segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Amanhã.

O amanhã é invisível.
É sombra.
Não tem cheiro,
Não tem cor,
Não tem forma.
Não tem sabor.
O amanhã não tem nem porquê.
Não tem história.
Não tem saber.
Pode ser e pode não ser.
O amanhã é um velho novo que espera num telhado.
A nos jogar pedrinhas na cabeça
E nos fazer olhar pro lado.
O amanhã é uma criança velha
Que se ri dos nosso planos
E nos irrita por tanta espera.
O amanhã quem o conhece?
Quem?
O amanhã é ninguém.
Mas pode ser eu ou você.
Ou nós dois juntos.
O amanhã pode ser o mundo.
Ou pode ser nada.
Pode ser apenas uma estrada
Mas não é um lugar.
O importante do amanhã é só caminhar.
Percorrer, correr, andar.
O amanhã é intocável,
Incompreensível.
O amanhã é, de fato, risível.
E dele nos rimos de todo.
É sonho,
É doce.
É esperançoso.
O amanhã de ontem é hoje.
O amanhã de hoje é Ano Novo.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Ostras.

Bichos que você não entende, em geral, são desprovidos de beleza. Ostras, por exemplo, são bichos muito feios. Dentro da concha você não entende o que se passa: cadê olho, boca, orifício respiratório? Ninguém distingue. Acho que é por isso que as ostras passam quase despercebidas. Ninguém lembra de "ostra" quando brinca de adivinhar nomes de animais com "O". Ninguém desenha uma ostra no mar. Há peixes multicoloridos, cavalos-marinhos e até polvos, mas ostra não. Tsc tsc. Nenhuma.
 
Sempre achei que esta fosse a razão de ser do termo "ostracismo". "A atriz fulana caiu no ostracismo". Isso significa que ninguém mais liga para a fulana. Ninguém mais sabe dela. A fulana foi esquecida como as ostras no fundo do oceano. Não, o termo vem de outra origem, mas, cá entre nós, é bem melhor a minha versão.
 
Eu mesma só vim a conhecer as ostras numa panela com dendê e outros mariscos, e mesmo assim sem concha. Continuava feia. Muito feia. Mas era gostosa e o molho disfarçava a feiúra da ostra. Crua eu nunca provei: para além das propriedades afrodisíacas, imagino que não deve causar uma boa sensação aquela ostra mole descendo pela garganta.
 
Só que a ostra é um bicho intrigante. Ostras produzem pérolas. Pérolas! Nenhum outro bicho mais bonito consegue produzir coisa tão majestosa quanto uma pérola. Impossível. Digamos que a feiúra da ostra é que lhe permite as pérolas. Não fosse aquela anatomia as pérolas não existiriam. Já imaginou um coala produzindo uma pérola? Ou um gato? Pérolas são joias raras vindos de um ser subestimado.
 
Lendo sobre como as ostras produzem pérolas, aliás, foi que passei a nutrir uma certa simpatia pelo bicho. Coitadas. Estão ali com as conchas abertas, tentando se alimentar, e de repente - não mais que de repente - são invadidas por um ser ou substância estranhos. A reação da ostra, para se proteger, é isolar o invasor, lançando sobre ele camadas e camadas de madrepérola. A sensação deve ser tão angustiante quanto areia nos olhos da gente. Aquilo fere e irrita até que a proteção natural cumpra seu papel. No caso da gente, a lágrima. No caso da ostra, a pérola.
 
Tem gente que vive que nem ostra, não porque seja feio ou tenha sido excluído da sociedade, mas porque sedimenta proteção em feridas que já deixaram de doer. Na ostra é bom: o resultado é sempre uma joia valiosa. Na gente é péssimo: o resultado é só medo, angústia, desconfiança e hesitação. E nunca mais uma concha aberta a outros "invasores".
 
Por isso eu acho que o ser humano é o bicho mais complicado que existe. Não que a anatomia seja difícil de entender: a gente vê o nariz, olho, boca e entende ele. É um bicho bonito, em geral. Mas nesse quesito de saber lidar com sofrimento, a ostra dá de 10 a zero. Na próxima vez que eu for a uma feira eu compro uma ostra e crio em casa. É um bicho feio. Muito feio, é verdade. Mas quem sabe eu aprenda com ela a cultivar pérolas de vez em quando.
 
 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Nenhuma carta de amor.


Nenhuma carta de amor pode ser tão mímica,
Pode ser tão trêmula,
Pode ser tão cálida.
Nenhuma carta de amor pode ser tão tímida
Ou tão escancarada.
Nenhuma carta de amor pode ser tão romântica,
Tão ridícula,
Tão estúpida,
Ou tão estranha, de tão confusa,
Ou tão difusa, de tão exagerada.
Nenhuma carta de amor pode ser tão nua,
Pode ser tão sua,
Pode ser tão eu;
Nenhuma carta de amor pode ser tão nós,
Pode ser tão voz,
Ou tão grito.
Nenhuma carta de amor pode ser tão livre arbítrio.
Pode ser tão suspiro,
Pode ser tão algoz.
Nenhuma carta de amor pode ser tão simples,
Ao mesmo tempo tão requinte,
Tão cheia do que senti.
Nenhuma carta de amor pode ser tão dolorosa
Depois de ler, tão rancorosa
E saudosa do que não vivi.
E ainda depois da lástima,
Do ponto final na folha pautada,
Apenas uma certeza restou:
A de que nenhuma outra carta será tão lágrima,
Será tão bonita,
Será tão rica ou tão bem escrita,
Quanto a que pra ti escrevi
No tempo em que soube do amor.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Eventos acontecem.


O mundo está cheio de gente que existe. Infestado. Tem mais de 7 bilhões existindo por aí e podemos atestar isso através de nossas experiências sensoriais mais simples: vemos mais de uma centena de pessoas por dia, esbarramos nelas pelas calçadas e passarelas lotadas, sentimos o cheiro dos desodorantes e perfumes misturados ao suor do trabalho. O cotidiano nos reserva esse imenso encontro de desconhecidos nas padarias, no trabalho, nas ruas, nos supermercados, nas farmácias, nos shoppings, na praia. Estas pessoas existem, assim como existimos em algum momento pra elas.

Mas há pessoas, umas poucas nesse universo de gente, que não apenas existem. Há pessoas cujas lembranças duram mais que dois milésimos de segundo ou o cheiro instantâneo de uma colônia barata que se vai com o primeiro vento. Há pessoas cujo contato, ainda que efêmero, deixa em nós uma marca tão patente, tão visível, que permanecem em nós após o encontro promovido pela rotina. Estas pessoas acontecem. São eventos.

E por serem eventos, estas pessoas tem todas as características que só os grandes acontecimentos possuem: é impossível contar sua própria história sem citar aquela pessoa; se você fizesse uma linha do tempo de sua vida - dessas que se faz na escola sobre D. Pedro I - haveria a marca do dia em que conheceu aquela pessoa; aquilo que você é passa a ter relação direta com aquilo que a pessoa é pra você.

Se você teve a chance/sorte de ter uma vida coroada de pessoas-eventos, agradeça. Comemore. Ria. Espalhe ao mundo sua felicidade. Os bons eventos nem sempre costumam acontecer tão facilmente. Alguns chegam juntos. Outros demoram meses e meses para acontecer. Tem gente que passa toda a vida almejando acontecimentos tão marcantes. Tem gente que é mais espectador. Tem gente que acontece com uma frequência assustadora. Mas todos, de uma forma ou de outra, acontecem.

Na minha vida alguns desses eventos são tão bons que eu pediria empréstimo para comprar ingresso. Compraria com antecedência e esperaria com ansiedade. Alguns valem meses de espera na porta, munida de uma barraca de camping e cobertor. Eu colocaria uma foto do ingresso no facebook e escreveria "Faltam __ dias!". Correria pra pegar o melhor lugar e documentaria todo o show com olhos vidrados e memória acesa, cheia de admiração. É o que me fazem sentir.

Mais que isso até: posso dizer que muitas das pessoas com as quais convivo são verdadeiros festivais! São pessoas completas! Se apresentam de várias formas e em cada momento são únicas: às vezes tem uma carga dramática que me faz tensa ao assistir; outras vezes são dotadas de uma leveza que me fazem corar e esboçar o mais sincero sorriso de contemplação. Ser espectador de alguém é tão sublime quanto ser um evento na vida de uma pessoa. 

E em nossos estranhos encontros de desconhecidos fiquemos alertas: infelizmente não se vendem ingressos de pessoas. Não temos hora ou lugar marcado. Não podemos esperar na fila. Não podemos ter uma prévia de grandes shows. E também os eventos não esperam pra acontecer. Não há necessidade de casa lotada. É tudo sempre uma questão de oportunidade e coração aberto. De se mostrar de verdade e também de assistir aos outros. É ser sensível a todos aqueles que podem virar uma marca em nossa linha do tempo: nossa história a qualquer momento pode se confundir com a história de um encontro.

Nem todos que passam por nós apenas existem. Uns acontecem. Sejamos bons espectadores.








quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O botão que tinha medo de desabrochar.

Era só um botão de flor, desses pequeninos e insignificantes, que a gente costuma pisar sem nem perceber. Escondido na folhagem, por entre os ramos e folhas das demais flores, crescia pequeno e fechado, ouvindo o barulho dos beija-flores e das abelhas. Ainda não tinha desabrochado e isso era menos por vontade do que por exigência da natureza: não desenvolvera ainda a grandeza das pétalas e por isso mesmo esperava, impaciente, o dia de se abrir ao mundo.

Certa feita, ouviu de um besouro que passava a triste história de uma rosa amarela, que ao se abrir, espalhando perfume e cor, tivera a vida ceifada por um jardineiro e acabou servindo de enfeite no vaso do criado-mudo de uma madame.

Então tomou pavor da ideia de desabrochar. Não queria acabar como a rosa amarela, que mal tivera tempo de experimentar o abraço quente do sol de primavera sobre suas pétalas coloridas. O abrir-se era um risco muito grande, ainda que não passasse de uma margarida. O medo, então, se apoderou de cada pétala e cada porção da seiva fresca e jovem. Decidiu não se abrir. Nunca. Se pudesse, cresceria sempre no escuro de si mesma, protegida dos perigos que só atormentam a vida das pequenas flores.

E assim fez.

Dia após dia a florzinha aproveitava o que podia do sol em suas folhas e, estando repleto de nutrientes o solo, tratava de crescer sem ver a luz. E passaram-se semanas, até que a florzinha cresceu o suficiente. Estava pronta. Ainda com medo, relutou. Preferia continuar naquele contorcionismo de pétalas a deixar-se ferir de morte por um jardineiro cruel. Ouviu quando a tesoura gigante e afiada levara as demais e não queria ter o mesmo fim. E assim ficou só.

As borboletas e joaninhas desapareceram. Os besouros visitavam as flores da outra parte do canteiro, na certeza do pólen dourado. E a sensação de proteção, tão querida dos outros tempos, desapareceu. Era um alvo fácil agora. Atormentou-a a solidão adubada. Fechar-se ao mundo pode não ter sido uma boa ideia: ainda que tenha prolongado sua ínfima existência, não lhe garantiu a eternidade.

Pelo contrário, morreria igual às outras, só que machucada pela certeza de uma vida sem significado. Jamais veria os olhos humanos de admiração, não sentiria as carícias do vento da tarde, tampouco saberia o peso que tem o orvalho. Desconfortável e atrofiada, morreria feia e seca e talvez não fosse digna nem de enfeitar o próprio túmulo, se houvesse nesse mundo enterro de flor - esta história de enfeitar túmulo ela sabia porque um crisântemo contara-lhe o destino de seus irmãos, numa coroa de flores de velório.

Rápido, tratou-se de mexer as pétalas dobradas. Ia doer. Ela tinha certeza que doía. Era inevitável. Algo que se fecha por tanto tempo tem certa resistência à liberdade - e nisto se iguala aos corações. Mas aos poucos avançava até sentir os primeiros raios de sol. Desabrochou por completo. Era uma flor meio torta, é verdade, mas via-se com clareza que era uma flor.

E tão logo se abriu, um pássaro descuidado esbarrou nela, ferindo-a com o bico. As abelhas roubaram-lhe o pólen com violência. Os besouros subiam e desciam por suas pétalas, enquanto depositavam ovos de pequenas larvas. Cada promessa dessa primavera doeu.

Após meses, quando chegou o inverno, fechou-se novamente. Ainda lhe doíam as pétalas machucadas e o caule mordido pelas formigas. Estaria um tanto mais segura. Cansada que estava das mutilações, poderia até escolher se fechar novamente. Mas não. Quando chegou o tempo novamente foi a primeira a se abrir e se mostrar.

Percebeu que desabrochar fora sua melhor decisão - se é que podemos imputar ao livre arbítrio fato tão natural. Sim, fora uma decisão: também nós, humaos, somos naturalmente impelidos a viver, mas alguns decidem não fazê-lo. Se não tivesse escolhido se abrir, ainda que para conhecer a dor, seria para sempre um botão de flor insignificante e pequeno, desses que qualquer um pisa sem nem perceber. Mas para além das ferroadas dos marinbondos, da apropriação do pólen, e das pragas que llhe afligiam, ela enfim sabia bem o que era.

Ela era uma flor, não um botão.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A cigana.

Sentada na praia eu observo as ondas virem e irem naquela cadência costumeira. Não sei se o som do mar ajuda, mas o fato é que pra mim as ondas representam uma música cheia de acordes que vem e voltam. É uma música gostosa de ouvir. Calma. Tranquila. Paciente.

Observo a parte mais escura do mar. Lá parece mais calmo, sem ondas, mas tenho a impressão de tormenta. Não sei se por causa dos filmes, ou porque o mar aqui perto é mais claro, mas no fundo eu tenho a impressão de naufrágio. E deve ser mesmo. Nunca passei da linha da cintura. Mas fico aqui observando o mar, ao longe, na esperança de ver a própria Iemanjá surgir em alto-mar.

Não, não sou "devota" de Iemanjá. Só joguei flor uma vez, mas simpatizo com essa figura feminina das águas. Não gosto quando zombam dela. Tampouco entendo porque jogam na água coisas de tão baixa qualidade. Melhor que joguem coisas sem preço, tipo as flores: a serventia deve ser maior do que o esmalte seco colorido. Gosto dela. Acho que ela deve simpatizar comigo também, se ela existir mesmo. Pelo sim pelo não, não vou perturbá-la no fundo. Deixa ela lá e eu aqui na areia.

O melhor da praia é que é um dos únicos lugares onde constância e acaso gostam de se juntar. A certeza do mar para a areia é a mesma certeza da areia para o mar. Vão se encontrar sempre, enquanto houver praia. Ao mesmo tempo algumas coisas são tão incertas, apesar de insertas naquele ambiente... Eu, por exemplo. Provavelmente, nem a areia nem o mar esperavam encontrar uma visitante tão súbita (tempão que não vou à praia), mas eu aconteci. E a praia aconteceu pra mim num dia de terça-feira.

Sentada ali o tempo passa. Eu observo tudo. Alguns homens jogam futebol por perto, gritando a posse da bola. Outros passam vendendo coisas. Me oferecem picolé, óculos escuros, protetor solar, acarajé. Tudo. Eu recuso tudo também: minha ideia era ir à praia só comigo mesma e não carregar mais nada. Nem preocupação nem planos.

Ao longe uma figura diferente. Um tanto ridícula, para nossos padrões. Repenso essa frase. Ela é só diferente de todos nós. Fico imaginando quantos graus fazem embaixo do vestido cheio de babados e cores. Uns quarenta graus, no  mínimo. É uma cigana.

- Posso ler sua mão?

Eu rio. Digo que não com um sorriso tímido. Não acredito nessas coisas.Tem gente que tem medo. Eu não, só tenho descrença. Se ela pudesse ler as mãos e saber de tudo, com certeza já teriam inventado um programa de televisão pra ela. O anonimato era a prova da mentira. Ou não. Quem sabe ela só não foi descoberta e neste caso ela mesma saberia, já que teria lido a própria mão desde pequena, ao aprender o ofício.

- Você já leu a sua? - pergunto.
Ela não respondeu. Deu um sorriso de deboche. Na certa pensava o quanto eu tinha sido insolente e precipitada. Mas não. Era só uma risada de velha zombeteira.
- Quando é com a gente a coisa muda de figura.
Ofereço minha mão.
- Você tem problema em saber de coisa ruim? - desafia ela.
- Não. Meu único problema é com coisa boa demais. Sou ansiosa.
- Hum.. Aqui diz que sua vida vai ser curta.
- Curta quanto?
- Você vai morrer do coração, fia.
Começamos bem, penso eu. E rio.
- E não diz quando?
- Não. Isso só o tempo.

Dou uns trocados. Digo que já está bom, não precisa ler mais nada não. Ela se afasta e eu continuo na rotina das ondas. O mar continua igual. A areia, um tanto mais quente. E eu continuo confortável comigo ali quietinha. Um siri aparece. Andar meio ridículo. Ridículo não, diferente. Penso na cigana. Lembro do que ela disse.

Não tenho medo de morrer. Aliás tenho, mas de morte matada: tiro, facada ou asfixia por estrangulamento. Morrer do coração mesmo eu já morri algumas vezes. Umas vezes de alegria, outras de susto. Um punhado de desilusões incrustadas nos átrios e ventrículos. Tô quase acostumada. Coração não aguenta muito essas coisas não. Nem o meu, que é novo.

Também se eu morresse ali, naquela hora, tanto faz. Quem sabe minha alma ia passear pelos terrenos de Iemanjá e pedir emprestado um esmalte. Gostei dessa ideia. Ri. Mas falando sério, se for pra escolher uma morte, que seja a do coração. Coração tem uma cadência de onda do mar. Faz sentido. Decidi que vou morrer do coração mesmo. É mais coerente com a vida que eu levo. Só não sei quando: isso a cigana não me contou.




quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Eu, um "dia das mães" e o porquê de escrever.

Sempre que eu penso no prazer que tenho ao escrever, lembro de um episódio que marcou minha vida "literária". Na época eu nem tinha blog nem nada, mas me satisfazia escrevendo mensagens de aniversário um tanto diferentes dos padrões normais. Sempre gostei de surpreender. E a surpresa foi mais pra mim do que pra minha mãe.

Quando comecei a morar aqui em Salvador, meus pais não podiam alugar um apartamento. Eu morei na casa de uma tia. Éramos 7 num apartamento de dois quartos e uma dependência. Eu, menina do interior. Ainda meio besta, meio acostumada com a vida fácil das cidades em que todo mundo se conhece. Achava difícil me acostumar ao "modus vivendi" da capital. Perdi não só a convivência diária com meus pais e irmãos, mas também um pouco da minha privacidade e conforto. Apesar disso, jamais reclamarei: foi naquele apartamento de dois quartos que eu aprendi as maiores lições da vida.

No último ano que eu passei lá, em 2008, aos 17 anos de idade, minha mãe veio passar o Dia das Mães comigo. Quem tem pai/mãe no interior sabe o quanto é difícil estar presente nessas datas, sobretudo porque não é feriado: dias dos pais e das mães são sempre num domingo e domingo já é o dia do regresso à agonia da capital. Domingo, em geral, é um dia de reflexão e melancolia para os que voltam. Sempre assim.

Aquele dia das mães de 2008, contudo, foi diferente.

Minha mãe veio e eu, que adoro preparar surpresas, tratei logo de ir procurar um presente. Minha mãe tem muito bom gosto para as coisas e isso dificulta um pouco porque o que é bonito, no mais das vezes, é também caro. E foi este o meu problema daquele ano: falta de dinheiro pra comprar presente. Ainda não estagiava e a mesada vinha nos estritos limites de minha necessidade pra transporte. Nunca sobrava. E eu não tinha cartão de crédito. O que comprar?

Precisar mesmo minha mãe tava precisando de tudo: bolsa, sapato, roupa, perfume. O problema não estava na "precisança" e sim no que eu podia comprar. Isso tudo é caro e as lojas parece que não tem noção dos preços: sapatos por preços maiores que um salário mínimo. Absurdo. Algum tempo depois, quando eu começasse a estagiar, ia saber o que é dar duro por um mês inteiro. Imagine se fosse só pra adquirir um sapato? Falta de noção completa da loja.

Acabei comprando um conjunto de sabonete líquido e hidratante do Boticário por uns R$ 30,00.

Mas faltava alguma coisa. E aí veio a ideia, colorida e esvoaçante: eu ia fazer pra minha mãe uma pasta cheia de "atividades de Dia das Mães". Não sei se na escolinha de vocês era assim, mas quando eu era do 1º Período (vulgo "Jardim I"), na semana do dia das mães, nós fazíamos várias atividades. Um dia era confecção de um cartão, no outro dia era colagem com fotos de revista, artesanato e assim por diante.

Vocês não imaginam como foi divertido e especial fazer aquilo!
Na primeira página eu copiei a definição de "Mãe", no dicionário. Depois completei embaixo com a minha própria definição.

Depois, um desenho meu e de minha mãe, do único jeito que eu sei fazer: nós duas de vestido de princesa, ela maior que eu (embora isso não se coadune mais com a realidade), um sol com óculos escuros (embora eu nunca tenha me questionado porque ele estaria usando aquilo, já que os raios de sol saem dele!), gramado baixo, uma flor, uma árvore, uma borboleta voando e ausência de proporção nas coisas (a árvore é menor que a flor e a borboleta é quase do tamanho do sol). E pintei tudo.

Na próxima folha uma história em quadrinhos, no qual eu dizia porque eu achava importante ter um mãe. Tudo isso com direito a desenhos de homens-palito e textos do tipo "Minha mãe cuida de mim quando estou doente." 

Adiante, o mais legal: uma colagem com todos os tipos de presente que eu gostaria de dar a ela. Carros importados, avião, joias, sapatos, roupa e tudo mais que eu recortei de uma revista. No topo da página a frase: "Mamãe, eu queria te dar tudo isso..."

Na página seguinte, a continuação do anterior. A frase "Mas enquanto não posso, te desejo tudo isso:" e um desenho de um presente, de onde saíam meus desejos de amor, felicidade, alegria e tudo mais de bom que só um filho pode desejar a uma mãe.

Quando eu dei esta pasta a minha mãe, sentamos nós duas na cama. Ela me olhava meio nervosa. Abriu o classificador. Fitou a capa e riu do desenho. A partir da primeira página ela só chorou. E eu também. Nossas lágrimas desciam mudas, pois nada precisava ser dito. Ao final, depois de tanto chorar com as declarações infantis e coloridas dos meus desenhos, minha mãe me disse:
- Foi o melhor presente que já ganhei na minha vida.

Aquilo me pegou tão de surpresa que nem eu mesma acreditei. E naquele momento eu senti que queria fazer aquilo mais vezes. Que queria emocioná-la e emocionar aos outros com um punhado de palavras ditas de uma maneira especial. Naquele momento é como se um anjo tivesse cochichado no meu ouvido: "Continue escrevendo, Mari, e quiçá um dia as pessoas se emocionem tanto quanto sua mãe."

Sei que escrever é um negócio de gente grande e eu estou só engatinhando nisso. Mas o fato é que eu sinto que nasci pra fazer isso, mesmo com todo o meu amadorismo. Sei que não tenho o talento dos grandes escritores, que só com uma frase bem colocada me fazem pensar sobre a vida. Não, não tenho. Tampouco tenho minha mãe como única avaliadora (embora ela leia meus textos e me diga de quais gostou mais).

Mas a tentativa de emocionar alguém é tão doce, tão recompensadora que sempre vale a pena. E sempre que alguém me fala que gostou de algo que eu escrevi, que lembrou da infância, ou que riu um bocado e se identificou com a situação, eu me vejo diante de minha mãe com os olhos cheios de lágrima e uma felicidade transbordante no peito por ter feito algo de bom pra alguém.

E é só por isso que eu escrevo e persisto. Pra me surpreender com o que posso causar nos outros e com o que eles podem causar em mim.

domingo, 28 de outubro de 2012

Ruy de cujus.

Ruy tinha o nome do seu maior ídolo. Mas não o talento. Se é certo que os nomes são colocados em homenagem aos grandes, também podemos dizer que quando os pequenos não fazem jus, tudo soa como uma ironia. Neste caso, fazia até graça.

Desde cedo quis fazer Direito. Dizia que não tinha pretensões de ser um Ruy Barbosa da vida, mas que gostava daquilo apenas "por amor ao debate" - expressão que utilizava em todas as suas peças, quando queria preencher mais linhas. Adorava aquele mundo de tribunais, togas, audiências, processos e papéis. Muitos papéis. E a importância que tudo aquilo lhe conferia: sentia-se o máximo ao passar com processos muito volumosos na rua. Parecia infinitamente inteligente.

Mas foi levando aquilo cada vez mais a sério. Já não conseguia mais realizar qualquer tarefa da vida cotidiana sem pensar nas possíveis soluções jurídicas para o caso. Antes de formar, por exemplo, alegara impedimento do pai para dirimir um conflito seu com o irmão. Usucapiu roupas que os amigos lhe emprestaram e diante da negativa da devolução, estes afastaram-se.

Certa feita, já depois de formado, foi a um restaurante fino. Clientes muito arrumados e um garçom rigorosamente vestido.
- Qual o seu pedido, senhor?
- Mediato ou imediato?
- Desculpe-me senhor. Não entendi.
- O pedido imediato é que você me sirva. O mediato é este magnífico medalhão de filé ao molho de cogumelos. Ao ponto.

Sempre acontecia este diálogo. E após, quando vinha o prato, reclamava a diferença entre este e a foto do cardápio. "Isto aqui já não é dolus bonus, meu amigo. Ultrapassa os limites da boa-fé do homem médio e ao violar minha vontade livre e consciente de adquirir o produto, posso dizer que é inválido o negócio jurídico." Mas ainda assim comia. E após comer dizia pra si mesmo "Precluiu."

Tentou alguns relacionamentos mas nunca dava certo. Diante de tanta chatice que emanava do seu ser, nenhuma das moças queria namorá-lo. Ao menor sinal de pedido de namoro, todas eram categóricas ao dizer que não. "Improcedência prima facie", pensava ele. Só recorreu de uma decisão, afinal, por ausência de fundamentação. Mas essas coisas do coração não precisam ter motivo mesmo. Basta a vontade, ou, neste caso, a falta dela. Não tinha, pois, interesse recursal. Então desistiu.

Até que achou Anita. Moça tímida e sozinha, que vivia num casarão da rua de baixo. Ao pedido de namoro respondeu que sim e aí viu nos olhos do Ruy aquela sensação de vitória num processo. Mas o romance durou pouco. Se brigavam por qualquer motivo, tinha de questionar os atos do Ruy no mesmo momento, por motivo de segurança jurídica. O que já tinha acontecido transitava em julgado e nunca mais poderia vir à tona.

Até que um dia passou a suspeitar da fidelidade do Ruy. Contratou um detetive particular. Descoberta a traição, e amparada "no mais robusto espeque probatório", como diria o próprio Ruy, foi tirar satisfação. O infeliz alegou desconstituição da prova, por ser ela ilícita, além do in dubio pro reu.
Mas não foi a absolvição que veio pela mão da justiça, e sim um glorioso tapa que zuniu no ar e acertou em cheio a face do infiel. E assim terminaram.

Trabalhou em alguns poucos casos, até o dia em que, furioso por não poder fazer carga de um processo concluso, subiu no balcão de atendimento da Vara de Família da capital e, brandindo na mão um vade mecum Rideel verde musgo, desferia "golpes de justiça" no ar, contra mosquitos invisíveis, gritando a plenos pulmões que a Constituição lhe permitia o livre exercício de qualquer profissão. Escreventes, diretor de secretaria, estagiários, partes, advogados, e a própria juíza baixinha olharam espantados aquela atuação ridícula. Foi convidado a se retirar, ainda gritando. E nunca mais voltou ao fórum.

 Este baque tinha sido grande demais para o Ruy, apaixonado que era por sua profissão. Estava envergonhado ao extremo e receoso não mais ser útil a ninguém, nem como advogado nem como pessoa. Adoeceu tanto que definhou. Ficou magro magro. Um dia morreu. Suicídio. Não sem antes deixar um extenso testamento com legatários e herdeiros específicos e todos os bens detalhadamente minudenciados. Ao final, o pedido de inscrição na lápide:

"Ruy da Silva, de cujus. Passado em julgado em xx/xx/xx."
 


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Remédio para todas as dores.

Amor é remédio para todas as dores.
A dor de dente,
Quando vinha a mãe da gente
E carinho em gotas ministrava.
A dor de cabeça,
A febre quente,
Quando um pano úmido,
Em nossa fronte passava.
A dor na perna,
A dor da ferida aberta,
Que somente o sopro materno amenizava.

A gente cresce e as dores mudam.
Mas remédios de amor tudo curam.
A posologia não se deve esquecer.
Para estresse de contas que se acumulam,
Um só beijo de amor há de resolver.
Depois é só ir repetindo a dose.
E ainda que a dor sofra metamorfose,
Qualquer romance a faz perecer.

E para os que pensam que existe a tal dor de amor,
Digo, e aqui repito, que amar, em si, nunca dói.
É falta de amor que traz sofrimento.
É medo de amar que causa lamento.
Por ausência de afeto é que o coração corroi.

Porque amor é toda a profilaxia.
E muita dor não mais existiria.
Tão só as pessoas amassem sem medo.
A analgesia, amigos, é coração benfazejo.
É mão de mãe em meus cabelos,
Que todas as dores arrefecia.
E quantas vezes ela, sem saber,
Justamente por amortecer,
Amor tecia.




quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Do chuchu e outros fingimentos.

- Menina - disse a dona da casa, me trazendo uma travessa de porcelana - você vai adorar esse suflê de chuchu!

Tanta receita no mundo, tanta coisa mais simples e mais gostosa de se fazer e a mulher me vem com suflê de chuchu. Odeio chuchu. O chuchu pra mim é a personificação do paradoxo: ele tem um gosto horrível de nada. Detesto isso. Detesto coisas sem gosto no paladar e na vida. E agora o chuchu se impõe no meu garfo, sob os olhos  ansiosos de uma anfitriã muito atenta. Levo o garfo à boca. O suflê derrete, enchendo minhas papilas gustativas de nada. Puro nada.

- Huuummm... Muito bom! - exclamo eu, numa das maiores aventuras da dramaturgia.
- Ai, que bom que gostou! Fiquei na dúvida, mas chuchu é algo tão universal! Não tem como não gostar!
- Exatamente isso! - ri.

Passei no teste. Agora vinha a melhor parte: comer o restante do prato, jogar pedaço de suflê no carpete e esperar que o gato coma. Será que ele come? Se não comer eu finjo que caiu. Na pior das hipóteses eu derrubo o prato. E choro. Isso. Choro copiosamente por ter perdido meu delicioso suflê de chuchu.

Mas por que eu não disse que não gostava de chuchu? Seria mais simples. Mas não queria desapontar a matrona anfitriã. Ela havia se esforçado desde a compra do chuchu até o momento certo de retirar o suflê do forno, para que não murchasse. Melhor que eu a fizesse um tanto mais feliz à custa do sacrifício próprio. Altruísmo não é bem uma palavra que me define, mas neste caso não resisti ao fingimento.

Afinal de contas, o que é um pedaço de chuchu perto do que a gente finge todo dia?

A gente finge escutar as pessoas - sobretudo quando já pedimos para elas repetirem a frase por três vezes. Aí nos limitamos a dar uma risadinha e esperar que faça sentido.
A gente finge que está tudo bem para não preocupar os outros e isso só não serve para as mães: elas se sobrepõe a qualquer tentativa de dramatização.
A gente finge que não tava chorando e que foi só um cisco, mesmo que estejamos com o nariz vermelho escorrendo e os olhos inchados.
A gente finge não gostar e fica ansioso esperando uma ligação. E quando chega a gente não atende. E finge que não tá nem aí.
Tem quem consiga o mais difícil: fingir que gosta de alguém.
A gente finge alergias, doenças, dores de cabeça.
A gente finge achar graça em algumas coisas. E finge não ter achado graça em outras, ainda que o riso tenha sofrido um freio brusco na frente da boca.
Tem quem finja se importar com os outros.
Tem quem finja gostar de Paulo Coelho.
Eu finjo aturar pessoas chatas. E sou boa nisso.
Algumas pessoas fingem enxergar.
Outras fingem orgasmo.
Tem quem finja entender de vinho e quem finja entender de si.
Às vezes a gente finge acreditar.
A gente finge não saber e até prefere: menos problema, menos abalo.
Muita gente finge trabalhar. Ou estudar.
A maioria das pessoas começa a tentar fingir ser bom em alguma coisa.
Eu finjo que estou satisfeita para não assustar os outros com meu apetite.
Fingimos o interesse por coisas sérias. E fingimos, muitas vezes, nos preocupar com o mundo.
A gente finge estar confortável no colchão duro.
A gente inventa desculpa pra não sair, só porque não tem dinheiro pro cinema.
Tem gente que finge que ainda está dormindo.
Outros fingem ter acordado para muita coisa na vida, embora ainda sonhem.

E do chuchu ao orgasmo, do amor a Paulo Coelho, a gente continua fingindo. E acha que tudo será melhor se a gente não for honesto consigo mesmo: a anfitriã não ficará triste, o homem não se sentirá ruim de cama, a namorada não se sentirá desamparada e o interlocutor não nos achará ignorantes. Mas um dia cansaremos de mostrar essa imagem distorcida do que somos de verdade.

Pediremos às pessoas pra repetirem pela quarta vez e nos desculparemos por não ter prestado atenção. Vamos dizer que estávamos chorando sim e que estamos tristes. Admitiremos que estamos cansados de trabalhar e não teremos vergonha de detestar Paulo Coelho (porque os livros dele, pra mim, são tão insossos quanto chuchu). Diremos às pessoas que esperamos uma ligação delas e atenderemos no primeiro toque, tal a vontade de conversar.

Beberemos vinho sem ter de sentir as notas de cereja, azeitona e couro e apenas estaremos perto daqueles que gostamos. Se não houver orgamos, valeu a tentativa e podemos tentar novamente. Comeremos muito, até nos entupir de comida e ter de abrir o botão da calça. Falaremos às pessoas chatas que elas são mesmo chatas. Vamos rir de tudo que quisermos, porque não há vergonha em ver graça nas coisas. E não fingiremos mais. Acordaremos. Porque de tanto fingir tanta coisa, a gente quase que finge viver. E ísso é pior que chuchu.



P.S. Também detesto abóbora.
 

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Destino.

Destino?
Desfaço.
Invento um risco.
Apago um laço.
Pois se não sou a dona do traço,
Não admito estar escrito.

Se posso dele tomar as rédeas,
Ele pra mim é cavalo.
Mas sou mais veloz, sou Pégaso.
Sou alado.
Sou duas asas num torso mágico.
Sou arisco.

Eu cavalgo liberto no espaço.
Já não sei o que é cabresto nem laço.
Meu caminho não é pré-definido.
Minhas rédeas são feitas de ouro
E mesmo quando cansado pouso,
Não me alcançará Destino.
Pois se tenta me colocar arreios
Revoltada, ponho um "A" no meio.
DesAtino.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Carro não é tudo. Mas é um bom começo.

Não é que o sentimento signifique menos que um veículo automotor. De forma alguma. O amor é mais que tudo e supera qualquer tipo de limitação locomotiva. Tampouco me considero interesseira: sou apenas uma mulher sensata e pobre, já acostumada com os dissabores do transporte público coletivo e, confesso eu, cansada.

Aqui jaz uma mulher honesta, mas cansada de ter que sair de casa de ônibus, sobretudo para encontrar alguém que ainda não estou amando. Perdoem-me os pedestres, mas é que antes de nascer o amor deve nascer o conforto de estar perto e nada pode ser mais desconfortável que um ônibus nesta capital soteropolitana. 

Embora alguns insistam em me atribuir a pecha de "Maria Gasolina" e outros apelidos do gênero, há uma pequena diferença entre eu e a Maria Gasolina. A Maria Gasolina escolhe o namorado em função do carro. O homem que tinha um UNO será trocado pelo que tem um FUSION, que será trocado pelo detentor de um CAMARO e assim sucessivamente. Pra mim a diferença entre esses carros é apenas de nome, até porque ninguém pode dizer que ultimamente esteja fácil assim a ponto de poder escolher entre os donos desses três veículos. Não tá fácil.

Mas nem sempre eu fui assim. Houve um tempo em que eu não me incomodava, justamente por não achar agradável que alguém exigisse de mim algo de material como critério de relacionamento, tipo um silicone ou um mega-hair. Seria o fim. Mas depois de uma situação traumática, o carro passou a exercer função essencial na minha vida amorosa e confesso que vi com muita simpatia e esperança a queda do IPI. Mas não funcionou, se querem saber. Carro é importante, mas não é tudo.

Os leitores agora devem estar se perguntando que trauma foi esse e eu explico, deixando claro, de antemão, que não foi um assalto. Foi um tanto mais constrangedor que isso.

Eu era bem mais nova e tinha acabado de conhecer um paquera. Gente boa, divertido e até bonitinho. Marcamos de sair para assistir a algum filme - no tempo em que o cinema representava pretexto e intenção. Ambos pedestres, fizemos o que qualquer casal sensato faria: combinamos o encontro já no shopping e assim evitaríamos o grande constrangimento de uma paquera tortuosa e cheia de solavancos no ônibus.

Em casa, antes de sair, já começava eu a me arrepender e aí iniciou-se o processo traumático por que passei: com quê roupa ir? Queria ir com um vestido, que sempre me deixa um tanto mais feminina e não precisa ser combinado com muita coisa. Mas pensei nos degraus do ônibus e no vento que este faz ao passar em alta velocidade (como sempre) nas vias públicas. Tinha de ir de calça. Já fiquei contrariada. Odeio combinações de última hora.

Saí de casa cedo. Perfumada. Maquiada. Confiante. Mas só até meu salto me fazer tropeçar nos buracos da calçada. Um calo começava a se anunciar na minha sandália. Tinha esquecido disso: salto alto e ônibus não é uma boa combinação. Praguejei. Mas ainda estava linda. Passou meu ônibus e entrei. Estava cheio. Não tinha nenhum lugar pra sentar e eu ali em pé toda arrumada, digna de uma festa. Segurei firme naquelas barras de metal e fechei os olhos pra o tempo passar rápido.

Qual não foi minha surpresa quando um homem enorme e suado ficou fungando atrás de mim! Fingi que não era comigo, fechei a cara e me empertiguei toda. O homem se encostava em mim a qualquer custo. Até que disse num sussurro: "Huuummmm...tá bonita!" Eu já estava prestes a gritar "Socorro! Um tarado!", quando percebi que surgira um lugar lá na frente. Sentei e esperei chegar ao shopping.

Cheguei e não me reconheci no espelho da C&A: cadê a maquiagem? Onde foi parar minha sombra, meu blush? Cadê meu cheiro? Aquele maldito tinha cheirado meu perfume todo! E o ônibus ficou com uma parte. Definitivamente, eu cheirava a catraca e poltrona suja. E nesse dia desenvolvi a teoria de que todo ônibus tem uma espécie de portal, através do qual as mulheres passam e deixam pra trás toda a beleza e graça com que entraram naquela barca do inferno. Eu era a cólera em pessoa.

Mas já estava ali e tinha um filme para ver. Encontrei o pretendente e passamos um longo tempo juntos. "Assistimos" ao filme. Tomamos sorvete (iguaria que podíamos pagar). Conversamos. Rimos. Passeamos. E eu já estava esquecida do início do dia. Só o calo no pé me lembrava o quanto eu tinha subestimado as calçadas de Salvador. Até que o tempo passou e tínhamos de ir embora.

Àquela altura a quem estaríamos enganando? Voltaríamos de ônibus para casa. Os dois. E pra quem não sabe, as saídas dos pedestres são sempre matinês: impossível voltar pra casa de ônibus sozinha às 22h. O máximo tolerável é 19h. E era a hora que eu via aproximar-se no meu relógio. Foi neste momento em que ele pegou em minhas mãos, olhou nos meus olhos e me disse, com orgulho de si mesmo, uma frase que marcou minha alma:
-Eu te deixo no ponto.

Fomos os dois. Eu envergonhada e ele triunfante- afinal de contas tinha sido um gentleman. Atravessamos a passarela de mãos dadas, em meio às bolsas e óculos escuros de camelô. Passamos pelo carrinho de cachorro-quente e pelo carrinho de churros. No ponto de ônibus o clima não era propício ao romance: ambulantes gritando pra lá e pra cá ("Olha o Mendoratto, um é R$ 0,30 e dois é R$ 0,50!!"), crianças chorando, pessoas gritando "PERAÊ, MOTÔ!", gente correndo e eu triste. A palavra é esta. Eu estava triste. E foi aí que ele me surpreendeu mais uma vez. Olhou pra mim com curiosidade e atenção e perguntou:
- E aí, vai pegar qual?
O pior foi que eu me vi respondendo.
- Vilas do Atlântico, e você?
- Vale dos Rios/Stiep R3.

Quase chorei nessa hora e ao mesmo tempo fiquei pensativa. E se o ônibus dele passasse primeiro? E se ele pegasse o ônibus e me deixasse esperando lá naquele ponto sozinha? E na hora que minhas profecias se realizaram e o ônibus dele passou olhei pra ele com uma cara tão feia que acho que meus pensamentos chegaram até a alma do pobre coitado. E ele ficou. Logo depois vinha chegando o meu.

Só quem pega ônibus com frequência sabe que ele é efêmero e complexo: se você vacilar, ele pára, a porta abre, fecha e você nem chegou perto. E se tem uma verdade é que ele não pára na sua frente. Ele pára lá atrás ou lá na frente. E o meu parou lá atrás.

Neste momento eu vivi um dos maiores constrangimentos de minha existência. Tinha que correr. Só uma mulher de salto alto e arrumada sabe o que é perder o glamour ao correr atrás de qualquer coisa. Sobretudo atrás de um ônibus. E eu tinha que correr. Aí corri. Ele me acompanhou. Paramos atrás da porta traseira e enquanto eu esperava minha vez de subir, nos despedimos com um beijo sob os olhares de pressa do cobrador.

Entrei no ônibus, passei da catraca, o ônibus "arrastou" e não me contive de tristeza ao dar aquele "tchauzinho" pela janela. Cansada. Suja. Humilhada. Com um calo no pé. E depois de tanto esforço, solteira. Mas não lamento. Eu sabia que não daria certo. Não me arrependo. Entre nós faltava um motor e quatro pneus, um punhado de engrenagens e uma caixa de marcha. E carro é mais que isso. Carro significa três coisas das quais não abro mão: conforto, segurança e privacidade. Não é tudo. Mas é um bom começo.

Que venha o IPI reduzido!

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Era eu.

Ele tinha um senso de humor invejável e olhos muito brilhantes. Algumas pessoas tem olhos que nunca vão brilhar daquele jeito, mas os dele faiscavam. E por isso mesmo eu pousava os meus ali, enquanto, em vão, tentava raciocinar. Era inteligente, agradável e tinha um ar de esperteza e de serenidade ao mesmo tempo, como se nunca hesitasse em fazer qualquer coisa. E era belo. Mas, como todos os que um dia me tiraram o fôlego, tinha um defeito imperdoável.

Ele era casado.

Casado. Bem casado. E tinha que ser. Não era privilégio meu a força daquele olhar que me via já nua, despojada de toda a sorte de fingimentos. Era casado. A aliança comprovava e me provava que jamais seria aceitável que eu o tivesse comigo. Não seria digno, diriam alguns. Não seria certo, diriam outros. Não seria justo com você, diria eu no espelho.

Mas dignidade não é bem o que eu queria dele. Nem amor. O que eu queria era qualquer coisa diferente de algo digno; qualquer coisa instável e sórdida, mas que me deixasse em paz com o mundo. O que eu queria era justamente o frio na barriga e o lábio tremendo, ambos cientes daquela atração deliciosa somente comparável à atração que me dá a altura daquele penhasco íngreme, me fazendo querer alçar vôo em queda livre.

E era assim que eu o queria. Como uma perdição. Como o primeiro e nefasto gole de uma deliciosa cicuta. E por isso não me preocupavam os pensamentos alheios. Não me abalava a falta de compromisso, a imprevisibilidade. Não me causava qualquer tipo de remorso pensar na mulher dona da aliança gêmea da dele. Nada. Nada iria me demover do que já me consumia inteira, porque era naqueles olhos sabedores de tudo que eu sabia de mim.

Com ele em qualquer lugar eu era muito mais eu do que jamais fora. Pra ele eu podia ser qualquer coisa: um joguete, uma diversão, um bom papo, um dia diferente na rotina matrimonial. Mas pra mim eu era bem mais que tudo isso. Ao me olhar no espelho depois de encontrá-lo minha expressão era triunfante e segura, ao contrário do que seria em geral. Nunca me senti tão bonita quanto depois de vê-lo. No espelho uma mulher linda me olhava a cada noite dessas, sem me condenar ou me repreender, e a ela eu retribuía com um sorriso vitorioso.

Mas um dia, para a felicidade dos que me condenavam, ele se foi. Sua ida foi tão imprevisível quanto cada uma de suas voltas. E eu sabia que seria assim, embora me lamentasse.  Não senti o término de um relacionamento, pois que nunca o tive. Tampouco senti o peso de estar só. Ele se foi como as coisas boas que um dia passam.

Não fiquei triste.
Não chorei.

Apenas soube que não mais voltaria a pousar meus olhos nos dele e que talvez devesse me acostumar com mãos vacilantes, tão diferentes daquelas sempre seguras e obstinadas. É uma pena voltar a raciocinar. Pensando bem, não era amor não. Era muito mais. Era eu. E isto é que me faz falta às vezes.

Carta de um astronauta.




"Estávamos em uma expedição sigilosa em busca de desconhecidos. Desenvolvemos um projeto de mapeamento e reconhecimento de galáxias em que houvesse maior probabilidade de encontrarmos vida. Nosso objetivo, aliás, não era apenas encontrar vida -  esta já comprovada pela existência de seres microscópicos em um planeta vizinho ao nosso. Procurávamos vida inteligente e com ela a demonstração de que não estávamos sós. Mais que isso: queríamos a chance de aprender (e quem sabe ensinar) com nossos novos amigos.

Numa das galáxias mais próximas encontramos um planeta em condições semelhantes ao nosso. Ficamos completamente ansiosos quando verificamos que as condições climáticas e atmosféricas também se assemelhavam às nossas. Estávamos a um passo de finalizar nossa busca. Mal pude me conter! Manobramos a nave para que ficasse próxima, mas a uma distância segura o suficiente: não sabíamos o que esperar dos nossos vizinhos alienígenas.

Num susto tremendo, um satélite artificial passou perto da nave. Era a nossa prova! Somente um ser intelectualmente desenvolvido poderia criar um satélite daqueles. Tentamos uma conexão com o satélite. Não conseguimos. No entanto, verificamos que tínhamos acesso aos dados. Vídeos, fotografias, coordenadas, em suma, tínhamos o mapa do planeta e a possibilidade de ver, mesmo à distância, tudo o que acontecia ali.

E o que vimos nos deixou completamente embasbacados.

Os seres desenvolvidos não tinham um aspecto tão repugnante quanto pensávamos. Eram até simpáticos, vez que não ostentavam aqueles olhos desproporcionais e corpos esquálidos e altos. Ficamos felizes com a descoberta e até envergonhados: sempre achávamos que um alienígena teria aparência feia, mas estes não tinham. Eram diferentes, sem dúvida. Mas não causavam espanto.

O planeta era bonito. Pequeno, mas vasto ao mesmo tempo. Também padecia das mesmas intempéries que o nosso: vulcões, furacões, atividade sísmica. Mas era bonito. Abrigava algumas espécies, assim como no nosso. Mas ficamos surpresos mesmo com o nível de desenvolvimento do planeta : os alienígenas haviam feito construções semelhantes às nossas, embora utilizando uma tecnologia mais rudimentar.

Daríamos por encerradas as buscas. Voltaríamos ao nosso planeta com a sensação de missão cumprida. Nossos governantes se preparariam para o primeiro contato oficial com os alienígenas. A diplomacia interplanetária inauguraria uma teia de relações jamais vista entre civilizações de planetas diferentes. Aprenderíamos com eles a aperfeiçoar nossa ciência, bem como poderíamos, eventualmente, ensinar algo.

Então uma cena chamou-nos a atenção.

Observamos atentos a imagem de um artefato semelhante a uma bomba destruir uma das colônias de alienígenas. E, por incrível que pareça, o artefato foi enviado por outra colônia. Pensávamos se tratar de uma disputa por territórios ou recursos - já que parecem ser escassos por lá. Todavia, parecia não haver motivo para aquele massacre.

Em outra tela visualizamos uma região do planeta diferente das outras. Não tinha recursos, não tinha natureza. Parecia o vácuo. Tinha apenas um grande número de seres sobrevivendo em condições de extrema miséria. Eram párias naquela sociedade. E eram muitos. Em pouco tempo observando a tela, sentimos verdadeiro asco dos que tanto tinham e nada partilhavam com aqueles mendigos da vida.

Para alguns de nós ainda era um planeta promissor. Havia um grande potencial energético e riquezas sem fim. Era de uma beleza encantadora e ainda imaculada em muitos locais. Mas a espécie que o habitava era digna de pena e, talvez pela existência de tantas línguas e dialetos, não entendiam uns aos outros.

Onde procurávamos evolução, encontramos guerra. Onde procurávamos vida inteligente encontramos apenas vida. Ainda nos sentimos sós. Resta-nos observar por mais tempo. Quem sabe um dia os humanóides estejam prontos."


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Um recado de autores defuntos.

Reunidos do lado de lá da vida, ou do lado de cá da morte, como queiram os leitores, faziam considerações sobre os recentes acontecimentos que puderam observar de um mirante na abóbada celeste. Se é certo que o fim da vida também põe termo às obras, também é certo que a morte coroa os clássicos, imprimindo-lhes o caráter perene que não tem seus autores. Agora, mais mortos do que nunca e mais vivos do que sempre, podiam se regozijar do sucesso eterno e da longa vida fictícia que teriam a cada virar de uma página.

Mas nem sempre a morte traz uma consolação, e o que nossos célebres perceberam é que o mundo parece girar cada vez mais rápido, como se tudo caísse de repente num vórtice de informações. O tempo, ventríloquo dos homens, realiza manobras rápidas e quase imperceptíveis, furtando das pessoas seus mais preciosos momentos. Não há tempo, reclamam eles. E se não há tempo não há leitura, só há rotina.

E com isto se preocupavam nossos célebres autores. Clássicos mortos no corpo, mas vivos na memória e nas orelhas de seus livros. Conversavam sobre o futuro e desejavam o passado. Com a batida de um sino estridente começou a assembleia.

"Ao primeiro verme que roeu as frias carnes do meu cadáver dedico esta assembleia."

- Por que ele sempre tem que começar assim?
- Silêncio! Vamos ouvir!

-Caros confrades, autores defuntos. O desprazer deste discurso somente se assemelha ao desprazer de ver presa num frasco de vidro uma linda borboleta e depois observá-la morrer asfixiada. A borboleta é o que de mais nobre fizemos na vida, o que nos trouxe a este patamar de perene sobrevivência: nossos livros, outrora festejados como os 15 anos das moças, e que agora fazem parte de estantes cobertas do pó da ignorância. Se não podemos lançar mais clássicos às ruas e aos jornais, é somente por estarmos despidos da vida e não por vontade própria. Entretanto, certo é que as pessoas que antes nos liam, já parecem mais mortas que nós, embora muitas ainda não tenham passado pra o lado de cá. Certa feita, fui surpreendido por uma senhora mui educada, que me confessou ser uma leitora 'machadiana' quando em vida. Travamos um curto diálogo desses de esquina e ela me disse que por mais que tentasse seus netos nunca leram o que ela recomendava. Chamavam-na de caduca e coroca, mal sabendo eles que jamais sucumbirá às eras aquilo que tem o dom de ser perene: o conhecimento. Eis que agora preocupo-me, não com honrarias e ganhos derivados do labor com as letras, mas com o quê se preenche meu testamento aos homens, qual meu verdadeiro legado e em quê poderá ele ajudar o mundo.

- Mas agora ficou difícil, Machado. Começamos a competir com tecnologias cada vez mais avançadas. As pessoas ficam cada vez mais retidas no que é rápido, pois nunca há tempo. Gasta-se horas em frente a uma tela de computador, mas não há minutos para a leitura diária de uma anedota qualquer.

Caras de espanto preenchiam o ambiente sem paredes. Todos se entreolhavam com um quê de mistério e espanto. Clarice, que não conseguia se conter à menor curiosidade, quis saber mais.
- Computador?
- É como se fosse uma máquina de escrever, mas, para além da escrita e da leitura, permite um universo de outras utilidades.
- Aí temos nosso resgate, Caio. Se a máquina permite a leitura, permitirá que sobrevivamos ao tempo e às angústias da vida moderna.
- Não é bem assim, Clarice.
- Já não entendo.
- Sim, atalhou Drummond, plausível a dúvida de Clarice. Também não me dou por satisfeito com tamanha dissonância. Se o computador permite a leitura, por que então não nos permite?
- Porque livros são grandes demais e as pessoas querem algo rápido. Apesar disso, querem parecer entendidas em algo e em tudo ao mesmo tempo. Querem um suco concentrado de cada um de nós. Uma frase que os marque, sem que nada mais tenham de pensar sobre ela e seu nascimento em nossos intelectos.
- Só frases?
- Só. Citações.
- Como você sabe disso?
- Fiquei famoso assim.
- Já depois de morto?
- É. Como diria Cubas, sou eu um defunto autor. E pra te explicar como é isso, venha ver o que consegui esses dias.
- Uma fotografia minha com uma frase escrita?
- Sim, Clarice, veja.
- Mas por que me atribuem esta frase? Não é minha nem nunca seria. Essa frase não sou eu, Caio.
- Pois é...Costuma acontecer.

Clarice lança um olhar cheio de súplica e ira ao mesmo tempo para Caio, que disfarça e olha pra Machado. Este, resignado e triste, apenas balança a cabeça de um lado pro outro, lembrando dos tempos áureos em que seus contos e histórias vendiam a esperança de um Brasil mais inteligente e atento às letras. Não que seus textos ensinassem muita coisa - seria muita pretensão - mas pelo menos atiçavam o pensamento, como uma mula é chicoteada de leve para chegar no rumo certo.

De repente a ideia!

Assim como de seus intelectos brotaram personagens e histórias inesquecíveis que até hoje marcam a vida dos que se deram ao prazer (e não "ao trabalho") de ler, também em intelecto resolveram aparecer pra uma leitora assídua e escritora incipiente, que decerto não se negaria a transmitir um recado, ou melhor, alerta aos seus. A humilde moça sentiu-se tocada e escolhida, pronta para realizar o mister que mais parecia os Doze Trabalhos de Hércules, não em dificuldade, mas em importância. Utilizaria de toda a sapiência como a de Ulisses na Ilíada e teria a bravura do índio Peri, de Alencar. Deixar-se-ia levar por toda a prosa e poesia ao menor pedido de um desses deuses da literatura que, longe de pertencerem ao Olimpo, estão sempre ao alcance das mãos e dos olhos na prateleira mais próxima.

Ah, se todos soubessem a plenitude do que é a leitura! Veriam que é mais fácil aproximar-se do céu e dos clássicos que lá estão do que mendigar os frutos quase podres que o tempo deixou cair. Retirar dos célebres apenas uma citação é o mesmo que tocar com a mão suja a ponta minúscula e brilhante de um iceberg que flutua na imensidão oceânica da ignorância. E neste oceano, diferente do que diria Camões, navegar não só é preciso como necessário.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O Reino dos Sérios e a descoberta do riso.

Era uma vez um reino muito muito distante chamado Reino dos Sérios. Os habitantes deste reino não sabiam sorrir. Não se sabe ao certo se por falha mecânica na contração da musculatura da face ou se por falta de costume mesmo. Uns dizem que é porque ninguém jamais experimentou fazê-lo e assim as crianças não aprenderam com seus pais, que por sua vez também não aprenderam com os seus e assim sucessivamente.

O que se sabe é que não há piadas, nem risos pelos cantos. Os sérios se cumprimentam, conversam e não contam piadas. Jamais. Piadas são terminantemente proibidas pela lei do Reino, mas nem necessitava tanta proibição: uma vez que ninguém sabe rir as piadas perdem seu objeto e ficariam sempre vazias de sentido.

Uma vez, um dos sérios foi embora para um Reino vizinho e descobriu o sorriso. Ficou maravilhado com a perfeição do artefato. Não conseguiu reproduzir com perfeição o sorriso visto, mas tentou e viu que conseguia ensaiar ao menos um sorriso sem graça. Depois de pouco tempo já estava rindo. Por que não havia isso no Reino dos Sérios? Que mal fazia a libertação do riso?

Decidiu voltar ao Reino e contar a seus compatriotas sobre a existência do riso. Ainda não sabia fazer muito bem, mas levou embalado num papel de pão um riso de criança brincando. Os Sérios ficaram EMBASBACADOS! O que era aquilo? Por toda a cidade espalhou-se a notícia do riso. Até que o rei soube e mandou investigar.

A verdade é que o povo gostou tanto do riso que queria comprar. Sorrisos e gargalhadas passaram a ser contrabandeados. O preço variava: 5 o sorriso tímido, 8 o sorriso sincero, 20 a gargalhada rápida, 40 o sorriso apaixonado e 80 a crise de riso. Pessoas ficaram viciadas nos risos. Cada vez mais sérios iam para o reino vizinho pegar uma nova carga. A segurança do reino passou a prender e mandar enforcar sérios traficantes.

Só que o tráfico de risos aqueceu a economia. Os traficantes começaram a ganhar muito dinheiro com os risos e a comprar cada vez mais produtos do reino. As pessoas trabalhavam mais satisfeitas após uma sessão de riso. E o rei foi percebendo que os risos poderiam ser bem lucrativos.

Campanhas pela legalização do riso começaram a eclodir. A revolução para legalizar o riso tomou força. E o rei foi perdendo a popularidade, o que não era desejável. Estudos sobre os benefícios do riso para a Medicina apareceram. O riso ficou conhecido pela propriedade de causar emagrecimento e aumentar o tônus muscular do abdômen. Descobriu-se que o riso fazia bem pro coração. E aí já era. O rei só tinha a possibilidade de aceitar o riso.

Então surgiu uma saída brilhante. O rei decidiu que não deveria haver mais o tráfico do riso e então concedeu o direito à colheita do riso próprio. Cada um poderia rir o quanto pudesse, mas somente se o riso fosse seu. Estava proibida a compra de sorrisos alheios, independentemente do valor/qualidade do riso. Os sérios passaram a praticar o sorriso e alguns já conseguiam até rir deliberadamente, quase gargalhando.

Então não se vendia mais o riso engarrafado. Sorrisos sem graça ou tímidos, a mercadoria mais barata, sumiram e só havia lugar para risos e gargalhadas espontâneos e sinceros. Algumas pessoas continuavam a obter sorrisos alheios, mas tinham direito a isso: o Rei estabeleceu que o sorriso pertencia a quem o causasse.

Como ninguém queria ficar privado de riso, deixando apenas que outras pessoas os causassem, os sérios começaram a cultivar o riso de si mesmos. E cultivando o riso de si e para si mesmos viram que os efeitos eram semelhantes ao de possuir risos alheios.

Dizem que nunca  houve um reino mais feliz, mas como tudo na história um dia se acaba, o Reino dos Sérios teve sua derrocada com o apogeu da civilização "Polida". Estes ainda resistem aos sorrisos gratuitos. E embora o Reino tenha acabado, sua população só se multiplicou e em todos os lugares do mundo é possível vê-los sorrindo e causando sorrisos alheios.

E eles são felizes para sempre.









domingo, 30 de setembro de 2012

Pra quem bebe porque é líquido.



Por que se bebe? Porque nos rendemos a este prazer entorpecente de beber líquidos com proporção volumétrica de álcool não recomendada? Por que insistimos em continuar ingerindo algo que sabidamente pode fazer tanto mal pro fígado e pra dignidade?

Talvez a gente bebe porque beber é uma experiência. Porque quando somos crianças queremos repetir o que nossos pais fazem. Às vezes a gente bebe porque é gostoso. Porque cerveja tem gosto de maioridade. Porque é questão de honra beber um copo de cerveja após tantos anos de infância fingindo bebê-la em vez do guaraná.

Tem gente que bebe porque se sente mais leve, mais maleável.Tem gente que bebe porque beber dá coragem. Porque sentimentos não precisam de justificativa. Porque as palavras ganham alforria. Porque se der tudo certo temos a glória, e se der tudo errado temos um pretexto.

A gente bebe pelas pessoas. Porque há poucos prazeres tão reconfortantes quanto uma cerveja gelada após a sexta-feira de trabalho com os amigos. Porque a conversa fica melhor a cada gole. A gente bebe porque se sente massa conversando o que quiser! A gente namora vinho e bebe a companhia de alguém especial. A gente bebe um licor gostoso como arremate daquele almoço em família surpreendentemente delicioso. A gente comemora uma conquista com a champagne cara guardada pro reveillon ou com o whisky do pai e bebe como se estivesse bebendo a própria vitória.

Tem quem beba para ocupar a mão e tem quem beba pra desocupar a cabeça. Tem gente que simplesmente gosta de algo muito específico ou bebe tudo de genérico que contenha álcool em sua composição. Tem quem beba pra esquecer, tem quem ache que fica mais fácil de lembrar, tem quem queira simplesmente esquecer de lembrar tanto.

É bom beber. Não importa o motivo. O bom mesmo é beber companhias ou a solidão pensante.

E que bom que existem pessoas como Jânio Quadros, ex-presidente. Perguntado sobre o porquê de ele beber tanto, simplesmente respondeu:
-Bebo porque é líquido. Se sólido fosse, comê-lo-ia.




P.S. Aos chatos de plantão e "do contra" por profissão, só um aviso: nem comentem dizendo que o alcoolismo é uma doença grave, que destrói lares, corações e fígados alheios. Deixem isso pro "Bem Estar". Detesto viver num mundo em que a liberdade de expressão esbarra no politicamente (in)correto.


sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Um cavalo na Tancredo Neves.




Estava eu voltando pra casa depois de um dia de faculdade e estágio. Cansada, com fome, ansiosa pra chegar em meu apartamento e tirar o sapato na área de serviço (porque jamais me furtarei deste pequeno prazer que é tirar um sapato apertado e pisar logo em seguida no chão frio). E foi pensando nesta vontade que eu acelerei o passo para chegar ao ponto de ônibus localizado na Avenida Tancredo Neves.

E tomei um susto.

Um pouco atrás de mim, um barulho incomum e inconfundível.

Um cavalo cortava a Avenida. Um cavalo numa das Avenidas comerciais mais importantes da cidade de Salvador. A beleza da cena me pegou desprevenida. Um cavalo corria no asfalto, seguindo o fluxo dos quadrúpedes motorizados. A aparição do animal não causava modificação no trânsito já tão caótico. As mesmas buzinas, os mesmos motoristas contrariados, o mesmo suceder de luzes no semáforo. Mas um cavalo corria por entre as fileiras de carros, preenchendo o espaço entre eles com rebeldia e coragem.

O cavalo sabe não fazer parte dessa natureza morta, dessa luta pela vaga na faixa ao lado, desse despejo de monóxido de carbono. Ele sabe. Ele sabe que seu lugar não é ali, mas continua correndo, continua deixando aquele rastro de vida e inconstância. Porque ele é um cavalo!

E ele é diferente dos companheiros de trânsito. O cavalo pode parar, pode correr até a exaustão, pode caminhar tranquilo pelas marginais da pista. O cavalo pode mudar de caminho, pode não seguir o fluxo. Ou pode seguir o fluxo de uma maneira completamente desgarrada. Ele pode até ser domesticado, mas sabe que também é de sua essência a força indomável do vento na crina castanha e que vez em quando será a hora de correr como se não fosse preciso chegar a lugar nenhum.

Um cavalo não corre mais que um carro, mas ali ele corria. Ali ele ganhava de todos. E talvez ali, algum motorista emburrado tenha proclamado o desejo de ter um cavalo e chegar em casa mais cedo e tirar o sapato apertado num chão gelado qualquer. Talvez não. Talvez ninguém tenha reparado na cena do cavalo que corria na Avenida, ou apenas tenha reparado pra reclamar da irresponsabilidade do dono do animal.

Pode ser que só eu tenha me visto naquela corrida audaciosa, atravessando triunfante uma pista cheia de mesmice e continuidade. E não é porque meu signo no horóscopo chinês é o cavalo - informação relevantíssima tirada de uma folha de bandeja do McDonald's: é porque às vezes tenho necessidade de correr na contramão das coisas e chamar atenção de quem passa pela vida como quem passa por uma avenida congestionada.

A beleza do cavalo correndo por entre as luzes traseiras dos carros me tomou até onde a vista me permitiu alcançá-lo. Depois ele sumiu. E imediatamente, antes de entrar no ônibus e ir pra casa, concluí que um carro pode ter em seu motor muitos cavalos de potência, mas todos eles juntos não tem a altivez de um só cavalo de verdade.




terça-feira, 25 de setembro de 2012

Crescer dói.

Quando eu tinha entre 7 e 10 anos sofria de dores fortíssimas nas pernas. Era comum chegar em casa e chorar, pedindo à minha mãe que fizesse massagem porque eu estava com "dor de perna" - batizei a dor com esse nome.

Minha mãe fazia massagens com gelol, mas a dor era insuportavelmente profunda, como se viesse dos meus ossos. A massagem funcionava, até, mas era comum que eu tivesse isso com frequência, o que deixava a todos procupados, sobretudo meu pai, que em sua sutileza dizia que era podia ter um tumor.

Pra uma criança é duro de ouvir um negócio desses, ainda mais partindo de um pai, que pra mim estava sempre certo. Mas depois de um tempo eu aprendi que ele é assim mesmo - só pra vocês terem uma ideia, meu pai já se despediu de mim 3 vezes, achando que ia morrer em três cirurgias: uma de cálculo renal, outra para retirada de uma hérnea no umbigo e outra pra tirar um nódulo na nuca. Em todas estas situações eu recebi mensagens de texto no estilo "Minha filha, foi um prazer ter sido seu pai.", só pra vocês conhecerem a figura.

E meu pai estava errado quanto ao meu tumor na perna.

Depois de anos sem saber o que era, e depois de ter sumido a bendita dor, assisti a uma reportagem do Globo Repórter em que mostrava crianças que sentiam o mesmo tipo de dor que eu. Era a dor do crescimento, cuja causa específica ainda não era conhecida, mas que relacionava-se ao desenvolvimento dos ossos, músculos e tendões. É mais comum do que se pensa, e costuma preocupar os pais, já que não há sinais externos de vermelhidão ou inchaço. E eu, muitas vezes atormentada pela idea de ter um tumor, não me dava conta de uma verdade tão simples quanto inevitável: eu estava crescendo.

Pensei que crescer só doesse no coração. No fato de ter de abandonar a mais deliciosa das rotinas: brincar 90% do tempo e usar os outros 10% pra tomar banho e fazer dever de casa. Subir no pé de manga da vizinha, assistir 4 horas de desenho animado, escorregar na varanda enquanto minha mãe tentava lavar o chão todo ensaboado, ler meus livrinhos infantis que sempre vinham cheios de lições (às vezes mais especiais que as dos meus professores, saber que correr é divertido e apostar corrida pra fazer tudo, jogar gude e brincar de brigar.

Abandonar essas coisas gradualmente dói demais. Toda vez que eu volto pra casa e leio um dos meus livros infantis dá vontade de chorar e pedir uma massagem no coração. Embora eu possa lê-los novamente e recolher as mesma lições, aqui dentro eu sei que não é a mesma coisa e nunca será. Posso brincar de novo de qualquer coisa, mas haverá menos graça e o sabor não será de manga. Meu tratamento paliativo, então, é brincar com uma vizinha minha amiga, que tem 8 anos. Ela pensa que ela é que se diverte brincando comigo, mas na verdade é ela, que me fazendo criança de novo, acaba por me resgatar e me lembrar de como era bom sentir aquela dor nas pernas.

Sim, agora eu sei que era uma boa dor. Significava que eu estava crescendo, mas ainda não tinha crescido por completo. Hoje eu sinto falta da dor física que antecedia essa minha dor na alma por ter de crescer. Hoje não me dói mais nada. Só a saudade.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O binóculo.

A vizinha tinha brigado com o namorado. Há 6 dias não cantava para as flores da varanda. Ela só cantava após noites de amor bem românticas, aquelas em que a luz do apartamento dela ficava bem fraquinha - quando se apagava tudo não: aí ela estava só dormindo. Depois dessas noites ela também dançava com a vassoura enquanto cuidava dos afazeres domésticos. Uma das maiores curiosidades era a música que cantava. Qual seria? Não importa. Agora ela não cantava mais. Torceu para que voltasse a cantar: as flores deviam estar mais tristes.

Enquanto isso, no prédio do lado, mais precisamente no apartamento do 5º andar voltado para a torre do edifício empresarial, uma família séria tomava café e se preparava para o dia. O marido ajeitava a gravata e gritava com o filho pequeno que acabara de jogar a tigela de cereal no gato, que escapou por um triz. O marido também gritou com a esposa, que estava se arrumando pro trabalho e passando batom em vez de olhar o filho. A esposa gritou com o marido, rebatendo. E o filho gritou com o gato. Não, minto, miou para o gato. Só o gato não gritava naquela casa. E o marido nem desconfiava que o gato presenciava a traição da esposa. A sorte era que o gato não gritava.

A banca de revista da esquina estava falindo. Ninguém mais queria comprar letras. Todo mundo tinha as letras que quisesse numa tela de computador. E estas só falariam o que queriam ouvir. Na banca não. Os jornais eram expostos e mesmo se você desviasse o olhar já teria sido capturado pela informação, para azar dos otimistas que não queriam saber dos escândalos. Talvez as pessoas achem que informações em papel, depois de lidas ficam só guardadas. Depois de guardadas ficam mantidas. E onde ficaria o desenvolvimento sustentável? Pena que as pessoas esquecem o que dá pra fazer com notícias velhas: recortar letras pra fazer cartas anônimas sem medo de se reconhecer a caligrafia ou simplesmente relê-las para lembrar que aquilo aconteceu e passou. É bom ter uma prova irrefutável de que o tempo passa mesmo.Não dá pra confiar nesses relógios.

E isso era a vida dele. Observar pessoas através de um binóculo da janela do 6º andar. Gostava de descobrir as histórias delas. Gostava de conhecê-las mesmo à distância, dada a impossibilidade de descer. O que não gostava era quando o achavam um inválido. Não é que ele estivesse preso em casa, condenado a ficar naquela cadeira de rodas pra sempre, sozinho. Foi assim só até comprar o binóculo. Depois não. Depois passou a ter companhia.

Fato é que o binóculo caiu do 6º andar naquela noite, quando não via atividade alguma no apartamento da vizinha - aquela das flores- e presumia um rompimento. Afastou-se da varanda descuidado e triste e foi aí que o binóculo caiu, fazendo um barulho quanse abafado para ele, mas sonoro demais para a rua, à noite. Que lástima! Como enxergar as pessoas agoras? Como saber se a vizinha cantava ou não, que cor de roupa usava, se terminara mesmo o namoro ou apenas dera um tempo? Como saber se o gato ainda estava vivo depois de ter escapado das malcriações do menino? Como saber a reação das pessoas às notícias? Haveriam ainda notícias?

A vida sem binóculo seria o caos. Sem pernas que prestassem era até tolerável: os olhos iam até onde queria, com a ajuda do binóculo. Agora estava inerte. Perdera as pernas que substituíam com perfeição as outras, já inertes há muito tempo. E já que vivia sozinho não tinha como mandar alguém providenciar novas "pernas". Teria de viver sem elas.

Talvez devesse sair de casa e conhecer as pessoas de perto. Quem sabe conheceria a vizinha das flores, a vizinha adúltera e o dono da banca de revistas. Deveria descer para providenciar outro binóculo e comprar a notícia do dia, só pra marcar aquele momento. Até poderia descer mesmo: tinha elevador e tinha uma cadeira de rodas. Mais que suficiente pra ir até a banca de revista. Mas o que o estava impedindo? Talvez o fato de saber da realidade das coisas, em vez de meramente supor situações. A realidade nem sempre se presta a nossas imaginações. Agora entendia as pessoas que se esquivavam das notícias do dia. Espertas.

Decidiu fazer como elas: entrou na internet. E lá encontrou um binóculo por um bom preço. Entregaram em casa. Mal pôde esperar: foi até a varanda e esquadrinhou a cena: na sala da vizinha das flores sombras se revelavam nas cortinas, estavam contra a luz de algumas velas. Era um jantar. Talvez tenha reatado, mas talvez seja outro amor. Não, tinha reatado. Quem canta com as flores por uma pessoa, jamais cantará por outra assim tão rápido. Decidiu que a vizinha reatou. As flores estariam mais felizes amanhã e a vassoura mais eficaz depois de tanta dança.Recolheu as pernas novas e dormiu em paz.








domingo, 23 de setembro de 2012

De um jurista apaixonado.


Este amor é caso fortuito,
É morte por motivo fútil,
Domínio de violenta emoção.
Se me usa, logo é usufruto,
Se me toma, objeto de furto,
Se se apodera, usucapião.

Embriaguez preordenada
De relação condicionada,
Quase dolo eventual.
Condicionada ao sentimento,
Que sem custas ou emolumentos,
Me exerce direito real.

Mas se em desforço incontinenti,
Tento afastar renitente
O ato da turbação,
Reclamas agressão legítima,
De amante personalíssima,
Diz que é teu meu coração.

Recluso em regime fechado
Se grito de liberdade alardo
Tu me vens prender pela mão
Me lança este olhar de fascínio
Me pede exceção de domínio,
Me impinge condenação.

Se penso que assim se declara
Logo desmente na cara,
Tem nos lábios omissão.
Mas olhos são traiçoeiros,
Nunca deixam de ser verdadeiros
Nem tem medo de confissão.

O que requeiro, destarte,
É que admita ser minha parte,
Reconheça minha pretensão.
Esqueça qualquer ato pretérito,
E se com amor julgar meu mérito,
Serei pleno em satisfação.

Pra te amar não tem mais hora,
E se há periculum in mora,
Aprecie a liminar
Para constituir do teu lado
Este ser apaixonado
Do qual tu és titular.

















Contando contos.

Algumas coisas na vida mudam para permanecer as mesmas, só que mais elas próprias. Às vezes a mudança que se experimenta serve mais para reafirmar o caráter das coisas. Assim aconteceu com este blog.

Nasceu sem muita pretensão, confesso, sem definição do que eu queria colocar aqui. Com o tempo fomos mudando nós dois, eu e ele, até que cheguei à conclusão de que só fui ficando mais eu e um tanto mais "afiada" nesse negócio de escrever, que é um dos meus maiores prazeres e um dos maiores vícios.

Então, se escrever é o que me faz bem, e se tenho imaginação suficiente, melhor direcioná-la: a informação é tanta que às vezes o pensamento se embaraça e perde a meada. Aqui eu tenho um tear. Tenho como criar agasalhos de palavras, cada um com sua cor, sua textura, seu comprimento, que apenas servem para aquecer aquilo que, assim como a mente, deve permanecer sempre aberto: o coração.

Espero que continue me dando a honra da leitura e que o conto escolhido seja o seu número.

Aumento um ponto!





sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Que os deuses nos invejem.

Dia desses assisti ao filme "Troia", lançado já há bastante tempo - reflexo da absoluta falta de programas melhores para fazer mais a mania que me aflige de assistir a filmes repetidos. [Apenas a título de informação, saibam que este meu pequeno problema começou aos 6 anos de idade, quando todos os dias eu voltava da escola e assistia ao "Rei Leão". E eu chorava todos os dias porque todos os dias Mufasa morria.]

Pois bem, estava eu assistindo ao filme "Troia" e torcendo por Heitor - embora já soubesse que Heitor morreria em um duelo com Aquiles - quando o próprio Aquiles, falando com os gregos, disse a seguinte frase:

"Os deuses nos invejam. Eles nos invejam porque somos mortais, porque qualquer momento pode ser o ultimo. Tudo é mais bonito porque estamos fadados a isto."

No momento em que ouvi novamente esta frase, pus-me a pensar que de fato, a única coisa de que podemos nos vangloriar é de que somos mortais. Talvez, verdadeiramente, os deuses tivessem inveja dos humanos naquele período. A imortalidade, em que pese parecer uma grande virtude, invariavelmente  tornaria tudo mais monótono.

Imagine que nada pode nos abalar e temos, de fato, todo o tempo do mundo para fazermos o que quisermos. Imagine acordar sabendo que não se pode morrer, que nada de mal pode nos tirar desse mundo, que estaremos sempre diante do mesmo amanhecer e faremos o que quisermos ou não faremos nada. Imagine acompanhar tudo e poder esperar por qualquer acontecimento durante uma eternidade, sem ter aquela sensação, que tenho com frequência, de que ou vamos em busca ou jamais teremos o desejado.

No entanto, embora o raciocínio seja exatamente este, o de que vida e morte se complementam pois apenas a presença desta dá sentido àquela, não acho que hoje os deuses teriam a mesma inveja de nós e de nossa sociedade tão sem tempo quanto sem vida.

Vivemos num mundo tão rápido e tão cheio de coisas a fazer que levamos a vida no automático. Acorda-se pensando no que vai vestir, comer, fazer, estudar. Quando se vê já é 12:00 e esquecemos o que fizemos de manhã, o que comemos, o que tínhamos planejado. Vivemos à espera do segundo próximo que acabará por passar e com ele responsabilidades e afazeres. Fazemos tudo. Eventualmente uma ou outra tarefa nos dá a frustração de ser adiada. Comemos rápido, dormimos mal, deixamos de cumprimentar as pessoas porque perderemos muitos minutos preciosos e talvez seja melhor virar o rosto e fingir que não vimos uns aos outros.

No entanto, ainda que tenhamos a plena consciência de que tudo está passando rápido demais ( e que você já está sendo chamado(a) de "tio" ou "tia"), fazemos planos. Sim, continuamos planejando. Ano que vem eu viajo. Mês que vem eu recomeço a praticar esporte. Semana que vem eu vou ao cinema. Amanhã eu ligo para aquela pessoa especial.

Deixamos a maioria das coisas que nos satisfazem de verdade para depois, um depois que pode não existir. Sabemos que tudo passa rápido, mas ainda temos a ilusão de que haverá no futuro algum tempo para que possamos fazer tudo que não podemos fazer agora, porque não há tempo. Cada segundo é precioso. As obrigações não esperam: tem prazos exíguos, cujo cumprimento torna-se, não raro, mais importante que a própria tarefa em si.

Responda à seguinte pergunta: Quantas vezes neste mês você fez algo que te desse aquela sensação de se estar vivo? De satisfação plena? Aquele momento de absoluta sintonia com o mundo em que você olha pro céu e pensa: "Que bem que eu estou vivo"?

Você pode até rechaçar esta pergunta e rebater afirmando que talvez eu queria lançar o mundo ao mais completo devaneio hedonista, onde as pessoas não se preocuparão com o futuro e não estudarão ou trabalharão mais. Mas no fundo, no fundo, você sabe que não é disto que estou falando. E você neste exato momento pode fechar a página e parar de ler porque tem um prazo importantíssimo pra amanhã, mas penso eu que os prazos e as coisas inanimadas podem ficar pra depois. Mesmo que você morresse neste exato momento, o prazo não deixaria de existir e, inevitavelmente, seria feito posteriormente por outra pessoa. Só que as pessoas não podem ser deixadas pra amanhã.

"Pra morrer, basta estar vivo", diria meu irmão, na frase mais estupidamente óbvia e genial do século.

Acabamos nos importando tanto, com tantas coisas, que esquecemos de viver. E por esquecermos, vamos morrendo por dentro. E quando se vê já se morre por completo, deixando, como sobejo de personalidade, o espólio e algumas poucas lembranças.

Por isso faça aquilo que te mantém vivo, ou eventualmente você poderá se sentir morto antes mesmo de ter passado pelo véu de Ísis. Devemos estar preparados pois aqui há uma única obrigação a ser cumprida, cujo prazo pode ser tão exíguo quanto a tarefa mais rigorosa; nosso único encargo e, ao mesmo tempo, nossa única certeza: a morte.

Assim, que ela signifique a possibilidade de viver mais e melhor, de não deixar pessoas pra depois, amor pra depois, riso pra depois, e só assim não deixaremos a nossa própria vida pra depois, esse depois que pertence ao Universo, ao acaso, ao Deus, ao sobrenatural, ao que não se explica ou até ao sabe-lá-o-quê que nos colocou aqui.

Na vida, então, façamos como os gregos: deixemos os deuses com inveja.