

Foi ele que escreveu agora.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Os deuses do Olimpo e a maior de todas as virtudes.

"Dizem que os deuses, tendo se reunido no Olimpo para tratar dos assuntos celestiais, começaram a se perguntar sobre as virtudes mais cultuadas entre os humanos. Cada um dos deuses falou das virtudes que tinham seus protegidos, ressaltando suas qualidades e o quanto eram cheios de fé. E começaram a discordar uns dos outros, afirmando que a melhor das virtudes encontrava-se neste ou naquele homem. Instalou-se uma pequena confusão e Júpiter fora chamado a resolver o impasse.

Júpiter encontrava-se em uma posição difícil. Como decidir qual das virtudes era melhor, se cada humano possuía em si inúmeras qualidades e cada deus elegia seu protegido como o mais virtuoso?

Certo de que a solução imediata poderia desagradar aos demais, ordenou Júpiter que se realizasse um torneio. Aquele que lhe apresentasse a maior das virtudes ganharia a imortalidade. No entanto, os que fracassassem estariam condenados ao reino dos mortos. Com esta medida, esperava Júpiter que os deuses desistissem de expor a perigo seus humanos mais queridos, abandonando a disputa e restabelecendo a harmonia agora abalada no Olimpo.

Não foi o que aconteceu, todavia. Confiantes no julgamento justo que presenciariam e nas virtudes dos homens, os deuses mantiveram a ideia de se realizar o grande concurso.

No dia do torneio os ventos eram todos favoráveis. Netuno amainou as águas, a fim de que nada perturbasse a tranquilidade dos deuses e dos humanos postos a prova. E eram muitos. De toda a Grécia vinham jovens e velhos, homens e mulheres, ricos e pobres, certos de possuírem a maior de todas as virtudes.

Uma jovem muito bela apresentou-se. De fato a beleza ressaltava aos olhos e parecia que em toda a terra, e mesmo no céu, ofuscava aos demais. Os deuses ficaram maravilhados e Afrodite, com ar triunfante, pensou ter vencido o torneio sua protegida. Mas Júpiter atalhou dizendo que não se convencia de que a maior das virtudes fosse algo tão efêmero. Ordenou que mais pessoas viessem.

Um deles apresentou-lhe a virtude da sabedoria. Outro, da paciência. Outro, da bondade. E assim sucessivamente. Coragem, inteligência, alegria foram despejados aos pés dos deuses. Mas Júpiter ainda não tinha sua escolha. Restavam agora uns poucos humanos. E nenhum fez o deus dos deuses aceder a seu favor.

Certo de que seria impossível escolher uma só, entre todas aquelas virtudes, Júpiter já se preparava para admitir o final de um torneio em que não haveria vencedor.

Até que um último candidato surgiu por entre a folhagem. Carregava nos braços o corpo inanimado de uma mulher. Nos olhos, lágrimas muito numerosas brotavam, deixando um rastro úmido pelo caminho percorrido. Tinha um aspecto sofrido, mas firme. Parecia irresignado e corajoso ao mesmo tempo. O próprio Júpiter indagou:

- Que virtude me apresenta, humano?

- Sou o único filho desta mulher, que agora pertence ao reino dos mortos. Não venho em meu nome buscar qualquer glória ou reconhecimento por algo que tenha feito. Não me acho digno. Jamais me sobressaí entre os outros pela existência de qualquer virtude em mim. Não sou belo. Não me considero o mais inteligente e corajoso dos homens, tampouco possuo a meu favor a alegria perene. Sou apenas um filho e nesta condição é que me dirijo a vós.
O nome desta mulher é Agape e creio que se já não encontrou a maior das virtudes, que tanto procura, ó Júpiter, entrego-lhe a única criatura em que se reúnem todas. Desde que vim ao mundo esta mulher fez de tudo para que eu pudesse viver bem, abdicando, por vezes, da sua própria vida. Quando os ventos do norte anunciavam o inverno e toda a terra se encontrava gelada e hostil, esta mulher tirou as próprias vestes para que eu pudesse ficar aquecido. Quando sobreveio a peste, ela não tardou em fugir comigo e passar por mil perigos nas estradas, até que nos estabelecêssemos em um lugar seguro. Trabalhou com afinco por toda a vida para prover meu sustento e se alguma vez o alimento faltou somente ela experimentou a fome, vez que me ofertava tudo aquilo que conseguia para si.
Hoje, após tanto tempo de sacrifício, Plutão levou-a para o reino dos mortos e já me vejo sem a coragem que via todos os dias em seus olhos. Apesar de homem feito, sei que dependo de seus ensinamentos e sua sabedoria e por isso mesmo venho pleitear para ela a imortalidade, pois em lugar algum do mundo acharão pessoa mais virtuosa. Peço, para ela, a imortalidade, justamente pelo fato de que fui eu que lhe tirei a vida aos poucos.

Por um instante todos os sons do céu e da terra cessaram. Todos os homens e todos os deuses olhavam assustados uns para os outros e para dentro de si mesmos. Depois, uma a uma, as faces voltaram-se a Júpiter, em busca de respostas para o pedido que de maneira  tão especial lhe fora feito.

Júpiter não conseguiu dizer mais nada exceto:

- Rapaz, você veio até nós sem o desejo do reconhecimento e sem o ego que é peculiar a todos os humanos. Trouxe, em seus ombros, mais que o peso de um corpo: trouxe o peso da morte, a desalentar-lhe o coração e abater-lhe a face. Neste dia presenciamos virtudes magníficas serem despejadas diante de nossos olhos, cada uma parecendo melhor que a outra. Contudo, nenhuma das virtudes se afigurou tão boa que nos fizesse esquecer das outras. A beleza, a generosidade, a paciência, a paz, a coragem...Cada uma delas parecia soberana, por si só. Todavia, o motivo que o traz ao Olimpo hoje nos faz crer na existência da virtude suprema, aquela que a tudo suplanta, tudo suporta, e que dignifica todas as demais. Essa virtude é o amor. Somente o amor permite a abnegação da própria vida e por isso mesmo somente ele pode vencer a morte.

Dito isto, Júpiter ordenou à Plutão que trouxesse Ágape de volta à vida para conceder-lhe a imortalidade na forma de uma estrela, que do alto dos céus poderia continuar seguindo os passos de seu filho e guiando-lhe quando este se visse perdido."


E desde então, atravessando os séculos, a palavra "ágape" é utilizada para simbolizar a existência do amor incondicional, quase divino, capaz de grandes feitos e dos maiores sacrifícios. Imortal.


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O abominável corredor da Le Biscuit.

Não sei se foi por natureza mesmo ou apenas por vontade de ser diferente, mas o fato é que eu sempre detestei bonecas. Quando pequena, gostava mesmo era de jogos, quebra-cabeças, pingue-pongue, livros e, claro, o futebol - que é minha atividade favorita até hoje. Boneca não. Boneca eu detestava e jogava fora. Principalmente aquelas tipo "bebês". Nunca me agradou a ideia de "brincar" de cuidar de um bebezinho.

Para não dizer que não falei das flores, tinha boneca tipo Barbie, uma só, e que eu usava mais para fazer parte da turma de amiguinhas do que pra brincar mesmo. Nas brincadeiras delas, sempre meio chatas, eu nunca fui a esposa do Ken, que fica em casa cuidando dos filhos e esperando o marido chegar do trabalho. Eu sempre era a irmã dessa aí, a solteira que trabalhava e tinha um carro.

Na minha infância do interior fui sempre uma criança muito livre e se não gostava de boneca era porque andava muito ocupada subindo em árvore, jogando bola na rua ou brincando de esconde-esconde. Poucas pessoas entendiam essa minha predileção por atividades esportivas ou que mexiam com a mente, o que me rendeu algumas decepções. Natal de 1998: meu tio que chegara dos Estados Unidos, trouxe presente para mim e para meus irmãos. Eu ganhei uma boneca que fazia som de beijo. Eles ganharam nada mais nada menos que dois carrões de controle remoto e que era a coisa mais legal que eu já tinha visto!

Com o tempo eu fui vendo que a diferença entre meus irmãos e eu não era apenas nos presentes. No tratamento em casa por vezes eu tinha que ajudar minha mãe com as tarefas domésticas enquanto meus irmão brincavam e sempre que perguntava o porquê de só eu ter que ajudá-la meu pai dizia: - Porque você é mulher.

Ouvindo assim parece mais estarrecedor, mas à época, como eu nem tinha muito o que pensar, acabava ficando só com raiva mesmo. Hoje eu vejo que o assunto é um pouco mais profundo que isso.

Minha mãe, por exemplo, sempre trabalhou dentro e fora de casa. Era responsável por tudo, no tempo em que não tivemos empregada doméstica. Desde a arrumação de todos os quartos até perguntar se já tínhamos feito o dever de casa. E se apenas eu tinha de ajudar com algumas tarefas domésticas, hoje agradeço tanto pelo fato de ter aprendido a me virar quanto pelo fato de conviver com a pessoa sensacional que mainha é.

Depois de mais um tempo, no início da adolescência, tudo ficou mais claro - e ao mesmo tempo incompreensível:

"Mariana, venha me ajudar a fazer o almoço."
"Mariana, você não pode ir pra festa com seus irmãos. Seu irmão pode porque é homem. Você é menina."
"Mariana, sente direito."
"Mariana, se você continuar jogando bola vai ficar toda marcada, com as pernas feias."
"Mariana, você não pode namorar. Só depois dos 15 anos e olhe lá!"

E de tanto "Mariana isso", "Mariana aquilo" eu fui incorporando os ditames, as regras, o costume de nossa sociedade machista - mas que não pode ser chamada assim porque as pessoas insistem que não é. Talvez porque se limitam a justificar seus posicionamentos com a singela frase "Mas homens e mulheres SÃO diferentes!". Nisso concordo. São mesmo. Diferenças naturais, biológicas, fisiológicas. Mas diferença de intelecto e de caráter não. Isso é uma coisa só pra ambos os sexos.

Para quem acha que não é machista, proponho um teste simples.

Ande um pouco pelos corredores de brinquedos da Le Biscuit ou das Lojas Americanas na parte de " brinquedos de meninas", aquela parte em que tudo tem que ser necessariamente rosa. Isso. Ande por lá. Olhe os brinquedos.

Dia desses eu fui com minha mãe e minha infância toda voltou à tona. De um lado a outro do corredor uma infinidade de brinquedos que as empresas deveriam ter vergonha de vender: piazinhas de prato pra lavar, fogãozinho, jogo de panelinha, ferrinho de passar e muitos bebês.

A voz amedrontadora gritava no meu ouvido:

"Mariana, cuide do bebê!"
"Mariana, faça comidinha na panela!"
"Mariana, passe a roupa!"
"Mariana, lave os pratos!".

Claro que as crianças não tem culpa alguma em querer brinquedos desse tipo. Deve haver algo de divertido nessas atividades (o que até hoje eu tento descobrir) ou simplesmente devem se sentir melhores ao fazer uma coisa de adulto. Além disso, os brinquedos são representações da realidade do mundo dos adultos. Os super-heróis são adultos e também as princesas. Os carrinhos são representação dos pais. Mas o que sobra pras mães é a representação machista dos afazeres domésticos e suas filhas, coitadas, tem de aprender desde cedo o que devem fazer.

Hoje, no programa "Encontro com Fátima" o assunto era sobre mulheres em posição de liderança. E todas foram perguntadas sobre como era liderar homens, e além disso homens mais velhos. 

Aí eu percebi que ninguém jamais perguntou a um homem como era liderar uma mulher. Para eles é "natural". Para nós não, embora sejamos maioria em diversas profissões.

E o corredor da Le Biscuit, que se limitava a alguns metros, vai mais além do que a gente pensa...


terça-feira, 17 de setembro de 2013

O velho e o horizonte.


O velho sentou-se à frente do mar, observando as ondas. Umas batiam nas rochas e por ali ficavam, gerando uma espuma branca que secava e depois surgia novamente. Outras, livres, apenas quebravam na areia, fazendo a água chegar até o dedão do pé do velho. Água gélida, apesar do tempo quente.

Ficou assim observando as ondas, com aquele tipo de olhar nostálgico e resignado que a maioria dos velhos possui. Depois, fitou o horizonte e pôs-se a pensar no que havia além daquela linha. "Mais água", respondeu à pergunta implícita. Contudo, não queria saber exatamente o que havia naquele horizonte; queria saber mesmo é o que haveria além do seu horizonte, além da linha de sua vida.


Quando pequeno, a ideia de morrer e ir embora deste mundo parecia aterradora. A morte significava o mais pleno exercício da solidão. Sem sua família, seus amigos, seu cachorro de estimação e suas bolinhas de gude nenhum lugar lhe apetecia. Além disso, estaria à disposição de um Deus católico furioso, implacável e de memória tão boa que jamais deixaria passar impune aquela tarde, antes da missa, em que conseguira beber todo o vinho da taça da eucaristia. Sofreria castigos eternos por ter usado o sangue de Cristo como substância entorpecente - e por ter gostado da sensação - e por isso vislumbrava a imagem de um inferno muito quente e de muito sofrimento, do qual Deus e o Diabo eram sócios. Aquele, o juiz. Este, apenas um executor de sentenças.

Num ato inconsciente, enche a mão de terra e deixa que a areia fina caia entre seus dedos, como uma ampulheta a medir o tempo. Misterioso esse prazer estranho da areia fina caindo. Enche a mão com mais areia. Aperta um pouco. E mais uma vez quase todos os minúsculos grãos de areia conseguem retornar sem embaraços ao todo de onde saíram.

Seria sua vida igual àquilo tudo. Seriam sua vida, todos os seus prazeres, seus aprendizados, seus amores, seus afetos e suas construções reduzidos à uma areia fina que agora percebe escapulir entre seus dedos, enquanto empreende uma força tamanha na tentativa de não deixá-los?

A maré começa a encher e a água, agora, toca as pernas do velho.

No lugar em que a água chegou ele pega um punhado de areia e fecha, com força, a mão. Observa, sem qualquer espanto, que a areia misturada com água vira um pequeno bolinho compacto, que não mais se esvai, rolando na palma da mão até que o sol seque a areia novamente.

Conclui que mais triste do que partir para o mistério do horizonte é ver a vida partir de si antes do advento da morte. Percebe, com igual obviedade, que há uma parcela de coisas que não se pode deixar escorrer pelas mãos e que, por isso mesmo, devem ser regadas sempre, todos os dias: nossos amores, nossas famílias, todas as formas de afeto, os sorrisos (para se tornarem perpétuos), os aprendizados de todo dia, as lições que deixamos aos outros, a saudade (que deve ser sempre alimentada antes que se alimente da gente).

Pensando e assim, e olhando os horizontes que aparecem nas lentes gastas dos óculos, parece nada temer. Ao contrário: sente que é próxima a hora de descobrir o mistério, de saber o que se passa do lado de lá (se é que o tal "lado de lá" existe). Não estaria mais só, pois tantas pessoas queridas já cruzaram o aquele horizonte. Quando jovem sempre imaginou qual sentimento moveu os primeiros habitantes desta terra ao verem caravelas se aproximando e ficando maiores no mar. Haveria monstros no seu horizonte? Ou a possibilidade de algo surpreendente? Tudo que se construiu aqui fica, ou só aquilo que foi verdadeiramente semeado? Há um abismo no horizonte? Ou somente há uma ponte?

Era as perguntas que agora fazia a si mesmo, mas nem tentou responder. Voltou a olhar as ondas. Ainda viver para vê-las era algo que também não precisava de resposta. Entre as duas coisas, preferiu a segunda. As ondas sempre continuam: pra elas não há horizonte algum.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O que não é dito.

Pra quê falar alguma coisa,
Se entre nós pesa esse clima,
Esse silêncio das palavras,
De todas as palavras
Que não precisam ser ditas?

Pra eu dizer, enfim
Basta que te olhe.
Palavras e desejos saem inconscientemente dos meus olhos,
Saem junto com minha expiração
E se direcionam a você,
Como se você pudesse senti-las, ouvi-las
Só com teu olhar também.

Ao seu redor elas flutuam no ar,
e dançam,
cada uma com uma cor,
cada uma tentando te falar uma coisa
de tantas coisas que tenho guardado.

Eu queria, na verdade, era que uma delas,
imprudente e desavisada,
te alisasse
depois beliscasse teu braço
se preciso até te desse um tapa na cara.

E assim, quem sabe,
Você ouviria tudo,
Tudo aquilo que eu não preciso dizer.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

História curta de um amor na roça.

Em um dia ensolarado e limpo fomos (re)visitar uns povoados da zona rural de minha cidade. Poeira na estrada, mandacarus na paisagem inteira e aquele barro vermelho que fica na bota e na alma de quem viaja pelo sertão.

Chegamos a um povoado próximo à antiga roça do meu pai, que eu apenas aproveitei na minha primeira infância. O lugar tem um descampado imenso, casas ao redor em formato de "U' e beleza, muita beleza. O sol, quando se põe lá, parece que leva tudo que pode haver de ruim no mundo, deixando o ar impregnado de pureza e ingenuidade.

Batemos na porta da casa de uma família amiga. Apenas a esposa lá dentro. Aquele rosto espantado e feliz ao mesmo tempo.
- Menino, mas são vocês! Quanto tempo! Vamos entrando e não reparem a bagunça não. O Zé saiu ali mas já tá voltando. Querem uma aguinha?

Eu, mesmo sem sede alguma, aceitei. E fiz questão de ir buscar a água no pote de barro. Tirei a tampa e aspirei aquele "cheiro de água". Bebi, sentindo o gosto da água salobra.

Sentamos à mesa da cozinha e meus pais começaram a conversar com ela. Então minha mãe perguntou:

- E cadê sua filha, comadre?
- Oxe, não soube não?
- Não!
- O namorado "carregou"...
- Ah, entendi...

Eu é que não havia entendido nada daquilo. Sequestro? Fuga?

Só depois que saímos de lá é que minha mãe me explicou a história toda.
A filha da comadre namorava um rapaz, ao qual dedicava muito amor. Ele também a amava e queria a todo momento estar junto dela. Só que as famílias demoraram muito em ajeitar o casamento. Então, numa noite de lua cheia, cansados da espera, o namorado foi até o quintal da casa da namorada, a pegou pela mão e a "carregou" para a casa dele.

O detalhe: eles eram vizinhos.

Depois que a família da moça percebeu que ela não havia passado a noite em casa e que provavelmente o amor tinha se consumado, nunca mais questionou seu casamento.

E eu, invejosa que sou, fiquei a pensar em como deve ser bom morar num lugar em que ainda dá pra se deixar carregar pelo amor e depois não precisar dar mais nenhuma satisfação pros outros.


terça-feira, 13 de agosto de 2013

Dá saudade.

A gente tenta até disfarçar
E se fingir de autossuficiente
Mas ninguém consegue negar
A saudade do amor ausente.

Saudade da espera,
Da ansiedade,
E do coração que bate forte,
Mas tão forte,
E tão alto,
Que até faz vibrar a blusa
E gera aquele sobressalto.

Dá saudade de vigiar o telefone,
De ficar boba.
De ficar ridícula,
Mas bem abestalhada mesmo,
Do tipo que acorda cantando,
Suspirando.
Imaginando.

Dá saudade de ouvir "Baladas Românticas" em rádio clandestina.
Com a voz do locutor traduzindo as canções ao fundo.
Dá saudade de agarrar o travesseiro como quem abraça o mundo.
E de fazer versos que caibam em toda rima.

Dá saudade de ver a sombra do amor na penumbra da noite.
De pensar vê-lo na parede do quarto.
De escolher a roupa ao sair para encontrá-lo.
E de receber um beijo na testa que queima
E quase me fere,
Como ferro quente marca o gado.
Dá saudade até do desequilíbrio,
Porque minha vida é toda um norte e um ritmo
E às vezes é bom que alguém venha descompassá-la.

Da saudade de carregar no peito aquele sobressalto perene.
Aquele frio na barriga.
Aquele anseio no coração.
Aquele "Será?" na mente.
Aquele nervosismo ao se entregar.
E depois de tudo ficar percebendo gestos.
Olhando os detalhes da íris.
Velando sono enquanto dorme.

E as cartas.
Os filmes.
As serenatas.
Os nomes em árvore.
Os planos.
Os sonhos.
Os desejos.

Saudade.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Levezas

Sabe uma coisa que eu gosto?

Levezas
Levezas que não podem ser pesadas na balança da feira.

Tem as levezas que são sempre muito leves:
Riso de criança,
Carinho de vó
E coração de gente alegre.

Tem outras coisas que parecem pesar quase o mesmo tanto do mundo.
Com essas eu não quero aproximação:
Medo de perder alguém querido.
Gente que tem prazer em se sentir melhor que os outros.
Solidão.

Mas há algumas coisas na vida
Algumas poucas coisas
que são leves e pesadas ao mesmo tempo.

Quer um exemplo?
Onda do mar é pesada mas também é leve.
Aliança jogada fora é leve mais também é pesada.

Outras coisas eu ainda não sei
Se são pesadas ou se são leves.
Não há como precisar:
Saudade,
Amor à distância,
Poema que se escreve.
Pra esses nem existe balança
Com a qual se possa pesar.



sexta-feira, 5 de julho de 2013

Por um tempo de delicadeza nos concursos públicos.

O sonho da aprovação em concurso público é partilhado por muita gente, de pessoas que passam madrugadas apertando a tecla F5 para ver a divulgação do gabarito a pessoas que choram porque suas notas foram 0,5 pontos menores.
Neste universo estranho é preciso ter dedicação, sorte, paciência e estômago. Explico o porquê deste último.

Lembra daquele coleguinha da 4ª série que não deixava você copiar a matéria pelo caderno dele? Isso, aquele que virava as costas e colocava o caderno do outro lado da carteira para que você, que não conseguiu acompanhar o que era ditado pelo professor, não visse o que ele tinha escrito e não aprendesse a matéria.

Pois é. No mundo dos concursos muita gente é aquele coleguinha da 4ª série.

A gente ouve tanto as pessoas comentarem que a concorrência está cada vez maior, que o mundo está cada vez mais competitivo, que nos tornamos tão mesquinhos e imaturos quanto o coleguinha. Na verdade, desenvolvemos o pensamento de que o nosso fracasso está ligado ao sucesso do outro, e que este, logo, não pode ser querido. Assim, se eu contribuir para o seu fracasso, não emprestando o material, ou me recusando a te passar aquele resumo, eu tenho maiores chances de vitória.

Há poucos dias eu estava em Maceió participando de um curso de formação do concurso para analistas do Tribunal de Justiça de Alagoas. 367 concurseiros se avolumavam nos corredores da ESMAL - Escola de Magistratura de Alagoas e foi lá que eu pude ver de perto o que o concurso público faz com as pessoas.

Ao meu lado, um pessoal começou a conversar sobre o caso de uma moça que foi aprovada em um concurso de Ministério Público, para Promotora de Justiça. Para quem não sabe, são exigidos do candidato que este comprove 3 (três) anos de atividade jurídica, que pode ser a advocacia ou o exercício de qualquer cargo privativo de bacharel em direito. Essa moça, no entanto, não possuía os três anos. Disseram que ela era praticamente recém-formada ou que possuía, no máximo, 1 ano como bacharela.

Resultado: ela passou no concurso para promotora, tirou nota alta em todas as fases. Mas na era de comprovar os requisitos, não tinha os três anos de atividade. Assim, conforme o princípio do "Joga o barro na parede para ver se cola" ela juntou comprovação de seus estágios e outras atividades. Quem sabe poderiam aceitar.

E aceitaram.

Mas uma colega de faculdade representou contra ela no próprio Ministério Público, demonstrando que ela era praticamente recém-formada. Então a moça não tomou posse e perdeu a vaga que tinha conseguido por esforço próprio.

Claro que a aceitação do estágio como atividade jurídica não era lícita, legalmente falando. Provavelmente outras pessoas deixaram de participar do concurso justamente porque não tinham como comprovar esses 03 anos de atividade jurídica. Claro que do ponto de vista jurídico era totalmente legítima a insatisfação com a quebra do princípio da isonomia, a igualdade entre todos.

Mas, analisando tudo sob uma perspectiva essencialmente humana, eu penso: o que leva uma pessoa a querer levar a outra ao fracasso sem motivo algum? Qual a sensação produzida no corpo da delatora, que tornou-a mais feliz com a tristeza da outra?

Essa tensão, essa angústia, esse medo causado pelo concurso público e todo o estresse que antecede a realização das provas parece ter um efeito no próprio sentimento de solidariedade entre as pessoas. Você não precisa passar as respostas para o outro, mas também não precisa ver no outro o seu inimigo, aquele que vai tirar sua vitória.

Se agirmos desse jeito, jamais deixaremos de ser o coleguinha da 4ª série, que não sabe conviver com os outros. Inseguros, imaturos, infantis e mesquinhos, vamos ter raiva pelo sucesso do outro. Vamos rir do fracasso alheio e em vez de ajudar em alguma coisa na qual nos saímos melhor, vamos colocar o pé atrás do outro e aplicar-lhe uma bela de uma rasteira.

Por um tempo de mais delicadeza, devemos sempre lembrar que em qualquer concurso público e na vida como um todo, todos nós só temos um concorrente. Aquele que nos contempla no espelho.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Pátria amada.




Sempre tive adoração pelo Hino Nacional. A melodia é linda e a letra, se não é das mais fáceis de serem entendidas, com suas construções invertidas e metáforas complexas, também não se torna um obstáculo à produção de um sentimento bom toda vez que a ouvimos.

Talvez porque o nosso hino nacional tem algo de peculiar em relação a diversos hinos ao redor do mundo. É que diferentemente dos demais, que fazem menção a guerras, batalhas, revoluções, o nosso faz expressa menção a nada mais nada menos que o amor.

Parem para prestar atenção.

O que pode ser mais bonito e significativo do que dizer, mais de uma vez, que a nossa pátria é amada?

O Brasil, para nós, assume essa condição de ser amado, o que supera qualquer chance, qualquer possibilidade de coisificação de sua natureza. Amamos nosso país como amamos às pessoas: não por sentimento de posse mas pela mais completa sensação de bem-estar que o outro nos proporciona. Mário Quintana já disse que "amor é quando a gente mora um no outro". Moramos no Brasil e ele em nós, onde quer que nossos pés estejam fincados.

Está certo que às vezes nos decepcionamos e passamos a acreditar que talvez seja melhor deixar esta terra, este espaço, e galgar caminhos diversos que nos levem a uma vida um tanto mais confortável, com menos violência, menos corrupção, menos miséria.

Mas, pensando bem, talvez a nossa pátria é que queira ir embora da gente e em maior ou menor grau nós é que devemos desculpas a ela. Desculpas por ter deixado tanta coisa acontecer sob nossos olhares acomodados; por ver com resignação uns poucos bandidos se apossarem do que é de todos nós por direito; por ter desaprendido a brigar por ela como um amante apaixonado luta bravamente e corre todos os perigos para proteção do ser amado.

Só que o amor é paciente e bondoso e nunca é tarde para pedir perdão.

Nessas últimas semanas este país pôde experimentar a força desse sentimento. E nesses dias, o Congresso Nacional, à semelhança das margens do Ipiranga, também ouviu os brados, os gritos de desculpa, de um povo verdadeiramente heroico.

Não foram vinte centavos, a PEC 37 ou o clamor pela reforma política que nos uniu e nos levou a marchar de maneira impávida - corajosa - pelas mais variadas ruas de tantos estados do Brasil. Não foi por essa "merreca", como disse um jornalista que aqui não merece ser citado, mas foi pelo mais puro amor que nós levantamos de nosso conforto, nossas camas e sofás para defender nossa amada.

Provamos que não somos filhos ingratos e que estamos prontos a cuidar dessa terra maravilhosa e do que pode nos fazer melhores. Provamos que podemos tomar "partido" sem precisar de partido político e vimos que, vergonhosamente, embora muitos não precisem de R$ 0,20, ainda há uma parcela da população que conta moedas para passar o mês.

Não é preciso um motivo individual nem que sejamos diretamente afetados pelo aumento das passagens do transporte público: é preciso tão somente amar cada pessoa que faz parte desse universo de brasileiros e reconhecer em cada olhar necessitado o pedido de ajuda que nos dirige a nação. Afinal de contas, um filho dessa pátria idolatrada não pode fugir à luta.

E lutamos por ela. Mesmo com medo ou desestimulados. Mesmo com a presença de alguns policiais despreparados e ignorantes. Mesmo com a opinião desfavorável dos que se dizem intelectuais e democráticos. Mesmo com o risco à segurança própria. É porque o hino já nos disse que quem adora a pátria não teme nem mesmo a própria morte.

Provamos que somos maiores que o poder de quem sempre achou que detém o poder. Maiores que os muros de medo que nos separavam de nossa esperança e de nossa força de vontade. Maiores que a indiferença com as quais nos tratam. Ao mesmo tempo somos partes muito pequenas de um país de proporções continentais, mas jamais seremos insignificantes. Nós formamos um gigante chamado Brasil, que não assume esta condição apenas por força das circunstâncias, mas sim por sua própria natureza.

Nossos gritos ecoaram em todos os extremos desse país e foram ouvidos por todos, da Presidente à Câmara dos Deputados: os políticos viram que são eles que devem nos temer e não o oposto. A pátria, apesar de ser uma mãe gentil, não é condescendente com o comportamento dos que tentam, com todas as forças, subvertê-la e destruí-la.

Nós é que somos a força desse país! Mostramos que Brasília é nossa casa e que não somos apenas sombras projetadas nas cúpulas do Congresso Nacional, como se viu durante as manifestações. Somos corpos, somos braços fortes, somos peito e grito. Somos vozes.

E após ouvir nossa voz, uma Presidente nos fala em cadeia nacional que não deveríamos depredar o patrimônio público, mesmo quando a maior degradação de nosso patrimônio ocorre em Brasília, em salas com carpete e café de boa qualidade. Disse que deveríamos tratar com respeito e CARINHO - a palavra foi essa - os estrangeiros que vem a nosso país assistir aos eventos esportivos, mesmo quando a mão do Estado vem para nós, filhos desse país, em forma de um tapa, desferido sem dó naqueles que nada tem.

Ouvimos este pronunciamento não como quem tinha a esperança de tudo mudar, mas como quem tinha consciência de que pode mudar e de que, em alguma sala de reuniões apinhada de políticos covardes, o comentário era o de que o povo brasileiro não aceitaria mais a corrupção como parte do seu DNA.

Isso tudo ficou ainda mais claro na votação da PEC 37 realizado ontem, no plenário da Câmara dos Deputados. Uma proposta que contou, inicialmente, com 207 votos favoráveis para seu prosseguimento e com aprovação na Comissão de Constituição e Justiça, foi fulminada por 403 votos a 9. Políticos fazendo o papel ridículo de deixar claro que não apoiaram a PEC porque sabiam que este Brasil de agora não é o mesmo de antes. É um país que assiste à TV Câmara e que compartilha nas redes sociais o nome dos deputados que votaram nesse ou naquele sentido.

No fim das contas nós, que fomos apelidados de geração alienada,  que nos acostumamos a ouvir de nossos pais que na época deles por muito menos a população ia às ruas, que fomos chamados de baderneiros e vândalos, é que resgatamos toda a esperança e fé. Nós é que levantamos o país. Nós é que lutamos pelo que amamos de verdade.

O gigante não acordou porque nunca dormiu. Ele apenas tomou consciência de seu tamanho.


terça-feira, 4 de junho de 2013

A natureza jurídica do brilho dos olhos.

O início do curso de graduação em Direito é permeado pela contínua produção de esperança. De um certo modo todos que adentramos o mundo mágico das leis e das instituições jurídicas temos esse ideal de utilizar o Direito como instrumento de mudança e em algum momento também acreditamos que poderíamos fazer a diferença nesse mundo.

Passado pouco tempo, não sei porquê, esta esperança simples vai se esvaindo, tal qual um pano colorido que desbota ao sabor do tempo. Começamos a substituir a ideia de justiça, pela de lei; a utilidade, pela formalidade; a simplicidade pelo mais absoluto dom de complicar qualquer coisa com textos ininteligíveis a qualquer pessoa do povo.

Não se pode dizer que nas demais áreas do conhecimento não exista o uso de uma linguagem própria, de uma forma especial de falar e entender as coisas. Mas no caso do Direito, me parece que a mais simples das construções pode se tornar algo complicado, como se a qualidade do nosso trabalho pudesse ser medida pelo número de expressões em latim ou conectivos que não se usam mais desde 1800.

Falar coisas simples, como "casa", "criança", "amor" não parece fazer a diferença. Para conseguir aprovação, falamos de "residência", "infante" e "estima", aumentando a dificuldade e diminuindo a beleza de tudo.
Em apenas um momento eu vi uma sentença num caso de divórcio que falava expressamente "duas pessoas que não se gostam mais não podem ser obrigadas a conviver". Foi proferida por um ex-professor meu, que é juiz.

O que eu quero dizer é que nos acostumamos muito cedo às vaidades, até chegarmos a um ponto em que nos achamos dignos de todas as honrarias e detentores de todo o conhecimento. Pobres de nós. Em grande parte das vezes mal sabemos  o que estamos fazendo com esses processos volumosos que nos chegam às mãos. Mas admitir "Não sei", é o pior dos pesadelos para quem quer saber de tudo.

Nos gabamos da complicação de algumas coisas, da dificuldade de se elaborar uma peça ou parecer. Mas digo a vocês: a inicial de uma ADIN, um recurso extraordinário ou mesmo o parecer sobre um processo com mais de 50 apensos são bastante simples.

Difícil é saber lidar com a responsabilidade de termos a vida e o bem-estar de uma pessoa em nossas mãos.

Quando eu era do quarto semestre e estava numa experiência de prática jurídica da faculdade, o SAJU - Serviço de Apoio Jurídico da UFBa, fiz uma inicial de uma Ação de Retificação de Registro Civil, que nunca tinha feito na vida. A assistida era uma moça que odiava o próprio nome e, por conta disso, acho que não gostava tanto da ideia que tinha de si mesma.

Pesquisei na internet, peguei um modelo de alguém, ajuizei a ação e pronto. O impulso oficial faria transcorrer o processo. Depois de um tempo, quando já não estagiava mais no SAJU eu recebi uma ligação de um número desconhecido. Era ela, chorando ao telefone, me agradecendo por tudo e dizendo que estava indo buscar seu novo documento de identidade.

Muito provavelmente eu escrevi na petição inicial que "houve um equívoco no registro de nascimento da Autora", "que a Autora não se sente satisfeita por ostentar um nome com o qual não simpatiza" ou que " não se afigura razoável que a Autora venha a amargar um sofrimento por algo que não escolheu". Eu podia simplesmente ter dito que ela não era feliz.

Por isso gosto de quem utiliza o Direito como ele deve ser: apenas um instrumento de nossas sensibilidades. Gosto de quem não vê essa área como o centro do universo. Gosto de quem mescla as obrigatórias chatices da vida jurídica pelas histórias descomplicadas, pela conversa fiada, pelas gírias que usamos todos os dias, e pelo riso, que parece tão fora de moda nos corredores do Fórum e das repartições públicas.

E de uma certa maneira, no fim do curso é que temos o resgate dessa magia que acontecia antes todos os dias quando éramos calouros. É só quando saímos da faculdade que nos damos conta de nossas limitações, de que não estamos prontos, de que não sabemos 80% das coisas que fingimos saber, de que em tudo colocamos uma complicação inútil.

No final do curso é que desejamos com toda a nossa força, com todo o nosso querer, manter acesa a centelha de esperança que ardia antes em nossos corações, hoje um tanto calejados das injustiças que vemos todos os dias. O final do curso é o momento de resgate da esperança.
Tanto que na minha colação de grau, um dos arautos desse modo simples de ver o Direito, o paraninfo da turma , desafiou a todos os bacharéis, perguntando:
- Qual a natureza jurídica do brilho dos olhos?

Não sabemos.

É fácil ser jurista, difícil é ser humano.
É fácil impressionar um cliente, difícil é se orgulhar de si mesmo.
É fácil elaborar uma ação vitoriosa. Difícil é escrever uma emoção.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Escrevendo música.

Era um desses dias normais e corriqueiros em que tudo parece se ajustar ao que esperam de nós. Nenhum sorriso novo me encontrou na rua. Nenhum rosto desconhecido ficou em minha memória. Nada. Nem um pontapé da vida! Nenhum suspiro diferente. Nenhuma saudade especial. Só um desses dias em que a gente trabalha, come, se cansa e depois dorme em vez de ser útil, deliciar-se e ter sonhos alados.

Mais um dia sem expectativa. Cansaço de uma semana pesando sobre os ombros. Almoço que não ocorreu e foi transformado em jantar, que, igualmente, restou precluso. E ao chegar em casa tudo reclamava comida e cama, como se somente disso fosse feita a vida. Era, em verdade, um dos dias que não vemos passar. Um dia ensaiado, coreografado, sem a dança rítmica do improviso e do acaso que não podemos governar.

Recusei-me a isto. Não vivi até aqui para ver desperdiçado um dia inteiro do qual sentirei imensa saudade mais adiante, quando já puder me dar ao luxo de ser nostálgica e apenas observar o tempo passar. Fazer algo diferente ainda hoje, mesmo faltando poucos minutos para a meia-noite e, portanto, para um novo dia. Novamente, recusei-me. Neguei. Ia fazer um chá, coisa não muito usual, mas deu preguiça. Sofá. Computador. Ambos negam minha vontade do diferente. Pensei em escrever? Sobre o quê?

Decidi escrever uma música.

Explico. É óbvio que as pessoas normais como eu só podem mesmo escrever letras de músicas, porque escrever música é coisa pra quem entende de partitura - algo que um dia ainda saberei fazer porque acho incrível! Como ainda não sei, decidi escrever uma música para a qual ainda não existe letra. A música que escrevo é uma chamada "Violin Romance", de Bethoven e precisei fechar os olhos para traduzi-la.

É mais ou menos assim:

O som doce de um violino.
Solitário, qual um amante esperançoso. Nem tão alegre que chame atenção, nem tão triste que mereça pena.
A ele junta-se outro, em coro.
Formam uma serenata.
Alguém vem assistir? Não se sabe.
Suspense. Vem ou não vem? Abrirá a janela para ouvir o som do amor contido?
Veio!
Abriu a janela, lépida e fagueira, com um sorriso iluminado pela luz de uma vela.
Nenhuma voz foi pronunciada. Apenas o violino continua a declamar algo.
Tudo mais rápido agora.
O pai dela vem vindo, talvez.
Suspense, igualmente.
Abriu-se outra janela.
Uma pessoa zangada olha a cena.
Até que uma mãe suave pousa sua mão na do homem, como que a pedir calma.
"Deixe os jovens amarem como fizemos no passado" - parece dizer ao esposo.
A filha, do alto, deleita-se.
No espaço entre ela e a serenata, ouve-se o silêncio das coisas que não precisam ser ditas.
Música mais grave.
Haverá algum impedimento?
"Casemos, então!
Em meio à turbulência um pedido em violino.
Medo.
Mas a resposta? Será um sim?
O violino passa a argumentar.
"Olha, você sabe que é somente por você que eu canto".
Súplica em música.
Amor em notas.
Um sim.
Calmaria.
E tudo acaba.
Ou começa.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Bolsa-esperança.


Neste nosso país tem tanta gente ruim que às vezes eu tenha plena convicção que Deus nos legou tantas belezas naturais como um prêmio de consolação. Porque em meio a florestas exuberantes e praias cujo mar é cristalino como vidro limpo, nada resiste à imundície que se observa no coração de algumas pessoas.

Refiro-me, obviamente, a todos aqueles que dia a dia fazem dos sonhos dos outros o sustentáculo de seus privilégios mais egoístas. Políticos.

Como toda generalização é burra, não posso me referir a todos eles. Há alguns, muito poucos, que tem verdadeiro talento, vocação, e um ideal que vai além dos seus caprichos. Minha fala, portanto, se relaciona com aqueles que preenchem grande parte dos espaços de poder do país que se diz Estado Democrático, onde todo o poder deveria emanar do povo.

“Mas o povo pode exercer o poder através do voto!” – dirão uns, provavelmente aqueles aos quais me referi anteriormente. O problema é que ninguém faz revolução de barriga vazia, muito menos quando sequer se sabe o que acontece no país. Aqui, como em tantos lugares desse mundo, ninguém tem a condição social que tem por acaso. Ninguém é carente por acaso. 
O estado de dependência das massas é algo assustadoramente proposital. A fome, a miséria, a falta de saúde ampla e de qualidade, a falta de educação, de escolas, o trabalho infantil, a seca, tudo isso são crias alimentadas diariamente pelo monstro da corrupção, mais conhecida como falta de caráter ou falta de vergonha na cara, num dizer mais simples.

O que eu acho mais triste no fato de existir a corrupção não é nem o dinheiro que é tirado dos cofres públicos para patrocinar farras, viagens, compras, moradias luxuosas dos políticos que agem assim. Para mim, que consigo trabalhar honestamente e viver em condições confortáveis, mas nada luxuosas, esse comportamento é digno de pena. Tenho raiva, sim, muita raiva de saber que pago todos os dias para o deleite de alguns poucos. No entanto, para mim tristeza é pior que raiva.

Fico genuinamente triste é de ver que as ações dessas organizações criminosas, algumas denominadas “partidos políticos”,  acabam por usurpar, destruir, pulverizar qualquer tipo de sonho que alguém porventura tenha em viver melhor. Usurpar um sonho é pior do que roubar dinheiro. É pior do fraudar uma licitação. Pior, muito pior do que aceitar propina. Fulminar a esperança de outrem é a coisa mais vil, mais cruel, que um ser humano pode fazer.

Mas continuam fazendo. Aos montes! Em todos os níveis, em todos os espaços, até mesmo naqueles em que a Justiça deveria prevalecer. E por quê? “Porque todo mundo faz, então eu faço também.”. “Porque também tenho direito de tirar ‘o meu’”., “Porque sempre foi assim e sempre vai ser.”.

Tenho outra tese, no entanto. Acho que isso continua ocorrendo no Brasil porque não tem sangue. Todos nós nos levantamos cheios de ódio e sentimento de vingança para julgar um assassino que tenha matado uma criança indefesa, mas não repudiamos de maneira tão severa aqueles que matam centenas de crianças todos os dias por terem desviado a verba que deveria ir para um hospital público. Nós bradamos, gritamos, jogamos objeto e fazemos dos homicídios e dos estupros os nossos piores inimigos, mas não enfrentamos aqueles que estupram a ética e que matam, sem qualquer tipo de arrependimento, qualquer chance de prosperidade dos que sofrem.

E o engraçado é que algumas pessoas acham normal que os políticos sejam ricos. Muitos deles não possuem nem diploma, nem nível superior, e são donos de verdadeiras fortunas, obtidas, coincidentemente, após o começo de seus mandatos. O que uns acham natural eu acho digno de, pelo menos, desconfiança. Isso talvez explique o asco com o qual eu assisto às propagandas eleitorais. Às promessas ridículas e falsas sobre um Brasil melhor, com seguranças, com saúde de qualidade e educação para todos.

Se um dia Deus se compadecer dessa situação, já que não creio tanto num levante popular, ele vai fazer com que cada político corrupto veja em pesadelos as faces daqueles que padecem por sua culpa. Eu queria mesmo era que, ao colocarem a cabeça em seus travesseiros de plumas de ganso, cobertos com uma fronha de algodão egípcio, que o conforto fosse o mesmo que deitar por cima de pregos a espetarem suas cabeças, de onde costumam sair ideias tão maquiavélicas.

Hoje eu entendo que o dinheiro distribuído pelo governo ao povo, sob a forma de "bolsa alguma coisa", e que antes eu achava um absurdo, é apenas uma forma de compensação absurda pelo furto de sonhos. Ridículo que sonhos possam custar tão pouco. Mas pior seria se pior fosse, ou seja, pior seria se não houvesse nem sonho nem nada.

Eu, de minha parte, fico no aguardo do bolsa-esperança, já que acreditar no futuro e nos políticos está cada vez mais difícil neste belo país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza.

sábado, 27 de abril de 2013

"Pode mastigar?"

Quando eu tinha uns 8 anos de idade, minha mãe decidiu que era hora de eu começar a frequentar o catecismo. Não sei porque cargas d'água tanta urgência, afinal ela podia esperar eu querer frequentar o catecismo quando começasse a pensar nessas coisas de Deus e de que religião seguir, mas o fato é que eu tinha de fazer logo a primeira comunhão. E, pra isso acontecer, tinha de ir pro catecismo.

Pra quem nunca foi, o catecismo é tipo uma escola que ensina coisas da bíblia e da Igreja Católica. Do gênesis à ressurreição de Cristo - não vai até o apocalipse porque dá medo e ninguém entende aquilo - nós escutávamos as historinhas, cantávamos músicas e brincávamos muito. A professora dizia que todos tínhamos de ir para o catecismo pois assim seríamos boas crianças para nossos pais.

Mas eu, ah, eu ia mesmo por causa de um pé de goiaba que tinha em frente à sala de aula. E por causa do mato. Lá era que eu brincava de aventura, pois não tinha árvore em casa. E quantas vezes saí de casa mais cedo só para comer goiaba na árvore da paróquia! Era uma delícia. Acho que é por isso que catecismo tem gosto de goiaba madura.

Além das goiabas, eu adorava a época da páscoa. Mais pelo suco de uva e pelo pãozinho que nos davam do que pelo simbolismo da história. Desculpem-me, mas sempre fui uma criança franca. Até hoje. Além disso, se o próprio Cristo está sabendo disso, por que eu iria querer esconder logo de vocês? Aproveito para confessar que ia à missa das crianças, às 10 horas da manhã dos domingos, para comer o pãozinho também - no lugar das hóstias tinha pãozinho.

E, por falar em confessar, lembro-me com que terror eu recebi a notícia de que teria de me confessar com o padre para poder comungar pela primeira vez. Na minha cabeça, o padre, sendo o representante de Deus na Terra, devia conversar com Ele sobre a punição que eu receberia e isso me enchia de medo. E se Deus não me perdoasse por ter mentido para a minha mãe ou batido no coleguinha, ou por frequentar o catecismo só por causa de um pé de goiaba? Mas ele me perdoou e minha punição foram só 10 aves marias, que eu rezei bem rapidinho, quase emendando uma na outra.

Assim, de tanto frequentar o catecismo, eis que chegou o dia da primeira comunhão. Igreja lotada. Eu e os demais coleguinhas vestindo branco. Pela primeira vez nós íamos comungar! Qual seria a sensação? Sentiríamos o sopro da graça divina em nossos corações? Ou só o gosto da hóstia? Peraí, hóstia tem gosto? E no meio desses pensamentos, minha hora de comungar foi chegando e antes de pegá-la das mãos do padre, a pergunta veio quase sem ser notada:
- Padre, pode mastigar?

Ele apenas riu e me entregou a hóstia, fazendo um gesto negativo com a cabeça. Entendi. Apenas deixei a hóstia derreter no céu da boca e fiz uma oração a Cristo, que me olhava lá de cima, no céu do mundo.

E aos que perguntam as coisas que aprendi no catecismo e na Igreja eu respondo: a primeira é que Deus é bom, muito bom; a segunda é que Jesus não gosta de ser mastigado.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Constatações de um bacharel - um guia para o calouro de Direito.

1. Você entra no curso de Direito acreditando que pode consertar o mundo. Depois é que você percebe que o curso não tem absolutamente nada a ver com aquele seriado norte-americano que você assistia.

2. Um dia, muito triste, você vai fazer a maior das descobertas que o curso de Direito te reserva: a de que Justiça e Direito não necessariamente andam juntos. A Justiça pode ser o seu objetivo pessoal e profissional, mas, por vezes, o Direito, longe de realizá-la, passa a ser só mais um instrumento de manutenção de toda a sorte de misérias que vemos por aí.

3. Igualmente abalado, você perceberá que há muitas formas legais de se fazer algo ilegal.

4. Mais cedo ou mais tarde, estudando processo legislativo ou analisando uma decisão de um tribunal, você vai saber que, muitas vezes, tudo dependerá exclusivamente da política e do jogo sujo de poder que não é "privilégio" só dos Poderes Executivo e Legislativo.

5. Você vai aprender que no Direito TODA regra tem exceção. Até as cláusulas pétreas (vide tópico anterior).

6.  Um dia, se você levar a sério o que você aprende em Direito Penal, deixará de assistir a programas jornalísticos sensacionalistas, tipo o do Datena, por saber que tantas vezes os criminosos que são mostrados ali não chegam aos pés dos grandes bandidos que patrocinam a TV brasileira e que se encontram sentados no Congresso Nacional.

7. Da indumentária ao palavreado, as profissões do Direito são as que mais favorecem a pessoa ser metida a besta.

8. Se você quiser prestar concurso público vai ver que, em vez de procurar por raposas, os concursos selecionam papagaios.

9. Se você quiser advogar, você vai ver que você pode ter talento e nenhum técnica; pode ter técnica e nenhum talento; mas se não tiver uma boa relação com o serventuário da justiça você não tem nada.

10. Apesar de tudo isso e da eventual vontade de largar o curso, um dia você vai vislumbrar o fato de que o Direito é uma das profissões nas quais você, sozinho, pode fazer uma grande diferença na vida de uma outra pessoa. E nada mais vai importar: a política, o jogo sujo e a injustiça ficarão para trás. "Uma única voz honesta é capaz de superar a de uma multidão". Acredite nisso.


sábado, 20 de abril de 2013

Das exigências.

Que em vez de me chamar para sair, me peça para ficar.
Que me estilhace em mil outras de mim, em vez de me completar.
Que em vez de abrir a porta do carro, abra a porta de sua vida inteira.
E que não me traga flores. A partir de hoje eu só aceito buquê de sonhos.
Sorrir é muito pouco. Quero quem me faça gargalhar, rir mesmo, rir muito, de mim, dos meus próprios erros e de todas as minhas futilidades.
Em vez de promessas ocas e inúteis, quem me traga um oceano de verdades, até as que eu nunca quis ouvir.
Que em vez de me dar sentido, me retire a sensatez, a lucidez, me arranhe a tez e me tente, me acalente, depois me oriente só pra eu perder meu prumo. Só pra eu mudar meu rumo.
Não quero fotografias,
Não quero provas para mostrar ao mundo.
Quero alguém que seja tão só o porta-retrato dos momentos que eu fotografo,
Que invento e que gravo só com a minha memória.
Tampouco quero ter uma história. Antes um conto, uma crônica, uma anedota, algo fácil de ler.
Algo que nos traduza com humor,
Com amor,
Algo que eu consiga escrever.
Não procuro o ideal insosso.
Procuro o surpreendente.
O que vive,
O que pulsa,
O que grite e me chame!
Que queira ser a gente em vez de meu só
Que não querendo mais, me fale sem dó
Mas que de qualquer parte de mim nunca se esqueça.
Não quero apenas que me ame.
Quero alguém que me conheça.

Do que parece ser o amor.


Quase nada importa o resto, quando se ama.
Até a vírgula
Mais atroz e soberana
Torna-se indispensável.
"Quero ser teu, amor." - você se apodera de mim.
"Quero ser teu amor." - você me amando sem fim.
Muda o sentido, e a vontade é a mesma.
Insaciável.

***

Mas talvez amar seja isso mesmo:
Ser capaz de fazer qualquer coisa
Na intenção do ser amado.
Saber fazer, até, com palavras,
Um sol surgir em plena trovoada,
Em plena chuva do mês de maio.
E, no meio do silêncio e do nada,
O amor se fazer ouvir
Ao som dos versos de um raio.



quinta-feira, 4 de abril de 2013

Faxina.

Um dia eu arrumei aquela gaveta velha.
E tirei de dentro dela
Aquela antiga caixa de recordações,
E dentro tinha mais coisa do que só poeira:
Um botão de calça colorido,
Mas já desbotado;
Um papel de bombom amassado;
A única pétala de uma rosa morta.
E no fundo da caixa,
Sorrindo pela alma,
Você numa foto.
Meio esquecido, mas ainda meu;
E mesmo depois de tudo,
Essa lembrança me doeu
Como doem as cicatrizes do que já foi curado.
E todos os dias eu passei a te encontrar:
Abria a caixa,
Olhava dentro dela
E entre tanta coisa antiga
Você continuava lá.
E cada vez era uma nova lembrança,
Cada dia uma nova esperança,
Um novo medo
E uma nova angústia pela sua falta.
Até que o tempo passou tão ligeiro
E em mim criou mudanças tão drásticas
Que esqueci-me da caixa,
Das recordações
E até de você.
Um dia resolvi arrumar este velho coração.
E no meio de tanta poeira
De tanta emoção passada
Eu nem podia imaginar:
Que debaixo de uma mágoa,
Entre o amor e a pura raiva
Você continuava lá.

(E é por isso que eu prefiro minha vida bagunçada.)






quarta-feira, 20 de março de 2013

Constatações do meu mundo.


1. Abelhas fazem mel para que os meninos se lambuzem de doçura.
2. O beijo apaixonado é uma transfusão de almas.
3. Estrelas são pensamentos bons que subiram ao céu.
4. Músicas são cartas de Deus para a humanidade; flores são bilhetes.
5. Quando chove a vida se renova.
6. A luz pode até ser a do sol, mas o brilho é da lua, único e fascinante.
7. As preces não nos aproximam de Deus, elas nos aproximam de nós.
8. A gravidade não é a força que nos faz cair ao chão, mas sim o que que nos permite ficar de pé.
9. Ser sincero e honesto com os outros e com você mesmo é uma das coisas que mais exigem coragem.
10. As coisas que não tem preço são justamente as que valem mais.

domingo, 17 de março de 2013

Um menino pobre. Um menino rico.

Ele era um menino pobre.

Em sua infância paupérrima e desesperada nunca soube, na prática, o que era um videogame. Apenas sabia o que de longe se anunciava nas entradas das lojas e nas propagandas da TV, mas desde cedo entendeu que o valor da mercadoria era quase o montante dos salários dos pais, já tão ínfimos. Mal tinha comida em casa todos os dias. Não os culpava. Via o esforço diário, via o suor na testa, via a falta de ambos durante o dia. "A vida não é fácil", dizia a mãe, repetindo a ladainha diária.

Não, não era.

Tinha que estudar e ser alguém na vida. Quem sabe chegar a ser doutor que nem o filho da vizinha, que agora só aparecia no subúrbio pra mostrar a nova moto (e na verdade não era mais que um técnico em qualquer coisa, que se gabava do que podia e não podia ter). Estudar era salvação e deleite: estudava as imagens dos livros de escola pública, usados por mais de mil alunos antes dele, e sabia de coisas de outros mundos. Se não sabia, imaginava. Se não imaginava, sonhava. E assim vivia.

Era um menino tão pobre, mas tão pobre, que nunca andara de carro. Nunca. Só os via passar. No entanto, conhecia todas as marchas e manhas do ônibus. Sabia qual pegar para qualquer canto da cidade. Era um menino esperto. Outro dia espantou a vizinha fazendo o cálculo de um troco e lendo um pedaço do jornal. Falava sobre política, algo assim que ninguém entende. Mas fingiu entender bem. Estufou o peito. E o povo da comunidade foi ao delírio.

Era tão pobre que já teve todo o tipo de vermes existentes na face da terra. Culpa da terra em frente à casa. A mãe sempre reclamava dizendo que só tinha "porcaria" no chão. Mas era lá que brincava de ser melhor. Era lá que galopava desejos indomáveis como corcéis de fogo e era lá que podia se imaginar num lugar diferente, que não tivesse aquele mau cheiro insuportável de sonho destruído.

Não entendia muito de ciências ou de geografia, mas sabia caçar gafanhoto como ninguém! Também aprendeu a entender a lua cheia e saber quando ia chover. Sua avó ensinou. Um dia ela morreu mas ele nem soube: a vida já era por demais triste naquele lugar e seus pais não achavam certo que o mundo lhe tirasse uma das únicas coisas boas que tinha. Não contaram e ele acreditou que a avó estivesse doente das pernas.

Era um menino tão pobre que não tinha livros. Só os da escola, que recebia por causa de um programa de governo e que, via de regra, ninguém fazia muita questão. Sua maior diversão ao receber o livro da série correspondente era justamente ler os textos que estavam na parte de português, ainda que não tivesse uma leitura correta de todos os pontos e vírgulas.

Um dia perguntou à mãe o que significava uma palavra no livro. Mas ela não sabia. De fato nunca ouvira falar em "Dádiva" nenhuma. Talvez, se frequentasse a igreja. E o menino colocou esse nome na cachorra, que antes quase se chamara "xulinha".

A maior ambição desse menino pobre era ter um armário. Sim, um armário desses que todo dia estão em queima de estoque nas lojas de eletrodomésticos. Possuía, na verdade, um projeto de guarda-roupa que desabou e ficou inclinado. Não tinha portas e as coisas se amontoavam na diagonal, o que criava cada vez mas bagunça. Um dia compraria um armário para si e para os pais.

O sonho deste menino era morar numa novela. A velha televisão mostrava lugares maravilhosos e casas luxuosas, com pessoas sorrindo pra lá e pra cá. Em nada se pareciam com o barraco onde morava. E tinha tantos armários! Uma vez a mãe disse que pra conseguir tudo isso ele tinha que sair dali, tinha que deixá-la e deixar também o pai, e ouviu desse menino pobre:
- Então não vou. De que adianta ter tanto armário se não tiver vocês pra colocar roupa dentro?
Não entendeu porque a mãe chorou e, tão logo ficou envergonhado, saiu pra se sujar de terra.

Era um menino muito rico.
Uma dádiva.






sexta-feira, 8 de março de 2013

Ah, essas mulheres...

As mulheres são, com toda a certeza, o ser mais belo que já andou sobre a terra. Não me refiro aqui, como alguns poderiam pensar, aos peitos, bundas, coxas e demais curvas que inspiram desejo por onde passam.  Não. A beleza da mulher vai muito, muito além disso: encontra-se dentro do seu olhar. Um homem pode olhá-la com esmero enquanto ela está despida, mas se não prestar atenção naqueles olhos femininos, se não se deixar levar por aquela íris ansiosa, terá deixado passar toda a beleza.

E como são corajosas essas mulheres! Como elas lutam! Dia a dia, mês a mês, pelos sonhos que são mais dos outros do que delas próprias. Como enfrentam com notável sabedoria o preconceito, as ironias, os salários mais baixos do que de alguns homens, os tabus, os abusos. Como conseguem carregar em seus braços não o peso de uma criança, mas o peso do mundo, o peso de todos os problemas juntos, e ainda sorrir com graça e leveza durante todo o tempo!

E como são frágeis essas mulheres, diriam uns. Choram por tudo, diriam outros. Declaram-se, descabelam-se, sofrem. Mas eu digo a vocês, e com conhecimento de causa: COMO SÃO FORTES ESSAS MULHERES! Como conseguem ser tão transparentes, tão honestas, tão sinceras em suas mentiras sobre o sentimento que fingem não ter. São como borboletas coloridas: alguns dizem que são presas fáceis porque chamam atenção, porque se mostram demais, mas eu não posso deixar de pensar que na verdade as mulheres são como borboletas porque tem asas destemidas.

Como se doam as mulheres! Doam-se como roupas velhas destinadas a um brechó, como sapatos sem sola. Mas o valor dessas mulheres que se doam, que se entregam sem nada pedir em contrapartida, nem em quilates pode ser mensurado.

E como sabem amar! Quando amam, quando amam de verdade, não entendem de limites ou empecilhos. Não sabem o que é isso. Simplesmente abrem suas asas de borboleta e deixam-se levar pelo que sentem, pelo que dá sentido a suas vidas. Mas se não for bom, se não fizer bem, se não der certo, como se recuperam! Encolhem suas asinhas, fecham-se por um tempo. Mas logo refletem, revivem e voam novamente porque sabem que amor é a única coisa que vale a pena experimentar.

E somente elas, somente as mulheres, conseguem ser tão desprendidas de seu próprio corpo e de suas vidas a ponto de abandonar tudo para gerar outra vida. E como conseguem sentir as dores dilacerantes do parto, com um sorriso no rosto e lágrimas de felicidade nos olhos. E depois que os filhos crescem, vem as preocupações e todas percebem que esses desprendimento é pra vida toda.

Aliás, nenhum ser, nenhum, consegue lidar com tantas coisas ao mesmo tempo, consegue dar conta de tantos problemas e dos seus próprios com tanta maestria. Claro que tudo envolve uma certa confusão, alguns fios de cabelo arrancados, de vez em quando uma certa dose de raiva e lágrima, mas depois todos esses problemas se resolvem.

E choramos enquanto rimos, e ficamos com raiva dizendo que está tudo bem, e olhamos pro guarda-roupa entupido como se olhássemos para um deserto ermo. Sim, ficamos de TPM, temos alterações de humor, necessitamos de chocolate em doses homeopáticas quase todo dia, somos sensíveis, carinhosas, generosas e sabemos aliviar dores como ninguém mais consegue.

Alguns homens nos impuseram o rótulo de contraditórias.

Mas para mim todas as mulheres querem se sentir um pouco de tudo, querem ser todas ao mesmo tempo. E no fim das contas, onde homens veem contradição, eu vejo completude.

Um feliz dia da mulher a todos esses anjos femininos que me inspiram dia a dia.







sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A loja que vendia tempo.

"Vende-se tempo" - era a inscrição de uma placa logo em frente à loja da esquina.

Vendia tempo de todas as formas, tamanhos e cores: tempo multicolorido e retangular, grande, pequeno, em dúzias, em pequenas caixas, em saquinhos de papel. Vendia tempo aos montes e em grandes quantidades.  
O estoque era interminável.Vendia-se tempo como se vende água.

Homens encoleirados em suas gravatas compravam caixas e mais caixas de tempo para suas famílias. Mulheres fúteis e plastificadas compravam tempo para seus filhos. E os filhos, universitários jovens e inseguros, compravam tempo para os estudos. Não preciso dizer que a loja era um sucesso.

Pessoas vinham de todas as cidades para comprar tempo. E não era tão caro, para felicidade de todos. As opções eram vastas. Era coisa de se ficar maravilhado!

Mas como seria possível vender tempo? Se os segundos não se alargam,os dias não se estendem para além das 24 horas e o passar dos meses e anos é sempre esta marcha certa, como dispor de mais tempo? Como obter mais minutos? Esta dúvida sempre assomava toda vez que eu via alguém entrar na loja e sair com uma caixa ou um pacote.

Até que eu mesma resolvi comparecer a esta loja e fiz questão de comprar uma pequena parcela do produto. "Quero 1 pacote de tempo para mim mesma" - pedi ao homem do balcão. E a caixa dentro da qual estava meu tempo era toda espelhada por fora. Genial. Resolvi abrir quando chegasse em casa. E quando olhei dentro da caixa, que surpresa!

Por isso não me admirei quando a loja teve de fechar as portas. Assim que vi o que tinha dentro da caixa, eu soube que alguém sem sensibilidade alegaria que fora vítima de propaganda enganosa. E assim aconteceu: um advogado engravatado - tinha que ser um deles- foi reclamar no Procon. A loja levou uma multa pesadíssima e teve de fechar.

Fiquei triste com esse episódio. Pessoas tão delicadas e de ideias tão geniais não mereciam ser penalizadas assim. Paciência. Depois de um tempo eu soube que eles abriram outra loja e, agora sim, não havia mais propaganda enganosa, embora vendessem o mesmo produto.

"Vendem-se agendas e calendários" - é a inscrição atual.
É uma loja de prioridades.


terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Escrever - alma de barriga cheia.

Respiro profundamente. Depois, sento-me diante do computador, observando a tela brilhante onde um papel branco virtual me observa. Às vezes tudo isso acontece na minha cama: eu com um caderno velho no colo e uma caneta de escrita macia na mão.

Na cabeça, lampejos de pensamento. Esboços de ideias. O menino que vi correndo, a mulher que ria de si mesma, o homem suado do trabalho semi-escravo ou, quem sabe, a velha que observa da janela de uma apartamento o mundo lá embaixo. O que não vi, o que queria ter visto, as risadas, as conversas transeuntes, as melancolias surdas de tão baixas.

Mas tudo isso, na minha mente, são só fantasmas esvoaçantes. Pequenas luzes que vagam. Nada cria forma e na cabeça só o "zumzumzum" dos meus pensamentos arredios. Nada é pronto. Nada é acabado.

Até que magicamente, quase que seguindo a distância mínima entre o papel e a caneta, ou entre o dedo e o teclado, me vem o assunto, assomando das profundezas do meu existir. Vem aquele pedaço de mim que escrevo numa tentativa desesperada de não ser esquecida e virar um objeto embaçado nas mentes alheias.

Escrevo um pouco do meu silêncio, da minha voz, um pouco das minhas angústias, da minha vida. E mesmo quando retrato outra pessoa, às vezes é de mim mesma que falo. Escrevo amores, escrevo o sabor de caju e meu riso, ah, esse é pura sinestesia.

Escrever me aproxima de Deus, dos anjos e santos, do místico. Me aproxima da luz e da liberdade que não existe no corpo físico. Escrever me transporta, me conduz e me satisfaz, como se minha alma pudesse estar de barriga cheia.

Quem dera eu pudesse escrever a felicidade. Mas ela não se escreve, não se define, é pra sempre a massa alegre e multicolorida que aqui passeia. A felicidade não pode ser escrita pois ela existe no ato de procurá-la. Não se ata. Não se amarra. A felicidade é solta como um nó mal feito. Mas no escrever a tenho.

Uma vez um menino disse: "Sabia que você vai ser escritora?". Fosse outra época, eu acreditaria só no amor e não no talento. Hoje, depois de tudo, só sei da vocação: o amor, malandro que é, pode virar melancolia escrita num papel molhado de lágrima. Mas quem sabe? Talento e amor são frutos da sorte. Talvez...

Ser escritora me traz esse sopro de vida eterna, essa delícias, esses prazeres quase insustentáveis, invejáveis. Um escritor não escreve palavras, letras, nem frases completas. O escritor escreve a si mesmo. Um escritor escreve sonhos e nisso não vejo profissão mais perfeita.

Agora, findo o texto, finda a ideia, depois que escrevi, retiro-me. As mãos deixam o portal e os olhos ficam opacos pela falta da luz que vinha da tela. Acabou. Escrevi mais uma história, mas tudo que fiz foi escrever sobre mim. Respiro fundo novamente. É uma despedida sem dor. Na cabeça tudo gira em pensamento e continuidade, no peito a chama permanece luz e na barriga da alma, a sensação da mais pura saciedade.

Escrevo.

Leiam-me.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Sobre avós.

"Vovó, por que não tem dentes?
Por que anda rezando só.
E treme, como os doentes
Quando têm febre, vovó?

(...)
Meu neto, que és meu encanto,
Tu acabas de nascer...
E eu, tenho vivido tanto
Que estou farta de viver!"


Minha avó costumava recitar estes versos de Olavo Bilac quando eu era pequena. Apesar de achar graça da primeira estrofe, eu sempre senti uma pequena tristeza com a segunda parte. Mas minha avó ria e ria e me mostrava que não era sério aquilo de "estar farta de viver". E aí ríamos nós duas juntas. E qualquer fiapo de tristeza se dissipava naqueles risos.

Engraçado...as avós tem uma doçura que ninguém consegue ter - acho que por isso muitas delas são diabéticas. São tão doces e tão especiais que ninguém consegue se zangar com avó. Minha avó uma vez me mandou calar a boca. Fiquei com raiva dela por 10 minutos. Depois ela me apareceu com uma pipoca tão doce quanto ela e eu parei de ficar zangada.

Pensando sobre as avós, descobri porque a maioria delas não enxerga bem. A razão é bem simples: elas não precisam de olhos pra enxergar o que se passa em nossas almas. Elas conseguem ver e talvez o mais especial é que elas falam justamente o que a gente precisa ouvir como se não fosse direcionado a nós, como se elas conseguissem nos poupar da vergonha que às vezes sentimos de nós mesmos.

E como são contraditórias essas avós! Elas aparecem com essas marcas na pele envelhecida, com esse andar cansado de quem já viveu de tudo e ao mesmo tempo nos brindam com uma ingenuidade quase infantil. E parecem crianças em lojas de brinquedo. E parecem adultos esperançosos no futuro.

Avós tem o dom de contar e cantar casos repetidos e histórias que já ouvimos mil vezes. Avós tem o dom de dormir muito tarde, acordar muito cedo, cochilar durante o dia todo e mentir quando são pegas dormindo, como se estivessem fazendo algo errado. Avós tem sempre balinhas de mel na bolsa, junto com um saco plástico que ninguém sabe pra quê serve.

Mas avós também tem o maior de todos os dons, o melhor antídoto para qualquer tristeza (de coração partido a morte de cachorro), o mais poderoso de todos os gestos de carinho: o dom do cafuné. Cafuné de vó é o mais perto do paraíso a que se pode chegar em vida. Avó tem mão pesada e lenta, e vai falando devagar com uma vozinha um pouco rouca, embalando o mais tranquilo de todos os sonos.

Avós demandam paciência: elas nos seguem com passos lentos, são inseguras e frágeis. Seus ossos não nos aguentam mais nos braços - e nosso peso também não ajuda. As mãos agora tremem, fazendo quase uma sinfonia com o pires e a colherzinha à hora do café. E a gente sente essa fragilidade quase como uma despedida, mas só até nos depararmos com o que de mais firme elas possuem: este amor açucarado.

E de tão doces que são, suas existências parecem finos flocos de algodão de circo que vão sumindo no céu da boca. E uma dia, tal qual o algodão que se desfaz ao menor toque, elas também desaparecem, deixando uma saudade azeda, outras vezes amarga, mas sempre a mesma saudade do melhor cafuné e das histórias que sabemos de cor.

Dizem que a gente só aprende a ser filha quando se torna mãe e que só aprende a ser mãe quando se torna avó. Pode ser. Se assim for, minha avó é, além de avó, a melhor mãe. Mas avó é mais que mãe. "Avó é mãe com açúcar", li outro dia numa camiseta, e isto, pra mim, significa que são puro amor.






quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Histórias de amor inacabadas.


É sempre a mesma expectativa,
A mesma história frustrada.
Que sabe-se-o-quê da vida
Fez com ficasse apagada.
Fez esmorecer.
Fez de todo o amor certo
Espectro do que podia ser.
E basta uma leve fagulha,
Um leve sopro de reencontro,
Que todo o amor paralisado,
Recomeça do mesmo ponto.
Aí vem uma tal de "hora certa",
Algum certo impedimento,
Aquele "não era pra ser",
Aquele "não é o momento",
Aí vem o raciocínio,
Vem o fio do pensamento,
Homem buscando razão
Naquilo que por natureza
Carece de explicação.
Então parece terminar.
A gente se desespera, se descabela.
Promete nunca mais voltar.
A gente se exaspera,
Diz que não espera,
Jura pra si não amar.
Até que se conforma.
O coração sossega.
E a gente, então, recomeça.
Foi melhor assim?
Como saber?
O pior não aconteceu nem deixamos acontecer.
O que vivemos foi um amor inacabado.
Essa constância interrompida.
Este sabe-se-o-quê da vida
Que transforma cor em desbotado.
Mas, penso eu com meus botões,
Em minha experiência contida,
Histórias de amor assim são melhores que as resolvidas:
As resolvidas, quando terminam, findam.
As inacabadas jamais acabam,
Só cochilam.






sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A imortalidade num pé de manga.



Pra quem não sabe, pé de manga é um dos maiores desafios de uma criança. É o nível mais elevado na escala evolutiva dos meninos de oito anos que sobem em árvores, logo acima da árvore da goiabeira. É mais alto, dá mais medo, mas os galhos são mais grossos e ásperos, dão mais sustentação.

Uma das maiores frustrações da minha vida era a falta de um pé de manga no meu quintal. Mas isso foi solucionado, pois quis Deus - e odiou minha mãe - que no quintal da vizinha tivesse um pé de manga bem alto, desses que provocam a imediata vontade de escalar até o mais alto galho.

Na minha época subir no galho mais alto do pé de manga era a maior glória que uma criança podia ter e também o maior desafio. Era a receita completa da felicidade: uma dose de aventura e de vitória, misturada com uma pitada de segredo - este ingrediente odiado pelas mães temerosas de fraturas expostas.


Mas valia a pena: cada galho, cada metro, cada lugar escondido e jamais alcançado representava a mais deliciosa das conquistas. Talvez em nossas ilusões da infância, o pé de manga era um ser forte e extremamente inflexível que ousávamos desafiar e que tantas vezes vencemos, cada um a seu modo.

Lembro que no alto ficavam as melhores mangas. Aquelas rosadas, grandes, mas não tão maduras. Estavam no ponto certo, "de vez", como chamávamos. E aí o segundo maior risco: comer manga com sal. Quantas vezes experimentei a subversão ao levar sal e comer a manga de maneira tão exótica e perigosa! - a combinação funesta de manga com cloreto de sódio, em nossas imaginações, só se comparava ao que hoje corresponde ao arsênico.


Desta maneira saboreávamos a manga junto com um pouco da imortalidade digna de grandes heróis. Aliás, chego à conclusão de que os meninos de oito anos são os seres mais corajosos que existem: ninguém mais enfrenta o medo de ossos quebrados, o medo da morte por envenenamento e o medo de uma mãe furiosa ao mesmo tempo.

Hoje eu mesma crio meus pés de manga e eu mesma tenho medo de escalá-los...Os galhos são outros, é verdade: carreira, relacionamento, amizades, família; mas eu não deveria ter tanto medo de me desequilibrar. Nem sal eu levo mais. Piso cada galho de uma maneira trôpega e ridícula, como Sinha Vitória andando de salto alto, como um equilibrista bêbado numa corda bamba.


Não sei, acho que falta em mim um pouco da coragem dos meninos de oito anos que sobem em árvores. Eu queria voltar a ser um deles. Teria o reconhecimento e respeito dos demais meninos. Chegaria em casa com um sorriso orgulhoso e triunfante e conseguiria esconder da minha mãe meus êxitos mais perigosos para então repeti-los cem, duzentas vezes. Experimentaria a felicidade infantil e perene. Seria imortal.